A perda de recursos e territórios hoje já não é uma visão do futuro, mas da atualidade e do passado recente. Se olharmos para os últimos dois anos, o pós-pandemia revela um desdobramento acelerado da crise climática em sucessivas crises financeiras. A queda de rentabilidade global do capitalismo continua, com custos crescentes e rendimentos decrescentes e a crise climática já é e tornar-se-á cada vez mais o principal factor da atual e das futuras crises financeiras
Os recentes lucros das grandes empresas multinacionais em 2022 poderiam parecer indicar uma reversão da tendência histórica para a queda global de lucros das últimas décadas, mas são apenas um soluço. Resultam de um assalto em grande escala permitido pelos governos a quem controla os principais monopólios do capital global.
A espiral inflacionista em que ainda vivemos foi espoletada pela opção das empresas petrolíferas de usarem o monopólio sobre o sistema energético para compensarem as quedas de lucros durante os lockdowns do Covid. Isto ocorre depois de décadas em que viciaram a economia em combustíveis fósseis numa aliança com o mainstream político, com a complacência e por vezes até acordo de partidos verdes e de esquerda. No entanto, todos os acordos sociais foram rasgados e agora só sobra a barbárie. Em cima deste assalto produzido pelo imposição de preços altos sem paralelo - e a economia política de hoje é principalmente preços fixados arbitrariamente pelos donos dos fluxos de capital, energia e materiais do sistema -, outros desequilíbrios fora do controlo da elite já estão a manifestar-se.
Em 2022, o Paquistão foi submerso pelas maiores cheias da sua história, tendo um terço do país ficado debaixo de água, com mais de 33 milhões de pessoas deslocadas para outros locais e outros países. O Paquistão é (era) um dos maiores produtores mundiais de algodão e de têxteis. Os preços dos têxteis, de quase toda a espécie de roupas, dispararam. Partes do Paquistão continuam debaixo de água. Várias das pessoas que foram deslocadas não voltarão para onde estavam. A probabilidade de mega-monções voltarem a acontecer nos próximos anos é elevada. A onda de calor que neste momento devasta o continente asiático fez, em plenos meses de temperaturas moderadas como Março ou Abril, baterem-se recordes na China, Índia, Bangladesh, Tailândia, Vietname e Laos, entre outros, acima dos 43ºC e até dos 45ºC. Muita produção neste países, se não foi parada, foi atrasada ou reduzida. Esta onda calor coincide com territórios de elevada humidade, pelo que mortes em grande escala já se verificam (diretamente pelo calor e indiretamente com pessoas com dificuldades de saúde, muito jovens ou idosas).
A abundância da produção de algodão e de têxteis a nível global foi comprimida, os preços aumentaram e, necessariamente, não será possível voltarmos aos níveis anteriores sem novas disrupções.
As colheitas de milho, trigo e arroz foram afetadas pela seca nos Estados Unidos, na Europa e na China. Na Califórnia plantou-se a menor área de arroz desde os anos 50 do século passado e a colheita será cerca de metade do que num ano “normal”. Nos Estados Unidos, a colheita de trigo de inverno caiu 25%. A disrupção do fluxo de cereais no Mar Negro por causa da invasão russa da Ucrânia acrescentou sobre esta diminuição drástica da oferta ainda maior disrupção, aumentando ainda mais os preços globais de cereais, de pão, de massas. Parte da produção poderia recuperar em 2023 se não vivermos um verão escaldante no Hemisfério Norte, mas até agora a seca histórica no continente euro-asiático e na América do Norte continua. A agricultura na mega-artificializada pradaria plástica do Sul de Espanha sofre quedas drásticas de produção e faz disparar o preço dos legumes e vegetais em toda a Europa. O Alqueva e a absurda quantidade de culturas irracionais altamente dependentes de água praticadas no Alentejo está no limite da viabilidade, consumindo água que não regressará.
Apesar de termos vivido a pior seca na Europa desde o século XVI e a pior seca da história da China em 2022, este foi um ano em que o fenómeno climatológico La Niña contribui para uma redução global da temperatura. Em 2023 tal não vai acontecer, e provavelmente durante o ano o El Niño formar-se-á no Oceano Pacífico, levando a um aumento global da temperatura.
