25.5.23

"Estamos a sobrestimar o impacto da Inteligência Artificial" na força de trabalho

Ana Rita Guerra, in DN



Considerado um dos pensadores de negócio mais influentes do mundo o cofundador do The Management Lab e professor na London Business School tem defendido mudança na forma como se gerem as organizações. Vai falar sobre o tema na QSP Summit, em junho.


AForbes chamou-lhe o maior especialista mundial em estratégia de negócio. O Wall Street Journal incluiu-o na lista de pensadores de negócio mais influentes do mundo. Radicado em Silicon Valley, Gary Hamel é um iconoclasta do mundo dos negócios, cofundador do The Management Lab, professor da London Business School e autor de várias obras, que nos últimos anos tem defendido a transformação da burocracia em humanocracia nas organizações. Escreveu um livro sobre isso em 2020, Humanocracia, e agora vem ao QSP Summit, que decorre no Porto entre 27 e 29 de junho, explicar o argumento. Hamel, que já esteve em Portugal várias vezes mas não recentemente, tem ideias sui generis sobre o mundo do trabalho, o rescaldo da pandemia e o impacto futuro da Inteligência Artificial.

Como explica o conceito de humanocracia?

Todos temos visto inovação radical em indústria atrás de indústria. É só pensarmos em quão diferente o Airbnb é de uma cadeia de hotéis tradicional ou como o PayPal difere de um livro de cheques. Habituámo-nos a este tipo de inovação em produtos e serviços e eu argumento que precisamos de uma mudança radical semelhante no status quo de gestão, na forma como pensamos em liderança, trabalho e organizações. Precisamos de organizações que sejam mais capazes que as que temos agora. Mais resilientes, mais inovadoras e inspiradoras, mais socialmente responsáveis. Para isso, vamos ter de abandonar os sistemas e práticas de gestão que herdámos da revolução industrial e inventar algo novo e melhor.

E isso começa nas Escolas de Negócios?

As Escolas de Negócios têm um papel a desempenhar. Eis o desafio: a maioria de nós cresceu com empresas que se encaixam no mesmo formato. Independentemente da indústria ou geografia, encontramos a mesma série de práticas e estruturas. O poder vem de cima para baixo, os líderes com mais poder nomeiam os líderes abaixo de si, a estratégia é formulada no topo, os recursos são alocados no topo. O poder estabelece as regras e exige obediência, os gestores distribuem tarefas e avaliam o desempenho, os funcionários competem por promoções.

Isso é-nos tão familiar que mal conseguimos imaginar uma alternativa. Mas eu defendo que esse modelo de gestão de cima para baixo, guiado por regras -- ou numa palavra, burocrático -- está a tornar-se um risco social, económico e de competitividade.

Para mudar isso temos de imaginar algo diferente, e vai requerer uma mudança fundamental na mentalidade de liderança, no currículo das Escolas de Negócios e nas estruturas regulatórias.

É um desafio substancial, mas que me parece inevitável. Porque as organizações que temos agora não estão a mudar tão rápido quanto necessário, não são empreendedoras o suficiente, e não conseguem trazer ao de cima o melhor nas pessoas. Isto é um problema num mundo em que a mudança continua a acelerar e em que nós, como espécie humana, enfrentamos uma série de desafios grandes e sem precedentes. É uma exigência que as organizações se tornem melhores que as que temos agora.

No entanto, vemos que as mudanças dos últimos anos com trabalho remoto estão a dissipar-se e os gestores querem voltar ao que havia antes da pandemia. Isso não demonstra imensa resistência à mudança?
A maioria dos funcionários, independentemente de trabalharem em casa, no escritório ou na fábrica, tem uma relação tóxica com os empregadores. A premissa fundamental que herdámos da era industrial é a ideia de que os seres humanos são recursos. A organização contrata pessoas para produzirem e darem lucros, e na função pública para fornecerem um serviço aos cidadãos.

Por este prisma, o ser humano é um instrumento. Chamamos-lhes "recursos humanos" ou "capital humano", e são apenas meios de produção contratados para fazer tarefas.

O que aconteceu na pandemia é que as pessoas ficaram com mais tempo, interromperam o ritmo habitual, refletiram na natureza do trabalho e no que é mesmo importante na vida. Tudo isto encorajou-as a pensarem no contrato emocional que têm no emprego e muitas acharam-no inaceitável, daí a Grande Resignação. É que o trabalho remoto foi imposto aos líderes, não foi algo que eles quisessem.

Ou seja, a pandemia não inspirou verdadeira mudança?

