30.11.20

Desemprego atinge mais de 17 mil alentejanos

 in Rádio Pax

Em outubro, o número de desempregados inscritos nos centros de emprego do Alentejo, aumentou 19,4% face ao mês homólogo.

Os dados do Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP) revelam que na região estavam inscritos nos centros de emprego 17 536 indivíduos, mais 2 851 que em outubro do ano passado. Comparativamente ao mês anterior, o número de inscritos diminuiu 3,4%, o que representa menos 616 inscritos.

As ofertas de emprego na região Alentejo diminuíram 19,5% face a outubro de 2019.

No país, o desemprego atingia cerca de 561 829 pessoas, o que corresponde um aumento de 23,4% face ao mês homólogo.

O Instituto refere que para o aumento do desemprego registado no país, “contribuíram todos os grupos de desempregados, com destaque para as mulheres, os adultos com idades iguais ou superiores a 25 anos, os inscritos há menos de um ano, os que procuravam novo emprego e os que possuem como habilitação escolar o ensino secundário”.

IVA da eletricidade desce já amanhã. Saiba se é um dos beneficiados

Anabela Góis , Fátima Casanova, in RR

Governo estima que 5,2 milhões de famílias sejam abrangidas pela medida.

A partir de terça-feira, dia 1 de dezembro, a maioria dos portugueses deverá pagar menos pela eletricidade. O IVA vai ser reduzido para 13% em determinadas componentes da fatura.

Quem vai ser abrangido por esta descida?

São todos os clientes com potência contratada até 6,9 Kva (amperes) na parte do consumo, que não exceda os 100 kWh (quilowatt) por mês. Só os consumos superiores é que vão continuar sujeitos a uma taxa de IVA de 23.

Pode parecer complicado, mas de acordo com o ministro das Finanças serão beneficiados 86% dos contratos de eletricidade – ou, dito de outra forma, 5,2 milhões de famílias.

Convém lembrar que os clientes com uma potência contratada mais baixa, até 3,45 Kva, já beneficiam da taxa reduzida de IVA de 6%.

Mas quanto vai representar esta descida na fatura?

De acordo com as simulações feitas pelo Ministério das Finanças, vai permitir uma poupança mensal entre 1,5 euros e 2,30 euros às famílias com contadores de eletricidade com uma potência contratada até 6,9 Kva. Isto, tendo em conta as estimativas segundo as quais estas famílias pagam, em média, 50 euros, a que se somam 11,5 euros de IVA.

As novas regras aplicam-se a todos os consumidores?

Sim, as regras de aplicação das taxas de IVA são iguais para todos os consumidores, quer estejam ainda no mercado regulado quer já se encontrem no mercado liberalizado, que é hoje a maioria.

E as famílias numerosas?

Para já, a redução da taxa de IVA para 13% beneficia as famílias cujos consumos não excedam 100 kWa.

As famílias numerosas vão ter de esperar um pouco mais para verem a sua situação contemplada. Só a partir de março é que vão ver a taxa de IVA cair para 13% nos consumos até 150 kWh.

E isso acontece de forma automática?

Não, o desconto não é automático. As famílias com mais de cinco elementos vão ter de requerer o estatuto de família numerosas junto do fornecedor de eletricidade.

Para isso, terão de fazer um pedido por escrito acompanhado das declarações recentes de IRS, bem como do cartão municipal de família numerosa ou de uma declaração da Junta de Freguesia que comprove o agregado. Também serve a última fatura de água, onde conste a aplicação da tarifa familiar da água.

E os postos de carregamento de carros elétricos, vão ser abrangidos?

Não. O carregamento nesses postos continua com o IVA a 23%. Esta descida é apenas para o consumo doméstico.




Para que esclarecer dúvidas sobre a potência contratada, a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) divulgou um vídeo.

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Cozinha com Alma. Um ‘take-away’ onde ajuda ao comprar

Manuela Pires, in RR

A Cozinha com Alma é um projeto social que nasceu há mais de oito anos no concelho de Cascais. Aqui, o lucro das refeições permite subsidiar as mesmas refeições para as famílias da bolsa social. E, com a pandemia, surgiu mais um apoio.

Passam poucos minutos da dez da manhã, mas na Cozinha com Alma já cheira a comida. O creme de bróculos está quase pronto; no tacho gigante, os patos estão há mais de duas horas a cozer e, ali ao lado, duas funcionárias descascam dezenas de ovos para a pescada à Brás.

Na Cozinha com Alma trabalham 24 pessoas para além dos muitos voluntários que dedicam uma parte do seu dia a ajudar este projeto social.

Carmo Barros é uma delas. Sobe e desce as escadas com ligeireza, está equipada a rigor, bata branca, toca e máscara. Carmo Barros trabalhou nos jornais, foi assistente editorial, nunca tinha trabalhado numa cozinha.

“Foi através de amigas comuns que fiquei a conhecer este projeto e, como já não trabalho e não consigo ficar em casa sem fazer nada, decidi ajudar. Estou aqui há cinco anos e em muito boa hora”, conta à Renascença.

Carmo Barros fica na reta final do trabalho na cozinha: embalar a comida, etiquetar as embalagens para irem para a loja, “mas também tenho de garantir que há caixas suficientes e por isso trato do inventário”.