Já vivemos noutro planeta e não naquele onde foram criadas todas as relações de exploração, as instituições e o sistema bancário e financeiro que consolidaram o capitalismo.
Para combater o aumento da inflação, os bancos centrais e os batalhões de economistas formadas nas escolas de capitalismo suicida escolheram fazer aquilo que aprenderam: aumentar as taxas de juros, para tirar dinheiro da economia e fazê-la comprimir. Quem tinha um empréstimo viu o seu valor aumentar, enquanto os preços de todos os bens aumentavam também. As empresas que tinham empréstimos - todas, portanto - viram os seus custos de funcionamento aumentarem, o que aumentará a compressão salarial, levando eventualmente a despedimentos e, em alguns casos, a bancarrotas.
O Silicon Valley Bank nos Estados Unidos faliu por causa da subida das taxas de juro, porque era um banco especializado em dívida, com grande quantidade de investimento em títulos de tesouro de longo prazo do governo americano, considerados provavelmente o investimento mais seguro da economia mundial.
O que aconteceu com o Silicon Valley Bank e com outros repetir-se-á no futuro. O contágio a outros bancos será cada vez mais frequente e, com preços mais altos, acontecerá por outros meios. O endividamento das famílias está a aumentar para combater os preços elevados. Como os raros aumentos salariais que ocorrem são abaixo da inflação, só para manter níveis de vida similares aos anteriores o nível de endividamento está a subir. Como a probabilidade do preço dos combustíveis fósseis controlados por multinacionais privadas baixar significativamente é muito reduzida e como as catástrofes climáticas como as secas, as cheias e os incêndios florestais estão a tirar a capacidade geral de produção de bens e serviços à escala global, a crise climática continuará a exprimir-se diretamente como uma crise de custo de vida.
A subida do nível das taxas de juros aumentou ainda mais na dívida pública dos países mais pobres, sobrecarregados por juros de dívidas históricas, a fatura do Covid-19, os preços de todos os bens inflacionados e os crescentes fenómenos climáticos extremos. Os países do Sul Global que seguiram as ordens das instituições internacionais financeiras e de crédito (em particular o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional) tornaram-se importadores de comida e abandonaram à sua sorte camponeses e pequenos produtores locais em favor das multinacionais do agronegócio. Tornaram-se maioritariamente dependentes da importação de comida que era “barata” mas já não é nem voltará a ser. Em mercados liberalizados os estados já têm de adquirir e distribuir comida, aumentando dívidas públicas, tendo de contrair novos empréstimos e deixando de pagar outros. A fatura do neocolonialismo nunca pára de chegar e com a crise climática agrava-se.
As dívidas crescentes vão, em quantidades cada vez mais maiores, não ser pagas. Isto significa mais dívida pública, mais dívida privada e também mais bancos a falirem. Mas talvez seja possível cobrir isto tudo com seguros, não?
Os prémios de seguro globais estão em ascensão porque o risco está a deixar de ser risco para passar a ser certeza. A estreita relação da banca com os seguros garante que cada catástrofe climática é também uma crise financeira. E, considerando que o risco está a transformar-se ou a aproximar-se de uma certeza em muitos casos, há cada vez mais seguradoras a recusarem assegurar investimentos, projetos industriais, construção em zonas perigosas, colheitas em zonas de risco de inundação ou seca, e os próprios seguros gerais sobre prédios, transportes e outras áreas. Recusam-se porque o seu negócio é fazer lucro e porque a anterior distribuição vantajosa de risco já não se verifica. Todos os riscos são muito maiores e o risco de grandes catástrofes climática é generalizado. Mesmo quando as seguradoras não se recusam a fazer os seguros, aumentam os prémios e portanto tanto pessoas como empresas estão a pagar mais para ter seguros (muitos deles obrigatórios e diretamente associados a créditos). Se considerarmos uma zona como o Paquistão, que está ano sim, ano não, debaixo de água, ou um estado como a Califórnia, uma das mais importantes áreas agrícolas dos Estados Unidos, que neste momento tem incêndios anuais a devastar permanentemente vastas áreas e até cidades, que companhias de seguro poderão alguma vez assegurar todos os danos provocados? Nenhumas.