Numa crise pequena, o poder aproxima-se do centro, há mais regras. Mas numa crise tão grande como a da covid, o poder foi para a periferia. Milhões de funcionários foram obrigados a inovar, a usar a sua habilidade e criatividade para manter os negócios a funcionar.

Uma vez debelada a crise os burocratas esperam que o poder retorne ao centro, querem que os funcionários voltem ao escritório todos os dias.

O grande desafio não está em decidir se o trabalho é ou não remoto. Um problema maior, que a pandemia não mudou, é esta relação tóxica que os funcionários têm com os empregadores. Uma sondagem da Gallup concluiu que apenas 20% dos empregados estão mesmo comprometidos com o seu trabalho; na Europa, é 11%. Sabemos que 70% dos empregos requer pouca ou nenhuma criatividade.


Quem cresceu na web acredita que toda a gente tem direito a ser ouvido e não dão credibilidade automática a ninguém só por causa da sua posição ou poder. Nas redes sociais é-se um líder apenas se as pessoas decidirem segui-lo, não porque alguém o pôs nessa posição de poder

Esta realidade é o resultado de 150 anos a ver os seres humanos como instrumentos. Até que isso mude, estamos emperrados. Quando olharmos para trás, vamos ver que a covid teve um impacto muito pequeno na natureza do trabalho.

Com o advento da Inteligência Artificial avançada, poderemos ver uma diminuição global do mercado de trabalho?
A IA vai ser uma ferramenta poderosa para simplificar tarefas e aliviar as pessoas de certos tipos de trabalhos. Não acredito que vá ser um substituto para a resolução criativa de problemas.

Vou dar um exemplo que destaco no meu livro: a empresa de aço mais lucrativa e inovadora do mundo é a americana Nucor. Eles superam o desempenho dos seus pares com cerca do dobro do retorno de capital, quatro ou cinco vezes melhor performance das ações, e margens muito mais elevadas que qualquer concorrente no mundo.

A razão pela qual isso acontece é que todos os empregados, na maioria de colarinho azul, têm a liberdade de inovar e melhorar o negócio. As equipas na linha da frente são encorajadas a experimentar novas formas de produzir.

Não têm um departamento central de Investigação e Desenvolvimento, mas desenvolveram uma cultura em que cada empregado tem a liberdade, as habilidades e as vantagens de pensar e agir como um empreendedor.

A Nucor tem 75 fábricas e cada uma opera com o próprio PnL [prejuízo e lucro]. Tem um terço dos gestores em comparação com os concorrentes, a sede tem apenas 100 empregados e não há departamentos centrais de RH, Vendas e Marketing, nem de Engenharia. Essas atividades estão distribuídas pelas fábricas. Estão densamente ligadas na horizontal mas têm uma estrutura vertical muito pequena por cima.

No Arcansas, uma equipa percebeu que o caldeirão onde derretem ferro velho para fazer aço tinha de ser substituído. O melhor orçamento que receberam foi 30 milhões de dólares. Então a equipa fez o seu próprio design, encontrou um fabricante e resolveu o problema com 3 milhões de dólares, 90% menos. Não me parece que a IA vá substituir em breve essa criatividade humana.

Estamos a sobrestimar o impacto da IA, da mesma forma que sobrestimámos o impacto das novas tecnologias nos últimos 30 anos.

Temos de nos preocupar com o impacto da IA e da robótica na força de trabalho na mesma proporção em que tratamos os seres humanos como robôs. Se tratarmos os seres humanos como robôs, se não ligarmos a sua criatividade e a sua iniciativa, então sim, os robôs podem fazer o trabalho. Mas se captarmos e usarmos o dom único de pensamento lateral, reconhecimento de novos problemas, e pensamento criativo, então a IA é apenas mais uma ferramenta de produtividade que vamos usar para aumentar a eficácia do nosso trabalho. Mas não é um substituto para a nossa imaginação.

Discorda então das previsões de que a IA vai diminuir o número de empregos e obrigar a semanas de trabalho de quatro dias?
Sim. Isso baseia-se na falácia de que há um número limitado de trabalho para fazer.

Uma segunda falácia é que a IA pode fazer todo o tipo de trabalho que os humanos e melhor. Ambas são falsas.

Há certamente alguns empregos que vão desaparecer, tal como aconteceu antes. Nalgumas categorias vamos ver deslocamento, por exemplo nas profissões legais, na contabilidade e outras áreas. Mas não há um limite na produção e não é que a IA vá fazer tudo e possamos ir sentar-nos na praia. Isso não vai acontecer.

