1.10.15

Os meus singelos pedidos aos próximos governantes

Luís Fernandes, in Porto24

Há uma urgente necessidade de reinvestir a escola pública e de não tolerar práticas excludentes que se verificam nalgumas escolas privadas que trabalham para os rankings.

Nasceu no Porto, em 1961. Professor associado da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto. Tem dedicado os seus trabalhos de investigação à expressão do fenómeno droga em contexto urbano. A evolução deste fenómeno conduziu-o à pesquisa sobre o sentimento de insegurança, a violência urbana, a marginalidade e a exclusão social. Durante vários anos foi cronista dos jornais “O Comércio do Porto”, “A Página da Educação” e “Público”. Mantém actividade literária com o pseudónimo João Habitualmente.

Está a arrancar a atividade letiva dos vários níveis de ensino por todo o país. Desenvolvo o meu trabalho no ensino superior, é portanto a partir deste ponto de observação que teço as considerações a seguir:

1. Mesmo os mais distraídos, ao entrarem no recinto duma qualquer faculdade, perceberão que se retomou o frenesim do ano letivo: não têm como não ver uma data de rapaziada, muitos deles trajados a rigor, a ensaiar estranhos rituais – escutados ao longe, desprende-se deles um ulular de gritos de exortação. Ainda hoje, ao fim de muitos anos de vida universitária, não sei bem o que aquilo é e também nunca experimentei ver de perto. Falo neles porque marcam com um folclore muito particular o início do ano e é suposto estarem a receber aqueles que chegam pela primeira vez, encetando uma nova e importante fase das suas vidas.

2. Ninguém chega às nossas universidades sem ter andado primeiro nos ensinos básico e secundário. Daí a minha primeira preocupação com o ensino superior estar a montante deste: preocupa-me o crescente aprofundamento, muito acelerado nos últimos anos, da divisão entre as escolas públicas e as privadas. Não tenho nada contra o ensino privado – mas pelos vistos há quem tenha muito contra o público. É só ver como tem vindo a ser descapitalizado, como os docentes mais jovens veem as suas possibilidades de carreira darem lugar à precarização do trabalho, como se instala a ideia de que as escolas públicas “são para todos”, sendo que o “todos” começa do meio da tabela para baixo, e as privadas – sobretudo algumas privadas – são para os que estão talhados para os cursos com funil de entrada apertado. A famosa liberdade de escolha propalada pelos ideólogos deste sistema que quer peneirar o trigo do joio fica reservada para os que podem pagar a escolha…

Há uma urgente necessidade de reinvestir a escola pública e de não tolerar práticas excludentes que se verificam nalgumas escolas privadas que trabalham para os rankings. Os rankings, parecendo que são uma informação objetiva ao potencial consumidor de serviços educativos, funcionam como máquina ao serviço da divisão entre as boas escolas, as assim-assim e as más, reforçando pelos movimentos de procura que geram o fosso entre estas pseudocategorias. Se pudesse dar uma sugestão ao próximo ministro da educação – que espero ardentemente que não seja o mesmo, seria mau duas vezes, uma porque era ele outra vez e a outra porque isso quereria dizer que a coligação PCP (Passos Coelho – Portas) tinha ganho –, se pudesse então dar uma sugestão ao próximo ministro da educação seria a de acabar com a publicitação dos rankings.

3. Preocupa-me o excessivo peso do cientismo e duma cultura tecnocrática na Universidade, que secundariza o lugar do pensamento crítico e da missão cultural que aquela deve ter. Urgente substituir refrões que a repetição vai esvaziando – comecemos, por exemplo, por substituir a palavra inovação pela palavra criatividade. Com a liberdade que se solta da pedagogia da criatividade pode então emergir, como resultado espontâneo e não como objetivo administrativo, a inovação. Voltemo-nos depois para as palavras excelência e mérito – livremo-las da métrica quadrada com que andam a ser avaliadas e criaremos um clima em que surjam com naturalidade.

4. É necessário valorizar a transferência de conhecimento das universidades e dos politécnicos não apenas para os setores lucrativos da economia, mas também para o terceiro setor, constituído pelas IPSS, pelas ONG’s, pelas agências de desenvolvimento social local.

Estamos quase a decidir quem vai para o parlamento e para o governo – será que é tempo de esperança?

NOTA À MARGEM (ou não…) – Esta semana morreu Vítor Silva Tavares. A sua importância na literatura portuguesa é bem conhecida de todos quantos a seguem de perto. Para os menos familiarizados, direi que fundou a &etc, editora que publica o primeiro livro poucos meses antes do 25 de abril de 74. Pelas suas edições passaram nomes tão diversos como Gomes Leal, Herberto Hélder, Gastão Cruz, Mário Cláudio, Ramos Rosa, Luís Miguel Nava, Alberto Pimenta, Nuno Júdice,Inês Lourenço ou Adília Lopes. Das obras que fez traduzir destaco os poetas franceses Aragon, Antonin Artaud ou Jacques Prevert. Fora do texto poético há também edições em várias áreas – destaco guiões e outros escritos de João de César Monteiro e ensaios sociomusicológicos de Jorge Lima Barreto.

Do trajeto de Vítor Silva Tavares, releva a independência de ideias e de opções estéticas. Um dos resultados mais claros é o catálogo da &etc, do qual direi como elogio que é impiedoso.

Não sei se era crente. Mas um homem que assim se dedicou à arte tem de ter uma alma grande – paz à sua alma.