Quem pagará estes desastres? As pessoas desses países através do Estado, o último garante. Isto acontecerá com países ou territórios onde o Estado é rico, como a Califórnia. Em casos como Paquistão, a resposta é que ninguém pagará esses desastres na sua totalidade. Os estados, para pagarem essas catástrofes produzidas pela indústria fóssil, terão de endividar-se mais, aumentar impostos ou desviar receitas de atividades como Educação ou Saúde para recuperação - em capitalismo podemos dar como certo que o financiamento do aparato repressivo, a polícia e os exércitos, não será tocado, em particular porque o descontentamento social não tem como não aumentar.
O aumento do custo de vida já é uma consequência da crise climática e os preços altos são e continuarão a ser impostos às pessoas porque a oferta geral de bens e produtos está em queda. Todas as debilidades já existentes antes - fracos sistemas de saúde, monopólios energéticos, parque habitacional indisponível, mal construído, turistificação de cidades, falta de transportes públicos de qualidade, trabalho precário de massas - serão exacerbadas. Os sistemas de saúde ficam à beira do colapso, as pessoas não conseguem pagar rendas, não se conseguem deslocar para trabalhar sem custos exorbitantes, deixam de pagar contas e dívidas. E os bancos ameaçam, despejam, processam, mas não há dinheiro para salvá-los: crise financeira. Não pagando as pessoas diretamente, pagam os Estados, novamente o último garante do sistema financeiro, reduzindo serviços públicos e capacidade social, aumentando dívidas públicas e sendo pressionados a vender activos públicos e hipotecar o futuro.
E dir-nos-ão sempre que é necessário salvar a banca, porque senão toda a economia colapsa. Garantirão o colapso da sociedade para salvar a banca, uma vez mais. No entanto esta não é igual às crises financeiras anteriores.
Os modelos económicos e financeiros não estão desenhados para a crise climática. Basta olhar para o prémio Nobel da Economia de 2018, William Nordhaus, para percebermos isso. Os seus modelos, considerando o custo-benefício abstracto, dizem que poderíamos permitir um aumento de temperatura global até aos 4ºC. É insano. E é com base em cálculos destes que inúmeras propostas políticas são construídas, com o apoio das petrolíferas. Neste momento, temos um aumento global de temperatura de 1,1 a 1,3ºC e já há escassez de recursos e produtos à escala global. Mais um grau e não só não haverá remotamente a quantidade de produtos necessários para manter milhares de milhões de pessoas, como não existirá comércio international como algo previsível ou estável.
A maneira exacta como as crises financeiras da crise climática se desenrolarão é tão diversa e múltipla como a economia capitalista: bancarrotas por causa dos preços altos ou das taxas de juros, crises imobiliárias, crises monetárias quando um país fica de baixo de água, crises de dívida quando a produção nacional e a receita fiscal caem ou é preciso salvar bancos, empresas ou seguradoras, ativos encalhados quando um governo decide apostar num projeto falhado e absurdo - não podemos deixar de apontar aqui a estupidez do projeto de um novo Aeroporto em Lisboa, da cascata de barragens para fazer um “Alqueva do Tejo”, dos milhares de projetos imbecis que pululam na imprensa nacional e internacional todos os dias.
Nenhum governo do mundo está a fazer ou sequer a planear os cortes de emissões necessários para travar o aumento de temperatura abaixo dos 1.5ºC, o que pode acontecer nos próximos 4 anos. 2022 foi o ano com mais emissões de gases com efeito de estufa alguma vez registado, e bateu o recorde de 2021. Nos últimos 30 anos as emissões de gases com efeito de estufa só pararam de aumentar na crise financeira em 2008 e na pandemia de 2020.