A pandemia fez reduzir o número de voluntários que todos os dias integram este projeto, mas agora, aos poucos e cumprindo as regras de segurança sanitária, alguns já voltaram.
Muito mais do que um simples prato de comida

A Cozinha com Alma é um “take-away” onde o lucro das refeições vendidas ao público geral permite subsidiar as mesmas refeições para as famílias da bolsa social. A ideia surgiu há mais de 8 anos. Com a crise económica, Cristina de Botton começou a sentir à sua volta que muitas pessoas passavam dificuldades e decidiu que tinha de fazer alguma coisa.

“Eram famílias que nunca tinham precisado de ajuda e é muito difícil dar esse primeiro passo. Quando chegam a nós já estão muito fragilizadas”, conta a fundadora e presidente da Cozinha com Alma.

Neste momento, ajudam 72 famílias do concelho de Cascais, que são selecionadas pela assistente social do projeto e pelas juntas de freguesia de residência. Aqui a missão é apoiar e capacitar famílias que estejam a viver dificuldades financeiras temporárias, através do acesso a refeições de qualidade a um preço simbólico e a um plano de capacitação e acompanhamento.

Ana Avillez, diretora executiva da Cozinha com Alma, conta que cada família é diferente e precisa de ser acompanhada. “Por vezes, há situações de sobreendividamento, de desemprego, de emprego precário e os mentores ajudam as famílias a serem autónomas porque o apoio é temporário”, conta.

A pandemia somou dificuldades económicas a mais famílias e por isso a Cozinha com Alma lançou um novo programa – o CO-alma – para dar resposta às famílias que estão a ter dificuldade em garantir as suas despesas básicas.

“O programa apoia 40 famílias, a somar às 72 que integram a nossa bolsa social. É um apoio que tem a duração de um mês e que pode ser renovado, mediante uma avaliação” relata a diretora executiva da Cozinha com Alma.

Além do lucro das refeições, a associação conta com o apoio de vários parceiros e ainda de donativos.

Desde o início da pandemia, nunca deixaram de trabalhar. As vendas aumentaram e o novo serviço de entrega ao domicílio permitiu conquistar mais clientes fora do concelho.
“É uma ideia brilhante. A comida é melhor que no restaurante”

Nuno Campos entra na loja com um saco amarelo debaixo do braço. Está junto ao frigorífico dos congelados, conhece bem os cantos à casa. “Eu já morei aqui perto, em Cascais, mas agora vivo em São Pedro de Sintra, mas venho cá três vezes por semana. Não gosto de cozinhar e a minha mulher e o meu filho são vegetarianos. Aqui tem todas as comidas que gosto”, conta.

“O meu prato favorito é o bacalhau com broa, melhor do que em qualquer restaurante”, garante à Renascença. Nuno Campos já vai à Cozinha com Alma comprar comida há vários anos e considera que “esta ideia é brilhante porque ajuda muitas famílias”.
Na loja, há refeições congeladas, e outras que precisam apenas de aquecer no micro-ondas. A ementa é muito variada: há empadão de atum, souflés, empadas, croquetes; há sete pratos diferentes de bacalhau, arroz de pato, rosbife, strudel de legumes, etc.

Cada um deles tem quatro preços diferentes: o de venda ao público e os três escalões onde estão integradas as famílias – e que podem custar, por exemplo, 30, 60 ou 90 cêntimos.

“Cada família tem um cartão com um plafond máximo por mês que permite ter uma refeição diária para cada elemento do agregado familiar. Tem de gerir o seu orçamento”, conta Cristina de Botton, sublinhando que as “refeições são muito variadas e todas com muita qualidade”.

A um mês do Natal, a ementa já está disponível para encomendas e à porta da loja está uma árvore de Natal feita com tábuas de madeira onde estão penduradas 72 estrelas – uma por cada uma das famílias da bolsa social.

Cristina de Botton tira uma delas. “Esta família tem quatro pessoas: mãe com 49 anos, pai com 45, filho com 19 e filha com 13. A ideia é colocar no cabaz os alimentos essenciais para a ceia de Natal, mas há quem coloque também um presente para a família”, revela.

A fundadora da Cozinha com Alma diz que qualquer pessoa pode assim ajudar e dar um “mimo” a estas famílias nesta época de Natal.

Deco alerta para degradação da qualidade de vida em lares com a pandemia

Ana Carrilho, Olímpia Mairos, in RR

Estudo revela que o tempo de espera por uma vaga chega a ser de cerca de meio ano e critica o que chama de preços incomportáveis, com médias mensais a rondar os 950 euros, por utente.

A Deco diz que a pandemia expôs de forma inquestionável as debilidades dos lares de idosos. Na sequência de dois estudos, a Associação para a Defesa do Consumidor concluiu que é evidente a deterioração da qualidade de vida dos utentes, seja a nível mental, seja ao nível da mobilidade.

Os dados revelam que os utentes dos lares pagam em média 950 euros por mês. Mas como a pensão média em Portugal ronda os 740 euros, o remanescente fica por conta da família.

Os tempos de espera para entrar numa instituição também são muito elevados. Um problema, sobretudo, numa altura em que este serviço se mostra mais necessário, diz à Renascença Bruno Santos, da Deco Proteste.

