Estar do lado certo da história implica lutar pelo que está certo, mas também lutar contra o que está errado, e a Joana Marques, com a sua equipa de investigação de patetas, fá-lo como ninguém.
Eu acho que ainda não ouvi a Joana Marques a ser elogiada por aquilo que eu mais valorizo no Extremamente desagradável: a curadoria da imbecilidade e da estupidez da sociedade que insiste em proliferar, e que faz mal às pessoas e quase sempre também à sua carteira.
Claro que o facto de nos fazer rir é por si só serviço público quando se tem o brilhantismo da Joana Marques e se é tão “desagradavelmente” bem acompanhada pela Inês Gonçalves e pela Ana Galvão. Mas temos que dissecar a importância dos conteúdos desta paródia de patetices. Se por um lado há conteúdos maravilhosos sobre temas que são simplesmente algo ridículos, como a cobertura da TVI do casamento da Lili e do Bruno Carvalho, por outro há conteúdos que deviam ser “patrocinados” pelas tutelas da saúde e da educação pelo bem que trazem a Portugal e ao mundo.
Não é por acaso que a Joana Marques recolhe inimigos premium, como p.e. os negacionistas da pandemia, porque o humor consegue ser mais eficaz do que todos os consensos científicos quando se trata de explicar a leigos o quão ridículo é acreditar no ridículo. Pegando em apenas alguns exemplos mais recentes, porque a paródia é infinita como a estupidez humana, ela foi extremamente pedagógica ao apresentar-nos: os youtubers que foram ao Parlamento e confundem visualizações com credibilidade; a entrevista num programa principal da TV a uma taróloga clínica; ou uma ex-advogada a quem a pandemia serviu para mudar de rumo profissional e agora vende reiki online, em vídeos, a grupos, inclusive crianças e adolescentes que são divinamente tratados por esta “terapeuta holística” que vê luzes nas pessoas e recebe a informação no cérebro antes de as coisas acontecerem.
Estar do lado certo da história implica lutar pelo que está certo, mas também lutar contra o que está errado, e a Joana Marques, com a sua equipa de investigação de patetas, fá-lo como ninguém. Parabéns e obrigado. Serviço público.
A semana passada cometi um erro, e como tal devo um pedido de desculpas aos enfermeiros e a quem o quiser aceitar. Podia dizer que me compreenderam mal, mas prefiro assumir com humildade o erro de me ter explicado mal, ao não ter sido claro na separação dos meus dois pontos da crítica com níveis de substância incomparáveis. 1) Sou contra a retirada do médico obstetra do parto “normal, sem complicações”, e isto em nada abala a minha enorme admiração e respeito pelas competências teóricas, técnicas e humanas dos enfermeiros, em particular dos enfermeiros especialistas em obstetrícia (ESMO).
Os argumentos a favor da retirada do médico obstetra são organizacionais e economicistas, e não são argumentos de somenos importância, no entanto, eu pauto as minhas opiniões principalmente por argumentos clínicos. Argumentos estes que são no essencial obstétricos, mas não só, pois no bloco de partos há que pelo menos acrescentar o posicionamento dos anestesistas e pediatras (neonatologistas) e a forma como funcionarão, ou não, as alas com médicos e as alas sem médicos (foi com esta designação que recebi vários relatos de mulheres portuguesas muito insatisfeitas com o atendimento que tiveram durante o parto no Reino Unido). Podem discordar ou acusar-me de várias coisas, mas nunca de corporativismo, pois nunca o fui, já recusei sê-lo, já muito mais vezes fui vocal pela causa dos enfermeiros do que qualquer outra, e é bem provável que nunca mais volte a ser médico. Logo, eu não defendo os médicos, eu defendo, mal ou bem, os cuidados de saúde e as pessoas.
Quanto ao ponto 2) da minha crítica, na crónica anterior, prende-se com a negação da ciência, negação dos cuidados de saúde, e esta recente campanha de desinformação concertada que advoga de uma forma fanática o parto “natural”. Todas as áreas da saúde estão a ser atacados pelas terapias que ou não fazem nada ou fazem mal, mas foi na obstetrícia que esta ignorância muito atrevida ganhou o seu maior cavalo de batalha: o parto “natural” que faz dos médicos obstetras uns carniceiros maquiavélicos que estudaram 13 ou 14 anos apenas para maltratar mulheres e bebés.
Foi na obstetrícia que esta ignorância muito atrevida ganhou o seu maior cavalo de batalha: o parto 'natural', que faz dos médicos obstetras uns carniceiros maquiavélicos que estudaram 13 ou 14 anos apenas para maltratar mulheres e bebés
A medicina e os cuidados de saúde, dos quais a enfermagem é uma parte muito importante, foram sendo concebidos e os saberes acrescentados para contrariar a natureza que nos leva à morte cedo demais, ou ao sofrimento evitável. Se há mulheres que querem ter filhos no meio do mato, elas têm essa liberdade e esse direito, mas que o façam a saber que a probabilidade de morrerem aumenta em flecha, e a probabilidade de o bebé sair sem vida aumenta mais ainda.
E esta luta pela boa informação, pela literacia na saúde, tem de ser feita por todos os profissionais de saúde e, na minha opinião, todos estes profissionais, sejam médicos, enfermeiros ou outros, que sejam coniventes com este retrocesso de mandar de volta os partos para as cavernas desde que tenham música a gosto são cúmplices das mortes que estas teorias patéticas causam à nossa volta, e não são poucas.
O meu sincero pedido de desculpas por não ter sido claro no ponto 1) e na sua diferenciação da minha crítica reiterada e frontal a todas as pessoas que contribuem para o ponto 2), crítica para a qual temos também o incrível trabalho da Joana Marques e da sua equipa, mas não chega. Temos todos de remar com força contra a maré da estupidificação das massas.
Eu não escrevo em benefício próprio, nem escrevo preocupado se vou fazer amigos ou evitar inimigos. Eu escrevo na luta pela ciência, pela medicina, pela humanidade, e se pelo meio conseguir fazer crescer a vontade necessária para que nos sintamos cidadãos do mundo, eu fico contente por apresentar dados e emoções sobre seres humanos que ninguém quer ver.
Aqui fica mais um: “4,5 milhões de mulheres e recém-nascidos morrem todos os anos durante a gravidez, o parto, e as primeiras semanas pós-parto, o equivalente a uma morte a cada 7 segundos, de causas maioritariamente preveníveis ou tratáveis, se existissem cuidados de saúde adequados.” (relatório da ONU de 9 de Maio de 2023).
Obrigado Joana Marques, e as minhas sinceras desculpas aos enfermeiros que leram nas minhas palavras uma crítica à sua competência.
As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel da Mota a favor dos Médicos sem Fronteiras