Com um aumento de temperatura global de 1,1ºC a 1,3ºC já estamos numa crise financeira geral de falta de rendimento geral do capitalismo, apesar da propaganda neoliberal de que vivemos no melhor de todos os mundos. A qualidade de vida está em regressão por todo o mundo por causa da crise climática e do sistema em que vivemos, que recusa-se a resolvê-la. Os investimentos rentáveis das últimas sete décadas já não existem. É por isso que vemos tanta excitação e propaganda com inteligência artificial, criptomoedas e outros ativos intangíveis. São a procura pelo rendimento que hoje tem de se basear essencialmente na alienação e em produtos cuja verificabilidade é baixa. O tempo em que investir em cimento, carros, fábricas, estradas e construção eram garantias de lucro (mesmo que intermediado e favorecido pelo Estado, com base na ideia de crescimento e rentabilidade futura garantida) acabou.
Por outro lado, a alienação é generalizada entre a população e portanto torna-se muito difícil traduzir que as crises financeiras em que o capitalismo sempre viveu agora também têm uma ligação umbilical à crise climática. É na base dessa compreensão que se podem e devem fazer algumas das alianças anti-sistémicas essenciais a uma ruptura política.
A crise climática será a mãe de todas as crises financeiras, porque é a crise fundamental da espécie humana e irá repercutir-se em todos os sistemas humanos. A preponderância do mundo financeiro nas nossas sociedades significa que também será muito por aí que veremos o mundo a arder, económica e politicamente.
A escolha de desenhar programas políticos que abandonam a necessidade do encerrar com urgência a indústria fóssil ou que baseiam a solução da crise em aumentos de salários que não impliquem nenhuma redistribuição fundamental de poder são propostas quase tão alienadas como as propostas da elite capitalista.
Temos de puxar o travão de emergência para travar o caos. O movimento pela justiça climática propõe-se realizar essa tarefa histórica porque é um movimento deste tempo, do tempo em que estamos numa locomotiva desenfreada rumo ao caos. O que vai acontecer a seguir? A seguir a travarmos o comboio descontrolado? Toda a confusão necessária a reconstruir sistemas sociais e produtivos de maneira diferente e divergente da maneira monopolistica, concentrada, alienada e destruidora como as elites construíram o capitalismo. O que vai acontecer se não travarmos o comboio? O colapso de todos os sistemas que permitiram a existência de civilização humana nos últimos 12 mil anos. Não vamos por aí. Seremos o travão de emergência que o nosso tempo exige.
Os recentes lucros das grandes empresas multinacionais em 2022 poderiam parecer indicar uma reversão da tendência histórica para a queda global de lucros das últimas décadas, mas são apenas um soluço. Resultam de um assalto em grande escala permitido pelos governos a quem controla os principais monopólios do capital global.
A espiral inflacionista em que ainda vivemos foi espoletada pela opção das empresas petrolíferas de usarem o monopólio sobre o sistema energético para compensarem as quedas de lucros durante os lockdowns do Covid. Isto ocorre depois de décadas em que viciaram a economia em combustíveis fósseis numa aliança com o mainstream político, com a complacência e por vezes até acordo de partidos verdes e de esquerda. No entanto, todos os acordos sociais foram rasgados e agora só sobra a barbárie. Em cima deste assalto produzido pelo imposição de preços altos sem paralelo - e a economia política de hoje é principalmente preços fixados arbitrariamente pelos donos dos fluxos de capital, energia e materiais do sistema -, outros desequilíbrios fora do controlo da elite já estão a manifestar-se.
Em 2022, o Paquistão foi submerso pelas maiores cheias da sua história, tendo um terço do país ficado debaixo de água, com mais de 33 milhões de pessoas deslocadas para outros locais e outros países. O Paquistão é (era) um dos maiores produtores mundiais de algodão e de têxteis. Os preços dos têxteis, de quase toda a espécie de roupas, dispararam. Partes do Paquistão continuam debaixo de água. Várias das pessoas que foram deslocadas não voltarão para onde estavam. A probabilidade de mega-monções voltarem a acontecer nos próximos anos é elevada. A onda de calor que neste momento devasta o continente asiático fez, em plenos meses de temperaturas moderadas como Março ou Abril, baterem-se recordes na China, Índia, Bangladesh, Tailândia, Vietname e Laos, entre outros, acima dos 43ºC e até dos 45ºC. Muita produção neste países, se não foi parada, foi atrasada ou reduzida. Esta onda calor coincide com territórios de elevada humidade, pelo que mortes em grande escala já se verificam (diretamente pelo calor e indiretamente com pessoas com dificuldades de saúde, muito jovens ou idosas).