“Relativamente ao tempo de espera, levei cerca de 108 dias para estruturas privadas e cerca de 170, à volta de meio ano, para IPSS e lares de misericórdia. Há outras estruturas que têm listas de espera”, conta este responsável, acrescentando que “na altura em que é preciso acudir a estas pessoas e às suas famílias, esse serviço não está disponível e, portanto, temos aqui, claramente, um problema de acesso”.

Mais grave, em geral, é a degradação do estado de saúde dos idosos, a nível da mobilidade e mental, desde a entrada no lar até à altura da sua morte. E a pandemia só veio agravar a situação. “Há um agravamento generalizado das condições de saúde com especial relevância para a saúde mental dos utilizadores dos lares”, constata.

Bruno Santos dá conta de “um relato muito detalhado das insuficiências que, aquando da declaração da pandemia, eram bem visíveis nos lares” e exemplifica com a “insuficiência dos materiais de proteção, como fatos de proteção, máscaras, produtos de higienização, teste, etc”.

A estes, assinala o responsável, “podemos acrescentar outros dados que conhecemos, como a falta de orientações detalhadas adequadamente exequíveis para este tipo de estruturas, a insuficiência das equipas e a sua eventual impreparação, ou seja, eu diria que estava criado tudo para que assistíssemos e continuemos a assistir aos problemas que hoje temos nos lares”.

Segundo os dados da Deco Proteste, antes da quarentena, 69% dos idosos não sofriam de qualquer problema grave de saúde, percentagem que baixou para 57% após o isolamento.

Ainda assim, os familiares revelam uma satisfação geral relativamente ao trabalho desempenhado pelas equipas nos lares.

Os dados foram recolhidos pela Deco Proteste, através de dois inquéritos realizados junto de familiares de utentes, um tendo em conta os últimos cinco anos e outro relativo ao confinamento provocado pela pandemia.

Para a organização de defesa do consumidor, os dados confirmam que é preciso aprender alguma coisa com a pandemia e redefinir a estratégia para este setor.

Teletrabalho. Faz sentido tributar mais os profissionais?

Cátia Mateus, in Expresso

O Deutsche Bank está a defender a criação de um imposto adicional para quem está em teletrabalho. Patrões, sindicatos, advogados e investigadores alertam para os riscos desta opção

Retirar a quem está em teletrabalho e ganha mais para dar a quem não pode gozar deste benefício e tem o seu emprego em risco. É este o princípio que está na base de uma proposta recente do Deutsche Bank que apanhou de surpresa patrões e sindicatos. O banco alemão propõe tributar os profissionais em teletrabalho, num valor correspondente a 5% do seu salário ilíquido, para depois usar essa receita para apoiar os trabalhadores com baixos salários que não podem trabalhar remotamente ou aqueles que perderam o emprego. Sindicatos e patrões dizem que o princípio da solidariedade é bom, mas que não dever ser imputado aos trabalhadores.

“Há anos que precisamos de um imposto sobre os trabalhadores remotos — a covid tornou isso óbvio.” É desta forma que Luke Templeman, economista do Deutsche Bank que assina a proposta sustenta a ideia de que é preciso tributar os profissionais em teletrabalho. Diz Templeman que “aqueles que podem trabalhar remotamente, a partir de casa, têm benefícios financeiros diretos e indiretos” e que, por isso, “devem ser tributados para facilitar o processo de transição para aqueles que perderam o emprego” ou que ganham baixos salários.

O economista sustenta que um trabalhador que possa trabalhar a partir de casa consegue poupar em deslocações, alimentação, roupa e outros gastos que um trabalhador presencial não consegue eliminar. Além disso, sinaliza, contribui menos para a economia.

É por isso que o economista do banco alemão defende como justa a criação de uma tributação adicional — da qual ficariam isentos os trabalhadores com remuneração ao nível do salário mínimo, independentes, jovens em início de carreira — que, acredita, face à poupança que conseguem fazer por estar em trabalho remoto, que não prejudicaria os trabalhadores.

IDEIA NÃO REÚNE CONSENSO

Mas entre patrões, sindicatos e o próprio Governo a ideia parece não colher frutos. O Expresso sabe que o Governo não têm, para já, intenção de colocar este tema em cima da mesa. Mesmo que tivesse, teria sempre de passar pelo crivo de patrões e sindicatos, em sede de concertação social. E nem uns nem outros acham a ideia viável.

“Não vejo porquê sobrecarregar com mais impostos determinados profissionais, independentemente da sua natureza ou regime em que trabalham, para apoiar outros”, defende António Saraiva, presidente da Confederação Empresarial de Portugal (CIP) que tem dúvidas que a ideia seja viável. O presidente da CIP reforça que “o Governo certamente não quererá introduzir mais ruído numa equação já de si complexa como a do teletrabalho”.

Entre os sindicatos, Sérgio Monte, secretário-geral-adjunto da UGT, considera “absurdo ir por este caminho quando sabemos que o teletrabalho introduziu novos fatores de stresse aos profissionais”. Recorda ainda que “o objetivo de ajudar quem tem salários mais baixos é fantástico, mas não me parece que tenham de ser os restantes trabalhadores remotos a pagar esse apoio”.

E, na verdade, a ideia pode até ser barrada pela própria legislação. A advogada Rita Garcia Pereira diz que a medida seria inconstitucional e “violaria o Código do Trabalho que define que um profissional em teletrabalho tem os mesmos direitos que os demais”. Ou seja, “não se pode imputar um imposto a estes trabalhadores que não seja aplicado aos restantes”.

