Até chegar a Lisboa, Tajala Abidi nunca tinha caminhado pela rua à noite. Mais impensável seria tê-lo feito sozinha, sem um homem ao lado a acompanhá-la. Sempre assim foi nos 23 anos em que a vida que conheceu foi no Afeganistão. “Há muitas coisas que fiz pela primeira vez desde que vim para cá.” Viu o mar, viajou pela Europa, começou a ter aulas de pintura, está a aprender uma língua nova e a viver sozinha. Acabou de fazer 25 anos, trabalha e faz o que quer sem restrições. A mais de oito mil quilómetros do lugar onde nasceu — porque Portugal já se tornou a sua casa —, a cada dia que passa mulheres e raparigas têm as suas liberdades e direitos cancelados. Tajala fugiu nos primeiros meses de um regime que se impôs e forçou um retrocesso social e quer ajudar mais 11 mulheres e raparigas a fazerem o mesmo. Já imagina a chegada delas.
As últimas semanas de Tajala têm sido passadas em frente ao computador a conversar com as 11 candidatas que vêm para Portugal já no próximo ano letivo (nove para mestrado e duas para licenciatura, de áreas tão diferentes como Engenharia, Economia ou Biologia). Algumas são suas amigas, outras são conhecidas de amigas. Foi por aí que tudo começou: jovens mulheres que, conhecendo a história de Tajala, que teve uma oferta de emprego via Twitter, começaram a perguntar se não haveria outras empresas à procura de mais colaboradores. “Mandavam e-mails a questionar e foi assim que surgiu a ideia. Infelizmente, o que estamos a fazer não chega para toda a gente.” Com um objetivo definido, foram alinhados esforços para arrancar com o plano ainda antes de existir uma organização formal. A Associação Setare, de que Tajala faz parte, nasceu oficialmente há um par de dias para este efeito; após este primeiro grupo, quer estender a oportunidade ainda a mais pessoas.
As 11 mulheres devem chegar a Lisboa nos meses de verão, algures entre junho e julho, para facilitar o processo de integração. A parte académica já está garantida, os estágios também. Encontrar casa para todas elas é o maior obstáculo por estes dias, o que parece tornar tudo “um bocadinho mais impossível”.
“Primeiro, quero levá-las a um restaurante, dar-lhes a provar a comida portuguesa. Depois iremos passear à noite, talvez ali para os lados de Belém, ao pé do rio. Muitas delas nem conheciam o país, tal como eu quando vim. É engraçado perceber que, a cada nova conversa que temos, elas começam logo a dizer que entretanto já descobriram isto ou aquilo”, conta. “Fazem muitas perguntas e tenho a certeza de que não me perguntam tudo aquilo que querem.” Tajala sabe o que é estar do outro lado à espera de sair, reconhece-lhes as ânsias e as dúvidas.
A Tajala que se senta hoje na sala de reuniões da empresa que a contratou no final de 2021 é muito diferente daquela que o Expresso conheceu assim que chegou a Portugal, resgatada de Cabul pouco depois de os talibãs terem tomado o poder. Está mais tranquila e segura nas palavras que usa, sorri bastante. Tem os cabelos soltos, caídos pelos ombros, veste uma camisa de linho branca e umas calças de ganga. “Também nunca tinha estado fora de casa sem o hijab, mas agora nunca o uso.” Foi decisão sua deixar de pôr o lenço que, desde que se lembra, lhe cobria a cabeça quando saía à rua. “Eu quis, nunca me senti obrigada a fazê-lo. Aliás, nunca notei que os outros me tratassem de forma diferente porque tinha ou não o hijab. Antes as pessoas já me tratavam bem.”
CERTAMENTE LISBOA
A vida parece que correu mais rápido do que nunca nos últimos meses. Talvez porque tanto lhe aconteceu, diz Tajala. “Estou mais familiarizada com a sociedade, com as pessoas. Até com a comida, que também é uma parte importante.” Faz uma pausa para ganhar balanço. “Deixa-me cá ver se consigo dizer bem.” Hesita na primeira sílaba e depois, num empurrão, tudo de uma só vez: “Bacalhau à Brás é o meu preferido.”
Mora em Lisboa, trabalha no centro da cidade como consultora na S317, uma empresa de consultoria e engenharia de gestão, a mesma com que assinou contrato para fugir de Cabul. Ao final da tarde tem aulas de português e de pintura, ao fim de semana vai passear com os amigos. Quer voltar a estudar, continuar nas engenharias e especializar-se, mas ainda não sabe bem em quê. “Estou a ver.” A certeza é apenas uma: será certamente em Lisboa. “Não quero voltar ao Afeganistão. Claro que penso em estar com a minha família. Terá que ser algures a meio caminho, viajarmos todos para nos encontrarmos num outro país, por exemplo. Voltar seria muito arriscado.”
Os telefonemas e videochamadas para a família nunca têm dia nem hora certa, dependem de quando no lado de lá há acesso à internet. O que lhe contam é que nada está melhor, que mulheres e raparigas estão isoladas em casa e foram completamente banidas de escolas e universidades. “O pior de tudo é a normalização do que está a acontecer. A situação meio que se estabilizou e as pessoas estão a vivê-la sem perspetiva de mudança.”
RESGATE ATRIBULADO
Tajala tinha acabado de sair do aeroporto de Cabul quando, a 26 de agosto de 2021, um ataque suicida matou pelo menos 180 pessoas. Nesse dia, enquanto milhares de pessoas tentavam entrar no Aeroporto Internacional Hamid Karzai para assegurarem um lugar num voo que os levasse para bem longe, a jovem regressou a casa. O caos era de tal ordem que seria impossível alcançar os militares portugueses que a esperavam, apesar de estar munida de uma espécie de livre-trânsito emitido pela NATO e de o seu nome constar na lista de pessoas autorizadas a embarcar com destino a Portugal. Só dois meses depois, em outubro, e acompanhada por outra mulher que ainda lhe era desconhecida e com quem hoje divide casa, chegaria a Lisboa. Saiu pela fronteira terrestre para o Paquistão e voou para Portugal.
Foi nos primeiros dias que o Expresso a conheceu, num passeio pelos pontos turísticos de Lisboa. O dia pôs-se cedo e Tajala, logo ali, comentou: “Lá, quando começa a escurecer, não se veem raparigas na rua. O que vejo aqui é diversidade. Aqui posso usar o lenço e ninguém me pergunta porquê. Gosto disso.” Tal como agora, nunca ninguém lhe perguntou porque deixou de o usar.