A abundância da produção de algodão e de têxteis a nível global foi comprimida, os preços aumentaram e, necessariamente, não será possível voltarmos aos níveis anteriores sem novas disrupções.
As colheitas de milho, trigo e arroz foram afetadas pela seca nos Estados Unidos, na Europa e na China. Na Califórnia plantou-se a menor área de arroz desde os anos 50 do século passado e a colheita será cerca de metade do que num ano “normal”. Nos Estados Unidos, a colheita de trigo de inverno caiu 25%. A disrupção do fluxo de cereais no Mar Negro por causa da invasão russa da Ucrânia acrescentou sobre esta diminuição drástica da oferta ainda maior disrupção, aumentando ainda mais os preços globais de cereais, de pão, de massas. Parte da produção poderia recuperar em 2023 se não vivermos um verão escaldante no Hemisfério Norte, mas até agora a seca histórica no continente euro-asiático e na América do Norte continua. A agricultura na mega-artificializada pradaria plástica do Sul de Espanha sofre quedas drásticas de produção e faz disparar o preço dos legumes e vegetais em toda a Europa. O Alqueva e a absurda quantidade de culturas irracionais altamente dependentes de água praticadas no Alentejo está no limite da viabilidade, consumindo água que não regressará.
Apesar de termos vivido a pior seca na Europa desde o século XVI e a pior seca da história da China em 2022, este foi um ano em que o fenómeno climatológico La Niña contribui para uma redução global da temperatura. Em 2023 tal não vai acontecer, e provavelmente durante o ano o El Niño formar-se-á no Oceano Pacífico, levando a um aumento global da temperatura.
Já vivemos noutro planeta e não naquele onde foram criadas todas as relações de exploração, as instituições e o sistema bancário e financeiro que consolidaram o capitalismo.
Para combater o aumento da inflação, os bancos centrais e os batalhões de economistas formadas nas escolas de capitalismo suicida escolheram fazer aquilo que aprenderam: aumentar as taxas de juros, para tirar dinheiro da economia e fazê-la comprimir. Quem tinha um empréstimo viu o seu valor aumentar, enquanto os preços de todos os bens aumentavam também. As empresas que tinham empréstimos - todas, portanto - viram os seus custos de funcionamento aumentarem, o que aumentará a compressão salarial, levando eventualmente a despedimentos e, em alguns casos, a bancarrotas.
O Silicon Valley Bank nos Estados Unidos faliu por causa da subida das taxas de juro, porque era um banco especializado em dívida, com grande quantidade de investimento em títulos de tesouro de longo prazo do governo americano, considerados provavelmente o investimento mais seguro da economia mundial.
O que aconteceu com o Silicon Valley Bank e com outros repetir-se-á no futuro. O contágio a outros bancos será cada vez mais frequente e, com preços mais altos, acontecerá por outros meios. O endividamento das famílias está a aumentar para combater os preços elevados. Como os raros aumentos salariais que ocorrem são abaixo da inflação, só para manter níveis de vida similares aos anteriores o nível de endividamento está a subir. Como a probabilidade do preço dos combustíveis fósseis controlados por multinacionais privadas baixar significativamente é muito reduzida e como as catástrofes climáticas como as secas, as cheias e os incêndios florestais estão a tirar a capacidade geral de produção de bens e serviços à escala global, a crise climática continuará a exprimir-se diretamente como uma crise de custo de vida.