Também Tiago Santos Pereira, investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e coordenador da linha de investigação em Teletrabalho do CoLabor, tem dúvidas sobre a justiça de onerar os teletrabalhadores. O especialista recorda que nem sempre os teletrabalhadores têm remunerações elevadas ou funções à prova de desemprego. Acrescenta ainda que “há maior vulnerabilidade no campo da saúde mental e da discriminação na progressão na carreira e nos salários”. Por outro lado, acrescenta, mesmo na poupança que é imputada às empresas como consequência do teletrabalho é preciso cautela na análise. “O teletrabalho implica uma reorganização de processos, formação de chefias, o que significaria necessidade de investimento por parte das empresas.”

Portugal terá "níveis muito baixos" de novos casos se as pessoas se mantiverem mais isoladas e em teletrabalho, prevê agência europeia

in Expresso

O país pode descer para menos de 2 mil infetados em janeiro, mas só se mantiver as restrições, avisa o Centro Europeu para Prevenção e Controlo das Doenças

O Centro Europeu para Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC), criado com a missão de ajudar os países europeus a dar resposta a surtos, estima que, se Portugal mantiver as restrições adotadas atualmente, irá registar em dezembro "níveis muito baixos" de novos casos de covid-19, seguidos de menos admissões hospitalares e mortes.

"Nas mais recentes projeções, estimámos que 22 dos 31 Estados-membros [da União Europeia e do Espaço Económico Europeu] terão uma redução do número de casos confirmados e, subsequentemente, das admissões hospitalares e mortes, para níveis muito baixos", indica o ECDC.

Portugal é um desses países, mas isso apenas se "mantiverem as medidas de resposta em vigor a 18 de novembro de 2020 e até ao final do período de previsão, que é 25 de dezembro de 2020", acrescenta a agência europeia, aludindo ao relatório divulgado esta semana.

Numa altura em que a situação epidemiológica relativa à doença covid-19 se continua a agravar em Portugal, com novos máximos diários de internamentos e nos cuidados intensivos, o país encontra-se em estado de emergência, com restrições à circulação na via pública durante a semana e fins de semana e aos trajetos entre concelhos nos feriados, horários mais limitados para comércio e restauração e uso obrigatório de máscara na rua e nos locais de trabalho.

Se estas medidas continuarem a serem adotadas em Portugal, o ECDC prevê, no relatório divulgado esta semana com projeções a curto prazo sobre a evolução da situação epidemiológica na União Europeia (UE), que após um pico de infeções em meados de novembro, se registe um abrandamento acentuado em dezembro, que deverá culminar em menos de 2.000 casos diários em janeiro.

No caso dos números diários de mortes, de internamentos e de entradas nos cuidados intensivos, o pico deverá ser atingido em dezembro, de acordo com esta agência europeia, que prevê um abrandamento em janeiro.

Evitar um aumento das infeções na altura festiva requer "uma combinação de medidas - incluindo medidas de distanciamento físico, medidas de permanência em casa, tais como teletrabalho, isolamento em caso de sintomas e a implementação de testes generalizados e rastreio de contactos", e depende "do rigor com que as pessoas aderem às recomendações".

"Dadas as medidas de resposta atualmente em vigor, prevemos que mais de metade dos Estados-membros da UE e do Espaço Económico Europeu observarão uma redução de mais de 50% no número diário de casos confirmados, e uma subsequente redução na procura hospitalar associada e mortes", refere o ECDC no relatório.

Ao mesmo tempo, "espera-se que mais de dois terços dos Estados-membros registem alguma diminuição na taxa diária de casos confirmados como consequência das políticas atuais", acrescenta. A agência europeia de saúde pública admite, porém, que estas projeções "continuam a ser um grande desafio, uma vez que estão muito dependentes das políticas decretadas pelos Estados-membros".

No caso das estimativas divulgadas esta semana, "foram feitas logo após a implementação de novas medidas, incluindo ordens e recomendações para permanência em casa", pelo que "há poucos dados observados sobre o seu impacto e amplos intervalos de incerteza", salvaguarda o ECDC.

Outro cenário equacionado pelo ECDC neste relatório foi se "o comportamento regressasse ao de 1 de abril de 2020, quando as medidas mais rigorosas estavam em vigor em toda a Europa", tendo a agência verificado que, nesse cenário, "todos os países assistiriam a um declínio na incidência da covid-19".

Candy, Balzac e Mira ao serviço de crianças com deficiência

Ana Cristina Pereira, in Público on-line

A Ânimas eleva para 35 o número de cães de assistência que treinou para adultos e crianças com deficiência. Balzac está ao serviço de Gustavo, Mira ao serviço de Victor, Candy ao serviço de Leonor. O Dia Internacional das Pessoas com Deficiência assinala-se a 3 de Dezembro.

Leonor soltou gritos agudos ao ver a cadela à porta. A alegria era tanta que se tornava difícil perceber tudo o que ela estava a dizer. “Ó Candy! Ó Candy!”. Nem sabia se havia de lhe fazer festinhas, se havia de abraçá-la, se havia de passeá-la. “Ela pode entrar dentro da sala? Mãeeeeeeeeee!” Queria mostrá-la aos quatro companheiros da sala do ensino inclusivo.

