11.11.09

Quatro longos meses de vida na escuridão

Nuno Miguel Ropio, in Jornal de Notícias

Vítima de cegueira em incidente no Hospital de Santa Maria impedida de trabalhar e dependente de terceiros


"No nosso lar pequenino, só riqueza não há! Há paz, amor e carinho. E a Graça que Deus nos dá". Os versos delineados a ponto de cruz, presos a uma moldura, dão as boas vindas na casa de Maria Antónia Martins, um dos seis doentes que ficaram cegos com um tratamento oftalmológico, a 17 de Julho, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa.

Mais do que nunca, aquele bordado, o último realizado pela idosa antes de cegar, tornou-se a antítese do lar da família Martins, em Vendas Novas.

"Ficámos sem qualquer paz. A maior riqueza que podemos ter, a nossa saúde, perdi-a no hospital. E assim, cega, já não sei o que é a graça de Deus", lamenta Maria Antónia, de 66 anos, recostando-se no sofá onde passa a maioria dos seus dias.

A machadada na esperança de uma hipotética recuperação da visão do olho esquerdo recebeu-a na semana passada, quando os médicos que a acompanham lhe ditaram a irreversibilidade do seu estado clínico. "A senhora doutora olhou para mim e disse-me: tenho muita pena, mas a sua vista não dá mais. A cegueira é definitiva", lembra, não escondendo uma enorme revolta contra o comunicado emitido esta semana pelo Santa Maria, onde se afirma exactamente o contrário. "Os médicos disseram-nos uma coisa e agora o hospital diz isto. Pergunto à senhora ministra da Saúde: afinal em quem podemos acreditar?", questiona.

A vida de Maria Antónia parou no dia em que, com outros cinco pacientes, se submeteu à pequena intervenção destinada a resolver uma degeneração macular associada à idade, e que consistia numa injecção com a substância "bevacizumab" [Avastin]. Desde então, é António José Martins, o marido, que assegura todo o trabalho doméstico lá em casa.

"No outro dia caiu-me um botão das calças. Nem sequer consegui enfiar uma linha na agulha para resolver o problema. Logo eu, que era costureira. Já nem a minha netinha [com 12 anos] consigo ajudar naqueles trabalhos que ela tanto gosta de fazer", diz, agastada, com um tom arrastado, fruto da toma de mais de trinta comprimidos, de uma lista de 11 medicamentos que a acompanha durante o dia.

O marido opta por não se juntar à conversa. É ele que, há quatro meses, se transformou na sombra da mulher. "Não posso fazer nada. Ele faz tudo cá em casa, coitado. Hoje até estou um pouco chateada com ele, pedi-lhe que fizesse 'arroz de tamboril' e ele não fez", refere. Na cozinha, José António, um antigo trabalhador da Fiat, encolhe os ombros. "Optei por fazer maruca com batata cozida. Ando muito cansado", admite o septuagenário, quando se lembra que já está na hora da aplicação das gotas no olho afectado.

Há semanas que aguardam uma resposta quanto à indemnização que Maria Antónia poderá vir a receber. Até lá, o Hospital de Santa Maria assegura uma hora e meia de limpeza semanal e as deslocações às consultas médicas.

"Esteve aí a Polícia Judiciária a fazer perguntas e disse-me: olhe, falta um bocadinho assim [faz gesto com os dedos] para sabermos o que aconteceu", conta a idosa. "Bem que naquele dia [17 de Julho] acordei com um mau pressentimento", conclui.