A subida do nível das taxas de juros aumentou ainda mais na dívida pública dos países mais pobres, sobrecarregados por juros de dívidas históricas, a fatura do Covid-19, os preços de todos os bens inflacionados e os crescentes fenómenos climáticos extremos. Os países do Sul Global que seguiram as ordens das instituições internacionais financeiras e de crédito (em particular o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional) tornaram-se importadores de comida e abandonaram à sua sorte camponeses e pequenos produtores locais em favor das multinacionais do agronegócio. Tornaram-se maioritariamente dependentes da importação de comida que era “barata” mas já não é nem voltará a ser. Em mercados liberalizados os estados já têm de adquirir e distribuir comida, aumentando dívidas públicas, tendo de contrair novos empréstimos e deixando de pagar outros. A fatura do neocolonialismo nunca pára de chegar e com a crise climática agrava-se.
As dívidas crescentes vão, em quantidades cada vez mais maiores, não ser pagas. Isto significa mais dívida pública, mais dívida privada e também mais bancos a falirem. Mas talvez seja possível cobrir isto tudo com seguros, não?
Os prémios de seguro globais estão em ascensão porque o risco está a deixar de ser risco para passar a ser certeza. A estreita relação da banca com os seguros garante que cada catástrofe climática é também uma crise financeira. E, considerando que o risco está a transformar-se ou a aproximar-se de uma certeza em muitos casos, há cada vez mais seguradoras a recusarem assegurar investimentos, projetos industriais, construção em zonas perigosas, colheitas em zonas de risco de inundação ou seca, e os próprios seguros gerais sobre prédios, transportes e outras áreas. Recusam-se porque o seu negócio é fazer lucro e porque a anterior distribuição vantajosa de risco já não se verifica. Todos os riscos são muito maiores e o risco de grandes catástrofes climática é generalizado. Mesmo quando as seguradoras não se recusam a fazer os seguros, aumentam os prémios e portanto tanto pessoas como empresas estão a pagar mais para ter seguros (muitos deles obrigatórios e diretamente associados a créditos). Se considerarmos uma zona como o Paquistão, que está ano sim, ano não, debaixo de água, ou um estado como a Califórnia, uma das mais importantes áreas agrícolas dos Estados Unidos, que neste momento tem incêndios anuais a devastar permanentemente vastas áreas e até cidades, que companhias de seguro poderão alguma vez assegurar todos os danos provocados? Nenhumas.
Quem pagará estes desastres? As pessoas desses países através do Estado, o último garante. Isto acontecerá com países ou territórios onde o Estado é rico, como a Califórnia. Em casos como Paquistão, a resposta é que ninguém pagará esses desastres na sua totalidade. Os estados, para pagarem essas catástrofes produzidas pela indústria fóssil, terão de endividar-se mais, aumentar impostos ou desviar receitas de atividades como Educação ou Saúde para recuperação - em capitalismo podemos dar como certo que o financiamento do aparato repressivo, a polícia e os exércitos, não será tocado, em particular porque o descontentamento social não tem como não aumentar.
O aumento do custo de vida já é uma consequência da crise climática e os preços altos são e continuarão a ser impostos às pessoas porque a oferta geral de bens e produtos está em queda. Todas as debilidades já existentes antes - fracos sistemas de saúde, monopólios energéticos, parque habitacional indisponível, mal construído, turistificação de cidades, falta de transportes públicos de qualidade, trabalho precário de massas - serão exacerbadas. Os sistemas de saúde ficam à beira do colapso, as pessoas não conseguem pagar rendas, não se conseguem deslocar para trabalhar sem custos exorbitantes, deixam de pagar contas e dívidas. E os bancos ameaçam, despejam, processam, mas não há dinheiro para salvá-los: crise financeira. Não pagando as pessoas diretamente, pagam os Estados, novamente o último garante do sistema financeiro, reduzindo serviços públicos e capacidade social, aumentando dívidas públicas e sendo pressionados a vender activos públicos e hipotecar o futuro.
E dir-nos-ão sempre que é necessário salvar a banca, porque senão toda a economia colapsa. Garantirão o colapso da sociedade para salvar a banca, uma vez mais. No entanto esta não é igual às crises financeiras anteriores.