Não é uma cadela vulgar esta que assim se apresentou na Escola Básica Marques Leitão, na freguesia de Valbom, no concelho de Gondomar. É uma cadela de assistência treinada por António Correia Neves, um educador de cães que faz voluntariado na associação particular de solidariedade social Ânimas, entidade que em Portugal pode certificar cães de assistência.

O andarilho azul destacava-se no corredor de tons pálidos, mesmo ao lado da porta da sala. Leonor desloca-se com dificuldade. Nasceu prematura, com atresia esofágica. No primeiro dia de vida, foi operada. Por um momento, o oxigénio não lhe chegou ao cérebro. E esse momento deixou-a com sequelas para sempre. Ficou com paralisia cerebral.

“Ela percebe tudo o que dizemos”, afiançou a mãe, Sílvia Lopes, de 34 anos, menos um do que o marido, mais 22 do que as duas filhas gémeas. “Consegue socializar normalmente, mas tem muitas dificuldades de aprendizagem. Tem óptima memória auditiva, mas péssima memória visual. Não consegue aprender a ler e a escrever. Se dissermos um ‘p’ e um ‘a’, ela sabe que é ‘pa’. Se mostrarmos um ‘p’ e um ‘a’, ela tem dificuldade em ler.”

O andarilho fica na escola. Em casa, Leonor anda ou gatinha. Se a família tiver de ir a algum sítio, serve-se de uma cadeira de rodas. A esperança da mãe era Candy fazê-la esquecer-se do cansaço, treinar a marcha, ganhar resistência. “Se for com a Candy, pode ter mais vontade de andar, pode ter aquela vaidade.” O terapeuta que a apoia também contava com isso.

Naquela manhã de Setembro, Candy entrou pela primeira vez em casa de Leonor. E Leonor não parou, quis mostrar-lhe todos os cantos. “Candy! Ó Candy!” Sílvia já as imaginava em cada manhã: Leonor a segurar-se no arnês de Candy e a dar os passos necessários, em vez de se atirar da cama para o chão e gatinhar até à casa de banho, como gostava de fazer.

Grande missão, a de Candy. Além de espantar a preguiça de Leonor, teria de trazer-lhe algum conforto emocional. Nem sempre é fácil lidar com a sua revolta. A irmã gémea, Letícia, não tem qualquer incapacidade. Vê-la fazer tudo é ver tudo o que ela não pode fazer. “Queremos que ela sinta que nem tudo é mau. Ela tem direito a um cão de assistência, a um amigo especial, e a irmã não...”

Leonor continuava a andar pela casa com a cadela, sob o olhar atento do treinador, mais conhecido por Chico, que lhe ia explicando como falar com o bicho, como não o confundir. Candy estava quase pronta para entrar ao serviço.

Um grande caminho percorrera até chegar àquele estádio. “A gente nem lhe pode fazer uma festinha”, comentara Chico ainda em Janeiro. “Todos têm a sua personalidade. E esta é uma cadela feliz, que aprende bem, mas tudo a grande rotação!” No pico do Verão, no campo, já não falhava: “Direita”, “esquerda”, “senta”, “deita”. Pelo que Chico estava a ver naquela manhã, só tinha de a ensinar a “andar mais direitinha”. Havia de voltar a trazê-la dali a pouco, para passar a tarde com a família, já sem ele por perto. Era o início do chamado “acoplamento”, a fase em que, gradualmente, pessoa e cão se conhecem.

Voluntariado e mecenato

Não é um negócio. A Ânimas – Associação Portuguesa para a Intervenção com Animais de Ajuda Social cede os animais gratuitamente a pessoas que deles carecem para serem mais autónomas, mais funcionais. Pode ser uma pessoa com deficiências motoras que precisa que o cão lhe apanhe objectos do chão ou acenda luzes, uma pessoa surda que precisa que a alerte para o toque de uma campainha ou o choro de um bebé, uma criança com síndrome de autismo que precisa de ganhar mais competências sociais.

Para que isso seja possível, há toda uma cadeia de solidariedade. Os cães são doados à Ânimas por criadores. Famílias de acolhimento, voluntárias, cuidam deles durante seis a 12 meses. Os instrutores, também voluntários, treinam-nos durante outros dez a 12. Os encargos com alimentação e saúde são suportados por mecenas e donativos deduzidos à colecta de IRS.

Ao que conta Abílio Leite, presidente da Ânimas, na origem desta história está um grupo de profissionais. Liliana de Sousa, professora do Instituto de Ciências Abel Salazar especializada em Comportamento Animal, criou um grupo de trabalho. Em 2002, um curso de Treinador foi ministrado por um formador da Fundação Bocalán, em Espanha, entidade que um ano antes começara a treinar animais recorrendo a procedimentos mais científicos e respeitadores das suas capacidades de aprendizagem. Terminado o curso, alguns decidiram criar a associação. Liliana de Sousa foi a primeira presidente.

A associação envolve técnicos de saúde, psicólogos, médicos, médicos veterinários, professores universitários, instrutores de cães de assistência. Promove actividades assistidas por animais (em contexto institucional, como forma de bem-estar), terapia assistida por animais (intervenção realizada por profissionais de saúde que incorpora o animal no processo terapêutico) e treina cães de assistência.

