Por Ana Cristina Pereira, in Jornal Público
Atrasou-se. Atrasou-se muito. A culpa foi da doença que o apanhou e que o ia levando. A mãe mal saía de ao pé dele. O pai fotografava os amigos que ele ia fazendo na Unidade de Hematologia e Oncologia Pediátrica do Hospital de São João (Porto) e que iam morrendo - quase, quase todos. O regresso à vida dita normal nada teve de normal. O regresso à vida dita normal trouxe violência.
Tantas vezes, vindo das aulas, o rapaz entrou em casa a chorar. Um dia, os pais fartaram-se, accionaram o Programa Escola Segura. E os agentes apareceram, dentro das suas fardas, e ofereceram um raspanete a quem o agredia. Quando os agentes se enfiaram no carro-patrulha, a directora de turma ralhou: "Não era preciso chamar a polícia!"
A mãe indignou-se com aquela postura, que lhe parecia mais protectora de quem agredia do que de quem era agredido: "Cada vez que ele chegava a casa a chorar, chamava a Escola Segura. O meu filho é que me doía. O meu filho ainda hoje me dói. Ele tem 16 anos, mas não quero que lhe façam mal - nem quero que faça mal a ninguém."
Tinha dez anos quando lhe diagnosticaram cancro. Fez quimioterapia - o cancro entrou em recessão. Sofreu uma recaída - tornou a fazer quimioterapia. Sujeitou-se a um transplante de medula óssea. Fez o 4.º ano de escolaridade em casa. Regressou à escola aos 13 anos.
A escola era outra: quem com ele partilhara sala ia lá à frente. E ele foi agredido por um matulão e encheu-se de medo. Pediu aos médicos que o deixassem ficar em casa. Ficou até ao fim do ano. Tornou a tentar a escola aos 14. Tornou a querer ficar: "Todos os dias, um miúdo metia-se comigo. Vinham mais. Davam-me pancada. Uma vez, trouxe um cadeado daqueles de pôr nas calças."
É um rapaz de poucas falas e de poucos amigos. Talvez se tenha cansado de ver morrer. Por ele, estava sempre fechado em casa, sentado à frente do computador, a jogar ou a ouvir música. Habituou-se a ouvir a mãe falar nele - falar por ele. Habituou-se a ouvir o pai falar nele - falar por ele.
Sentado à mesa da sala e ouve o pai dizer: "Eram mais novos. Conheciam-se todos. Vieram todos da 4.ª classe. Juntavam-se três ou quatro e viravam-se para ele." E a mãe completar: "Lembro-me de o ver deitar sangue. Chegaram a vir atrás dele até casa. Ainda os ouvi dizer que a mãe dele era esta, era aquela, que o pai dele era este, era aquele; que se fosse à escola lhe iam cortar a coisa e que ia no INEM [Instituto Nacional de Emergência Médica]."
Os pais vão levá-lo, vão buscá-lo. Se pudessem, até cruzariam o portão da escola e iriam até à porta da sala. Certa ocasião, o pai enfureceu-se: "Vi um indivíduo dar-lhe um chapo e os seguranças não fizeram nada." Até queria saltar para cima de quem com o seu filho se metera.
Fintara a morte, mas parecia incapaz de lidar com a vida. Ficava os intervalos dentro da sala - como se estivesse de castigo. Pedia atestado ao médico. E a mãe, atrás dele, a fazer sinal: não.
Atendendo ao "clima" e às "dificuldades de integração" na turma, em Novembro de 2008 a psiquiatra pediu à escola que tomasse medidas. Como não notou melhorias alertou, já em 2009, a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) do Porto Oriental: um doente oncológico, com um ligeiro défice cognitivo, estava a desenvolver sintomatologia ansiosa por ser vítima de bullying - abuso mental e físico, intencional, repetido.
A CPCJ aplicou uma medida de acompanhamento junto dos pais e envolveu a escola, que se comprometeu a vigiar e a integrar o rapaz. Houve alguma resistência. A escola argumentou que já o fazia com todos. E a CPCJ lembrou-lhe que aquele era um miúdo especial - sem estratégias de defesa, até pela superprotecção parental. E ouviu a escola advogar que o rapaz não era um anjo.
Não quis mudar de escola - não mudou. A CPCJ entendeu que forçá-lo a mudar de escola seria penalizá-lo - e impedi-lo de aprender a lidar com aquilo. Mudou de turma - e a turma foi sensibilizada para o sofrimento do rapaz; os pais não se cansam de elogiar a nova directora de turma.
Este ano, os pais não andaram a correr para a escola semana-sim-semana-sim por o filho ter caído nas mãos de um "valentão". Só esta semana houve sobressalto. Uma rapariga deu-lhe um estalo. Os óculos caíram - uma lente soltou-se. No dia seguinte, logo pela manhã, a directora de turma avisou a miúda: se fosse preciso pagar algo pelo arranjo, ela é que pagaria.
Os pais puseram-se logo em sentido, mas este episódio parece ser de natureza bem diferente. Alguém escreveu uma carta de amor a uma rapariga e assinou com o nome dele. Corado de vergonha, o rapaz negou a autoria do escrito, pedindo que reparassem não ser sua aquela letra. O debate aqueceu e uma amiga da destinatária da carta deu-lhe um estalo.
"O Conselho Executivo já disse que não pode ter um segurança em cima de cada aluno", reconhece a mãe. E o rapaz já não quer estar ali. O rapaz já nem quer frequentar o ensino regular. Já só quer fazer um curso de educação e formação de informática que lhe dê equivalência ao 9.º ano. E viver em paz.