Os modelos económicos e financeiros não estão desenhados para a crise climática. Basta olhar para o prémio Nobel da Economia de 2018, William Nordhaus, para percebermos isso. Os seus modelos, considerando o custo-benefício abstracto, dizem que poderíamos permitir um aumento de temperatura global até aos 4ºC. É insano. E é com base em cálculos destes que inúmeras propostas políticas são construídas, com o apoio das petrolíferas. Neste momento, temos um aumento global de temperatura de 1,1 a 1,3ºC e já há escassez de recursos e produtos à escala global. Mais um grau e não só não haverá remotamente a quantidade de produtos necessários para manter milhares de milhões de pessoas, como não existirá comércio international como algo previsível ou estável.
A maneira exacta como as crises financeiras da crise climática se desenrolarão é tão diversa e múltipla como a economia capitalista: bancarrotas por causa dos preços altos ou das taxas de juros, crises imobiliárias, crises monetárias quando um país fica de baixo de água, crises de dívida quando a produção nacional e a receita fiscal caem ou é preciso salvar bancos, empresas ou seguradoras, ativos encalhados quando um governo decide apostar num projeto falhado e absurdo - não podemos deixar de apontar aqui a estupidez do projeto de um novo Aeroporto em Lisboa, da cascata de barragens para fazer um “Alqueva do Tejo”, dos milhares de projetos imbecis que pululam na imprensa nacional e internacional todos os dias.
Nenhum governo do mundo está a fazer ou sequer a planear os cortes de emissões necessários para travar o aumento de temperatura abaixo dos 1.5ºC, o que pode acontecer nos próximos 4 anos. 2022 foi o ano com mais emissões de gases com efeito de estufa alguma vez registado, e bateu o recorde de 2021. Nos últimos 30 anos as emissões de gases com efeito de estufa só pararam de aumentar na crise financeira em 2008 e na pandemia de 2020.
Com um aumento de temperatura global de 1,1ºC a 1,3ºC já estamos numa crise financeira geral de falta de rendimento geral do capitalismo, apesar da propaganda neoliberal de que vivemos no melhor de todos os mundos. A qualidade de vida está em regressão por todo o mundo por causa da crise climática e do sistema em que vivemos, que recusa-se a resolvê-la. Os investimentos rentáveis das últimas sete décadas já não existem. É por isso que vemos tanta excitação e propaganda com inteligência artificial, criptomoedas e outros ativos intangíveis. São a procura pelo rendimento que hoje tem de se basear essencialmente na alienação e em produtos cuja verificabilidade é baixa. O tempo em que investir em cimento, carros, fábricas, estradas e construção eram garantias de lucro (mesmo que intermediado e favorecido pelo Estado, com base na ideia de crescimento e rentabilidade futura garantida) acabou.
Por outro lado, a alienação é generalizada entre a população e portanto torna-se muito difícil traduzir que as crises financeiras em que o capitalismo sempre viveu agora também têm uma ligação umbilical à crise climática. É na base dessa compreensão que se podem e devem fazer algumas das alianças anti-sistémicas essenciais a uma ruptura política.
A crise climática será a mãe de todas as crises financeiras, porque é a crise fundamental da espécie humana e irá repercutir-se em todos os sistemas humanos. A preponderância do mundo financeiro nas nossas sociedades significa que também será muito por aí que veremos o mundo a arder, económica e politicamente.
A escolha de desenhar programas políticos que abandonam a necessidade do encerrar com urgência a indústria fóssil ou que baseiam a solução da crise em aumentos de salários que não impliquem nenhuma redistribuição fundamental de poder são propostas quase tão alienadas como as propostas da elite capitalista.
Temos de puxar o travão de emergência para travar o caos. O movimento pela justiça climática propõe-se realizar essa tarefa histórica porque é um movimento deste tempo, do tempo em que estamos numa locomotiva desenfreada rumo ao caos. O que vai acontecer a seguir? A seguir a travarmos o comboio descontrolado? Toda a confusão necessária a reconstruir sistemas sociais e produtivos de maneira diferente e divergente da maneira monopolistica, concentrada, alienada e destruidora como as elites construíram o capitalismo. O que vai acontecer se não travarmos o comboio? O colapso de todos os sistemas que permitiram a existência de civilização humana nos últimos 12 mil anos. Não vamos por aí. Seremos o travão de emergência que o nosso tempo exige.