Até 2017, um total de 12 cães de assistência foram acolhidos por 12 pessoas. Daí para cá, “com mais apoio, outra organização”, o ritmo acelerou. Em 2018, sete. Em 2019, outros sete. Este ano, nove.

Há uma história que correu mal: um cão era muito hábil, mas nem sempre tinha comportamento adequado em público, rosnava. Após uma tentativa de reeducação, foi desclassificado, conta Abílio Leite. A pessoa que o recebeu continua a viver com ele, mas a pessoa que o treinou foi dispensada pela associação.

Esse não é assunto de que goste de falar. Não quer pôr em causa a reputação da Ânimas, associada da Assistant Dogs International, que reúne todas as organizações sem fins lucrativos do mundo no sector da formação de cães​. Pede a devolução do colete identificativo, espécie de passaporte que permite entrar em qualquer lado. O meio já foi abalado pelo fundador da Associação Portuguesa de Cães de Assistência, em 2018 acusado de burla por dezenas de famílias de todo o país, a quem cobrou avultadas verbas por cães nunca treinados.

No próximo ano, serão entregues pelo menos cinco cães de assistência. Chico conta entregar dois e os outros três treinadores entregarão pelo menos um cada um. “O Chico é o mestre, a referência, o coordenador dos cães de assistência”, diz Abílio Leite.
O treinador-estrela

A “mania dos cães” vem-lhe da infância. Chico cresceu numa quinta, numa parte alta do Funchal. A família tinha um cão, vários coelhos, outras tantas galinhas. Aos nove anos, mudou-se para um apartamento, em Lisboa, e foi avisado de que não havia espaço para tanto bicho. Um desgosto, aquilo.

Cuidou de um hamster e de um par de periquitos, sem deixar de pedir um cão. Só quando a cunhada recebeu uma cadela de que não podia cuidar, viu o seu desejo satisfeito. Chamava-se Migalhas. Era uma dachshund, a que muitos chamam “cão-salsicha”. “Tinha um feitio terrível”, recorda. Chico ia nos 16 anos. Pôs-se a educá-la. “As novidades causavam furor na família...”

Quando um tio comprou um são-bernardo, também tratou de o educar. Não foi preciso mais. Tornou-se o educador de cães da família. Ensinava-os “a serem simpáticos” e “a fazerem duas ou três habilidades”. Todo satisfeito, levava-os a exposições de cães. Foi este gosto que o conduziu ao curso de Engenharia Zootécnica, na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD).

Ninguém se surpreenderá ao ouvi-lo dizer: “O meu sonho era ter a minha quinta e os meus animais.” Ainda trabalhou na Purina, na Associação de Criadores de Marnês e na UTAD antes de montar um centro hípico. “Tinha amigos que entravam em exposições e que iam lá aos cavalos e viam os meus cães: ‘Ah, eu vou trazer o meu cão, que o meu cão tem um problema assim ou assado’.” Quando deram por ela, Chico e a nova companheira, Teresa Martins, veterinária de formação, estavam a hospedar cães.

Quem o ouve falar nisso conclui que aconteceu tudo mais ao menos por acaso. “As pessoas iam de férias, nós ficávamos, tínhamos os cavalos. Fomos fazendo canis, mas sempre a trabalhar muito com os cavalos.” Essa parte também crescia. “Eu tinha um sítio e duas éguas e um amigo disse: “Ah, se tu quiseres, eu ponho aí o meu cavalo...” Aceitou um, dois, três, quatro, seis, sete.

Ia com os cavalos à Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental e levava alguns cães. Queria que se habituassem a estar com pessoas diferentes. Enquanto esperavam a vez para montar, rapazes e raparigas podiam entreter-se a brincar com eles. Faziam-lhes festas, formavam arcos com as pernas para que eles pudessem passar, atiravam uma bola e esperavam que os cães a fossem buscar. Ao ver aquilo, a terapeuta ficou com vontade de fazer intervenção terapêutica assistida por cães.

Naquela altura, a Ânimas estava a nascer. Chico ainda ouviu falar no primeiro curso para treinadores de cães de assistência dado pelo treinador da Fundação Bocalán que viria de propósito de Madrid ao Porto aos fins-de-semana. Não conseguia integrá-lo. “Aos fins-de-semana é que eu ganhava o dinheiro com os cavalos. Fiquei com aquilo atravessado...” Apresentou-se mal a Ânimas abriu o primeiro curso de duplas para cães de intervenção, que certifica duplas de cães e pessoas para ir a lares de idosos, centros de dia, centros de actividades ocupacionais, unidades hospitalares, estabelecimentos prisionais. Em 2004, estava em Madrid a fazer o curso de cães de assistência.

Quis entregar o primeiro como cão social, isto é, “um cão bem-educado, mas que não dá para levar a todo o lado”. “Insegurança. Era o primeiro...” Chamava-se Quira. Seguiu-se a Cuca e essa já foi entregue como cadela de assistência. Desde então, já perdeu a conta aos cães que educou, embora não lhes tenha esquecido os nomes e as manhas. Nos últimos anos, treinou vários cães para crianças com síndrome de autismo, como Gustavo.
Balzac e Gustavo

Sete anos tem Gustavo. Quem olha para ele vê um rapaz franzino a atirar uma bola colorida a um labrador. Já aconteceu, numa praia concessionada, alguém chamar a Autoridade Marítima, por haver um cão no areal. “Não vêem a deficiência”, suspira a mãe, Sónia Oliveira. “O Balzac anda identificado. Claro que já nos questionaram, mas questionar é normal. Se não sabem, podem perguntar...” – sobre o cão. A família não tem de andar a explicar a desconhecidos que o filho tem perturbação do espectro do autismo...