Como lhe parece que a Geração Z, que está agora a entrar no mercado de trabalho, difere das anteriores e poderá contribuir para esta transformação que defende?
Creio que vão fazer avançar a transformação. As pessoas que estão a entrar no mercado de trabalho vêm com expectativas diferentes. Muitos viram os pais a sacrificarem as vidas pelas suas carreiras e beneficiaram disso, vão receber uma enorme transferência de riqueza à medida que os boomers dão lugar aos zoomers.

No entanto, encontram-se em desvantagem. Em todas as gerações desde a II Guerra Mundial, menos pessoas conseguiram subir para a classe média.


A maioria dos funcionários, independentemente de trabalharem em casa, no escritório ou na fábrica, tem uma relação tóxica com os empregadores

Estes jovens estão com dificuldades em comprar casa, veem grandes disparidades de salário na economia, e não estão tão enamorados do capitalismo. Tiveram de reajustar as suas expectativas para um mundo em que é improvável que venham a fazer tanto dinheiro quanto os seus pais.

Este é um problema que vai além das gerações. Temos um abrandamento do aumento da produtividade em toda a OCDE, apesar dos investimentos em tecnologia. A produtividade que vem da inovação é, em muitos países, próxima do zero. Quando isto acontece, torna-se muito mais difícil aumentar salários. Torna-se um jogo de soma zero entre a geração anterior e a que aí vem.

Esta geração vê um mundo de possibilidades reduzidas. É em parte por isso que temos de construir economias mais vibrantes, empresas mais resilientes.

É também uma geração que cresceu online e quer trabalhar para empresas mais responsáveis.
Tendo crescido online e neste mundo socialmente conectado, eles chegam ao mercado de trabalho com expectativas diferentes. Quem cresceu na web acredita que toda a gente tem direito a ser ouvido e não dão credibilidade automática a ninguém só por causa da sua posição ou poder.

Nas redes sociais é-se um líder apenas se as pessoas decidirem segui-lo, não porque alguém o pôs nessa posição de poder.

Se o líder de uma organização tem de usar a sua posição de autoridade para conseguir que algo seja feito, "eu sou o patrão, faz o que eu digo", perde a autoridade de liderança.

São coisas que esta geração traz para o trabalho e vão ter impactos profundos. Podem não estar tão interessados em subir na carreira e sacrificar a vida pessoal para o fazer.

Onde entra nesta equação a pressão crescente por aumentar a diversidade nas empresas, em especial nos lugares de decisão?
A Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI) é importante. Qualquer firma que falhar em captar a diversidade que existe no mercado de trabalho vai estar em desvantagem. Há muito que devia ter sido feito, vale a pena, e é importante torná-la numa prioridade.

O que me preocupa é que podemos ter uma força de trabalho muito diversificada, mas se não lhes dermos a oportunidade de serem bem sucedidos, não vale de muito.

O valor económico da diversidade não advém da cor da pele ou do género de uma pessoa, vem do facto de que, dada a cor da pele e o género, a pessoa viveu uma realidade com experiências diferentes. E elas são valiosas, porque vão ver o mundo de outra maneira e adicionar valor à conversa, criar um ambiente intelectual mais rico na empresa.

O dilema é que estamos a sufocar a verdadeira diversidade nas pessoas. As firmas dão a mesma formação, socialização e pensamento homogéneo, sem lhes dar a oportunidade de crescer e avançar. Por isso, podemos ter uma firma muito diversa e mesmo assim desperdiçar a maioria dessa diversidade. Para tornar a diversidade em vantagem competitiva temos de ter uma organização em que todos os funcionários são ensinados a pensarem como um empreendedor, com liberdade para inovar e um benefício financeiro para o fazer. É o que chamo de empreendedorismo em grande escala.

Como se chega lá?
Quando as pessoas estão enterradas em camadas hierárquicas e muita gente que pode dizer não a uma ideia, destrói-se a capacidade de empreendedorismo.

Costumamos equacionar o empreendedorismo com as startups. Mas se olharmos para os unicórnios europeus, o valor de mercado combinado é de apenas 3% do valor das 350 empresas de topo na Europa. Portanto, de certa forma o empreendedorismo não interessa, pelo menos não em termos de dinamismo económico.

Do que precisamos é que as maiores empresas do mundo, do Deutsche Bank à Mercedez Benz, sejam empreendedoras no seu âmago. Outra forma de descrever o porquê do livro Humanocracia é indicar o que é preciso para tornar um empregado num empreendedor. Alguém que aparece no trabalho com vontade de fazer a diferença e tem a liberdade para o fazer.



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