22.5.23

Tajala quer trazer 11 mulheres para Portugal

Marta Gonçalves, in Expresso


Até chegar a Lisboa, Tajala Abidi nunca tinha caminhado pela rua à noite. Mais impensável seria tê-lo feito sozinha, sem um homem ao lado a acompanhá-la. Sempre assim foi nos 23 anos em que a vida que conheceu foi no Afeganistão. “Há muitas coisas que fiz pela primeira vez desde que vim para cá.” Viu o mar, viajou pela Europa, começou a ter aulas de pintura, está a aprender uma língua nova e a viver sozinha. Acabou de fazer 25 anos, trabalha e faz o que quer sem restrições. A mais de oito mil quilómetros do lugar onde nasceu — porque Portugal já se tornou a sua casa —, a cada dia que passa mulheres e raparigas têm as suas liberdades e direitos cancelados. Tajala fugiu nos primeiros meses de um regime que se impôs e forçou um retrocesso social e quer ajudar mais 11 mulheres e raparigas a fazerem o mesmo. Já imagina a chegada delas.


As últimas semanas de Tajala têm sido passadas em frente ao computador a conversar com as 11 candidatas que vêm para Portugal já no próximo ano letivo (nove para mestrado e duas para licenciatura, de áreas tão diferentes como Engenharia, Economia ou Biologia). Algumas são suas amigas, outras são conhecidas de amigas. Foi por aí que tudo começou: jovens mulheres que, conhecendo a história de Tajala, que teve uma oferta de emprego via Twitter, começaram a perguntar se não haveria outras empresas à procura de mais colaboradores. “Mandavam e-mails a questio­nar e foi assim que surgiu a ideia. Infelizmente, o que estamos a fazer não chega para toda a gente.” Com um objetivo definido, foram alinhados esforços para arrancar com o plano ainda antes de existir uma organização formal. A Associação Setare, de que Tajala faz parte, nasceu oficialmente há um par de dias para este efeito; após este primeiro grupo, quer estender a oportunidade ainda a mais pessoas.

As 11 mulheres devem chegar a Lisboa nos meses de verão, algures entre junho e julho, para facilitar o processo de integração. A parte académica já está garantida, os estágios também. Encontrar casa para todas elas é o maior obstáculo por estes dias, o que parece tornar tudo “um bocadinho mais impossível”.

“Primeiro, quero levá-las a um restaurante, dar-lhes a provar a comida portuguesa. Depois iremos passear à noite, talvez ali para os lados de Belém, ao pé do rio. Muitas delas nem conheciam o país, tal como eu quando vim. É engraçado perceber que, a cada nova conversa que temos, elas começam logo a dizer que entretanto já descobriram isto ou aquilo”, conta. “Fazem muitas perguntas e tenho a certeza de que não me perguntam tudo aquilo que querem.” Tajala sabe o que é estar do outro lado à espera de sair, reconhece-lhes as ânsias e as dúvidas.

A Tajala que se senta hoje na sala de reuniões da empresa que a contratou no final de 2021 é muito diferente daquela que o Expresso conheceu assim que chegou a Portugal, resgatada de Cabul pouco depois de os talibãs terem tomado o poder. Está mais tranquila e segura nas palavras que usa, sorri bastante. Tem os cabelos soltos, caídos pelos ombros, veste uma camisa de linho branca e umas calças de ganga. “Também nunca tinha estado fora de casa sem o hijab, mas agora nunca o uso.” Foi decisão sua deixar de pôr o lenço que, desde que se lembra, lhe cobria a cabeça quando saía à rua. “Eu quis, nunca me senti obrigada a fazê-lo. Aliás, nunca notei que os outros me tratassem de forma diferente porque tinha ou não o hijab. Antes as pessoas já me tratavam bem.”

CERTAMENTE LISBOA

A vida parece que correu mais rápido do que nunca nos últimos meses. Talvez porque tanto lhe aconteceu, diz Tajala. “Estou mais familiarizada com a sociedade, com as pessoas. Até com a comida, que também é uma parte importante.” Faz uma pausa para ganhar balanço. “Deixa-me cá ver se consigo dizer bem.” Hesita na primeira sílaba e depois, num empurrão, tudo de uma só vez: “Bacalhau à Brás é o meu preferido.”

Mora em Lisboa, trabalha no centro da cidade como consultora na S317, uma empresa de consultoria e engenharia de gestão, a mesma com que assinou contrato para fugir de Cabul. Ao final da tarde tem aulas de português e de pintura, ao fim de semana vai passear com os amigos. Quer voltar a estudar, continuar nas engenharias e especializar-se, mas ainda não sabe bem em quê. “Estou a ver.” A certeza é apenas uma: será certamente em Lisboa. “Não quero voltar ao Afeganistão. Claro que penso em estar com a minha família. Terá que ser algures a meio caminho, viajarmos todos para nos encontrarmos num outro país, por exemplo. Voltar seria muito arriscado.”

Os telefonemas e videochamadas para a família nunca têm dia nem hora certa, dependem de quando no lado de lá há acesso à internet. O que lhe contam é que nada está melhor, que mulheres e raparigas estão isoladas em casa e foram completamente banidas de escolas e universidades. “O pior de tudo é a normalização do que está a acontecer. A situação meio que se estabilizou e as pessoas estão a vivê-la sem perspetiva de mudança.”

RESGATE ATRIBULADO

Tajala tinha acabado de sair do aeroporto de Cabul quando, a 26 de agosto de 2021, um ataque suicida matou pelo menos 180 pessoas. Nesse dia, enquanto milhares de pessoas tentavam entrar no Aeroporto Internacio­nal Hamid Karzai para assegurarem um lugar num voo que os levasse para bem longe, a jovem regressou a casa. O caos era de tal ordem que seria impossível alcançar os militares portugueses que a esperavam, apesar de estar munida de uma espécie de livre-trânsito emitido pela NATO e de o seu nome constar na lista de pessoas autorizadas a embarcar com destino a Portugal. Só dois meses depois, em outubro, e acompanhada por outra mulher que ainda lhe era desconhecida e com quem hoje divide casa, chegaria a Lisboa. Saiu pela fronteira terrestre para o Paquistão e voou para Portugal.

Foi nos primeiros dias que o Expresso a conheceu, num passeio pelos pontos turísticos de Lisboa. O dia pôs-se cedo e Tajala, logo ali, comentou: “Lá, quando começa a escurecer, não se veem raparigas na rua. O que vejo aqui é diversidade. Aqui posso usar o lenço e ninguém me pergunta porquê. Gosto disso.” Tal como agora, nunca ninguém lhe perguntou porque deixou de o usar.