Uma tia-avó é que desconfiou. Aos 20 meses, Gustavo não dizia uma palavra. Abanava repetidamente os braços, como um pássaro. Era impossível mudar-lhe a fralda numa estação de serviço. “Tinha se ser num sítio conhecido.” O neuropediatra confirmou a suspeita. Um outro confirmou o diagnóstico.

Sónia e o marido, Ricardo, tiveram os seus momentos de revolta: “Porquê? Porquê nós?” Acabaram por aceitar. “Por que não nós?” Aos 24 meses, Gustavo estava a iniciar as terapias. “O nosso foco desde então tem sido fazer tudo por tudo para o Gustavo se desenvolver”, diz ela. O mais difícil? “Nunca ouvi a palavra mãe”, responde. “Ao início, nem olhava para nós”, diz ele. “Nós chamávamos e ele nem olhava. Era como se não desse pelo nome. Agora, está diferente. Não tem comparação possível. Mas temos um caminho longo. Isto é um dia de cada vez.”

Procurando cumprir rotinas para lhe proporcionar um ambiente seguro, Ricardo optou pelo trabalho nocturno. Assistem ambos às terapias, o que lhes permite repetir tudo em casa. Ele é mais físico, acompanha mais os exercícios desportivos, ela é mais mental, trabalha mais a postura, os jogos à mesa. Foi o que lhes valeu no confinamento. Esse conhecimento e terem em casa uma sala com baloiço, trampolim, colchão eléctrico, uma autêntica sala de terapias. Balzac encaixa nesta busca permanente de estratégias para o ajudar.

Nem sabiam que havia cães treinados para estar ao serviço de crianças com autismo. Ao deparar-se com a Ânimas, Sónia escreveu a perguntar: “Se comprasse um cão, podiam treiná-lo?” Abílio explicou-lhe que não trabalhavam assim. Recomendou-lhe que candidatasse Gustavo a um cão de assistência.

O que descreve é um processo de adopção. “Fiz a candidatura em Abril de 2018. Justifiquei. Anexei os relatórios médicos. Contactaram-me em Fevereiro de 2019. Fomos a uma entrevista. Estavam duas psicólogas e dois treinadores de cães. Estava uma cadela de intervenção. O Gustavo começou logo a interagir com ela.” Avaliação positiva, família seleccionada. Só faltava encontrar o cão adequado. Uma técnica ainda fez duas visitas a casa, uma vez com um cão, outra vez com outro. Um belo dia, apresentaram-lhes Balzac. “Nós adorámos o Balzac. O Gustavo começou a brincar com ele.” Conviveram umas horas, conviveram um dia, conviveram um fim-de-semana. “O treinador também tem de sentir que o cão está bem...”

O cão mudou-se lá para casa no dia 20 de Julho daquele ano. Sónia domou as suas expectativas. “Não coloquei na cabeça que o Balzac ia salvar o meu filho. Se o ajudar a desenvolver-se mais um por cento, óptimo. Um por cento aqui, um por cento acolá, tudo contribui.” Está satisfeita. “O Balzac contribui para o bem-estar do Gustavo, interage com ele. Ele dá-lhe beijinhos.”

Houve acertos, como é costume. No princípio, estavam ambos na cama a dormir, Gustavo empurrou Balzac e este rosnou. Os pais ficaram atrapalhados. “É proibido rosnar seja a quem for”, advertiu Chico. “Você tinha que dar um berro ao cão, de o pôr a mexer, de zangar-se a sério. Ninguém toca no Gustavo. O cão tem que perceber que o Gustavo é sagrado, está a perceber?”

Não vão juntos para a escola. Gustavo não é verbal, usa um sistema de comunicação alternativa, com pequenas figuras. E Balzac está treinado para reagir à fala. A mãe deixa Gustavo na escola e segue com Balzac para o trabalho. Tirando aquelas horas, estão sempre juntos – em casa, no parque, na praia.

Criaram novas rotinas. “O Gustavo dá-lhe de comer. O Balzac sabe que come depois do Gustavo.” Sónia nota diferenças, até nela e no marido. “Deixámos de olhar para o autismo 24 horas por dia. O Gustavo é filho único e não gosta de estar sozinho. O Balzac veio ajudar-nos. Ela agora tem outro foco.” Isso liberta-os para outras tarefas. Até as brincadeiras mudaram. Eram todas feitas em função das terapias. Agora, não. Agora, há brincadeiras que são só diversão.

Os treinos

Ouve-se latir ao chegar à quinta, no concelho de Sabrosa, no distrito de Vila Real. Nas férias de Verão, podem estar dezenas de cães nos canis, primeiro edifício que encontra quem chega. Na casa térrea habitada por Chico e Teresa pode estar uma dezena, os da casa e os que ele está a treinar.

“Não se nota”, regozija-se Chico, afundando-se no sofá. “Entra-se em casa e não há futebol. Já correram, já saltaram… Damos um passeio grande. Às vezes, pedem um bocadinho de mimo, a gente dá um bocadinho de mimo e ficam sossegadinhos.”

