Ricardo Arroja, opinião, in Público
O salário é de menos e o imposto é de mais. Às empresas caberá tratar dos salários. Ao Estado, do imposto, sendo que somos hoje um país de remediados com impostos de países ricos.
Há dias, uma familiar minha revelava-se muito indignada com dados que tinha lido numa rede social: em Portugal, bastavam 2000 euros brutos por mês para fazer parte dos 10% mais ricos do país. A notícia não era nova. Já tinha uns meses e também já tinha sido verificada pelo Polígrafo no início do ano, tendo então sido avaliada com “Verdadeiro”, ainda que sujeita ao seguinte reparo: “A expressão mais consentânea com a verdade dos factos seria ‘10% com maiores salários do país’.” A indignação da pessoa em causa não era movida pelo desconhecimento da realidade, afinal ela própria encontra-se no intervalo oposto – entre os 90% que ganham menos de 2000 euros brutos por mês. A indignação era antes movida pela constatação de que, encontrando-se bastante próxima daquele patamar, corria o risco de ser considerada rica, quando a sensação com que cada vez mais ficava era a de que o dinheiro voava, restando pouco ou quase nada no final do mês. Concluía, pois, que a expressão classe média-alta provavelmente aplicar-se-ia, pelo que, por inerência, ser classe média só poderia significar ser-se pobre.
Também há dias, na sua coluna semanal, a minha colega de opinião Susana Peralta referia [que], “a bem da qualidade do debate democrático, cada político devia ser obrigado a definir a classe média quando fala dela”. Concordo. O conceito de classe média é influenciado pela vivência de cada pessoa, bastando para tal variar o local de residência. Haverá uma classe média em Lisboa e decerto outra em Rabo de Peixe. De acordo com as estatísticas de IRS da Autoridade Tributária (AT), em 2021, a taxa efectiva de tributação bruta – definida como o rácio entre o IRS liquidado e o rendimento bruto – era de 17,6% em Lisboa enquanto nos Açores era de 8,9%, evidenciando as enormes assimetrias no seio do país. Porém, em Portugal, na maioria dos casos, governa-se, a partir de Lisboa, para os grandes centros urbanos que, cada vez mais, concentram as grandes massas da população. Corre-se, assim, o risco de a expressão classe média ser utilizada de forma difusa, como quando em 2016 um antigo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais definiu classe média como podendo compreender remunerações de 900 a 2000 euros ou mais por mês.
Nos últimos meses, gerou-se um consenso em redor da redução dos impostos, em particular do IRS. É sinal de que a pressão fiscal sentida em Portugal finalmente atingiu os centros urbanos, em particular a população urbana que mais influencia a formação da opinião pública. Lisboa é o principal exemplo. É neste distrito que estão cerca de 26% dos agregados fiscais que em 2021 liquidaram IRS, mas que representaram 36% do valor de IRS liquidado (conforme estatísticas de IRS 2019/2021 da AT, mapas 18 e 19). Numa altura em que a inflação reduz os salários reais e o poder de compra das famílias, como há muito não se via, até mesmo das bem remuneradas, o apelativo da progressividade fiscal torna-se menor, sobretudo quando já nem mesmo as famílias mais bem remuneradas se sentem especialmente afortunadas. Afinal, os tais 2000 euros brutos por mês, que transportam os assalariados portugueses para o decil de topo da distribuição salarial, correspondem a 2,6 salários mínimos em Portugal e a menos do que um salário mínimo no Luxemburgo. Ora, como a produtividade do país não se muda por decreto, a solução para aumentar os salários no imediato é reduzir o imposto – como, aliás, toda a gente já percebeu.
Segundo o relatório “Taxing Wages 2023”, da OCDE, Portugal tem a nona maior carga fiscal sobre o trabalho entre os países-membros daquela organização, incluindo no perímetro da carga fiscal não só o IRS, mas também as contribuições sociais a cargo dos trabalhadores e dos patrões. Porém, o relatório apresenta cálculos para diferentes tipologias familiares. Por exemplo, para agregados com dois adultos e dois filhos, uma tipologia que é especialmente relevante em face do nosso desequilíbrio demográfico, porquanto o equilíbrio geracional se obtém com dois ou mais filhos, a carga fiscal é ainda maior – tratando-se da sexta maior da OCDE. Num país que é dos mais pobres da OCDE, isto evidentemente não faz sentido algum. E pior se fica quando, ao contrário dos cinco países que nos ultrapassam (Bélgica, Alemanha, França, Suécia e Finlândia), todos eles substancialmente mais prósperos do que nós, só em Portugal é que a carga fiscal sobre o trabalho tem vindo a aumentar desde 2015, atingindo em 2022 o seu valor mais elevado.
Nos últimos anos, registou-se em Portugal um aumento expressivo da percentagem de agregados fiscais que liquidam IRS. Ou seja, dos cerca de 50% dos agregados fiscais que em 2015 não pagavam IRS, devido ao muito baixo nível de rendimento, passou-se para um rácio de 42% em 2022. Os salários nominais mais baixos aumentaram, levando a que, acompanhados de uma quase inexistente actualização dos patamares mínimos dos escalões de tributação, muitos tivessem começado a liquidar IRS. Em simultâneo, nos escalões superiores de rendimento, a não actualização dos escalões fez com que muitos agregados familiares tivessem passado a pagar uma taxa efectiva superior à que teriam pago caso tivesse havido a referida actualização. Por exemplo, para escalões de rendimento bruto superior a 32.500 euros por ano, a partir dos quais a taxa efectiva de tributação bruta é superior à taxa média incluindo todos os escalões de rendimentos, existiam em 2021 cerca de 255 mil agregados a mais face ao número de 2015 – um incremento acumulado de sensivelmente 45%.
O argumento tendente à redução do IRS é transversal a toda a distribuição de rendimentos. Não é apenas nos escalões mais baixos de rendimento que ele deve ser atendido, como demonstra o clamor da classe urbana e da generalidade dos partidos políticos. A taxa média efectiva de tributação bruta em Portugal era de 13,5% em 2021. Porém, para rendimentos a partir de 32.500 euros ou mais encontrávamos 25% do número total de agregados com IRS liquidado que geravam sensivelmente 73% do valor liquidado (vide estatísticas da AT referentes a 2021, mapas 23 e 24). Entre aqueles, agregados com rendimentos brutos de 32.500-40.000 pagavam uma taxa média de 14,6% e rendimentos entre 40.000-50.000 euros uma taxa de 17,3% (mapa 25). Estamos a falar de rendimentos que, para agregados com dois assalariados (considerando 14 meses por ano), poderiam corresponder a salários brutos de 1300-1600 euros por mês, por assalariado. O salário é de menos e o imposto é de mais. Às empresas caberá tratar dos salários. Ao Estado, do imposto, sendo que somos hoje um país de remediados com impostos de países ricos.
[artigo disponível na íntegra só para assinantes]