Não dá para escolher os cães que treina para prestar assistência. “Tinham que ser escolhidos, há uns testes todos XPTO, mas não são escolhidos”, diz. “Há alguém que tem um labrador e quer dar o labrador. A Ânimas quer? Queremos, venha o labrador. Depois, a gente tem que trabalhar com o que há.”

Na arte de educar canídeos, ajuda ter ovelhas. Vários cães acompanham-no na ida para o pasto e no regresso. “Uma pessoa chega ali, vê as ovelhas e a gente diz ao cão: ‘À direita!’ E ele vai por este lado, põe-se atrás das ovelhas para as trazer.”
Nas férias de Verão, podem estar dezenas de cães nos canis da quinta de António Correia Neves

Leva-os para todo o lado. Têm de se habituar a ir a qualquer lado e a passar despercebidos. Podem frequentar transportes públicos, cinemas, teatros, restaurantes, centros comerciais, hospitais e outros serviços públicos. Não se coíbe de lhes levantar a voz ou de lhes dar uma sapatada. “Os cães têm que perceber que é proibido morder e rosnar. Se o cão não está confortável, levanta-se ou vai-se embora e põe-se num sítio onde o miúdo não chegue. Também é preciso controlar o miúdo para o miúdo não chatear o cão, não é? Não é para saltar em cima do cão, puxar as orelhas, nada disso.”

Prepara-os para receber muitos mimos. “Têm de se preparar para depois não ficarem aflitos”, salienta. “Muita gente diz-me: ‘O meu cão não gosta de festas.’ Não gosta porque você não faz! Faça festas, agarre-o e apalpe-o, ele vai estrebuchar. No dia seguinte, agarre-o e apalpe-o e ele vai-se embora outra vez. A certa altura, ele já virá ao pé de si: ‘Então, hoje não me apalpas?’ Porque eles gostam disto, mas, se ninguém fizer, não sabem o que é, a mãe deles não andou a abraçar e a fazer festinhas. Nunca provaram, não vão pedir...”

Os primeiros cães treinados para crianças com perturbação do espectro do autismo eram uma espécie de cães-âncora. Subjacente, explica Chico, estava um dos maiores terrores parentais: “O miúdo autista larga a mão do pai no meio da rua e desata a correr, a fugir; estando amarrado ao cão, o cão senta-se e ele pára”. Estando a criança atrelada ao cão, o adulto podia ficar descansado. “Cá não querem, porque o miúdo vai preso ao cão e socialmente parece mal: ‘Agora leva o miúdo preso ao cão, onde é que já se viu? Então o cão vai-se embora e arrasta o miúdo?!...’ É ao contrário, mas as pessoas não sabem e põem-se logo a falar. Então, os pais dizem que não precisam.”

Muitas vezes perguntam-lhe se não tem pena de entregar os cães, depois de um ano ou mais com eles. “O cão está aqui, vive aqui connosco. Está claro que tenho pena de entregar o cão, mas, quer dizer, não há coisa que me dê mais alegria do que ver estas pessoas com o cão, não é? Tratam melhor do cão do que eu trato, porque têm muito mais tempo disponível para o cão do que eu tenho. Eu tenho de distribuir o meu tempo por este e mais não sei quantos...”, diz. Teresa não vai com ele entregar cão algum. Nem se despede. E chora. Chora sempre. Do outro lado também se chora, mas de alegria.
Mira e Victor

Victor conta oito anos e sempre viveu com uma saúde demasiado periclitante. “Ele não é autista”, esclareceu a mãe, Elizabeth Deschauer, autora do blogue Trajectória Consciente. Tem acidemia metilmalónica com homocistinúria, uma doença rara que provoca anemia megaloblástica, letargia, atraso de crescimento, atraso no desenvolvimento, défice intelectual, convulsões. “Tem hiperatividade. Baixa visão. Tem algumas características autistas, mas não está dentro do espectro. Ele adora pessoas, ele adora comunicar.”

Cedo deu sinais de que algo não estava bem. “Ele não queria mamar. Quando conseguia, vomitava. Ficava prostrado.” Ao décimo dia, a temperatura desceu. Entrou em coma. Para obter um diagnóstico rápido no Brasil, havia que “pagar uma boa quantia”. Envolta em “sofrimento e incerteza”, a família pagou.

Passaram três anos a tentar garantir-lhe a assistência médica necessária no Brasil, “sempre com dificuldade”. Quando perceberam que em Portugal havia tratamento no Serviço Nacional de Saúde, ganharam novo alento. “Como parte da família do meu esposo tem nacionalidade portuguesa, decidimos vir.”

Não se arrependeram. A mãe não se cansa de dizer que Victor “tem melhorado bastante”. “Tinha medo de tudo. Reagia muito aos sons.” Os cães confirmavam a regra: qualquer latido o assustava. “Devagarinho, fui levando a ver cães...”

No primeiro encontro com Mira, Victor ainda mostrou “um pouco de medo”. Num progressivo trabalho de aproximação, Chico deslocou-se à casa da família, na Maia, diversas vezes. “Até que foi um processo rápido”, na avaliação de Elizabeth. “Ele percebeu que pode confiar nela. Hoje em dia, são muito amigos.”

Quem os visitava via-o alternar da pequena piscina para o trampolim e para outros instrumentos dispostos nas traseiras da casa e no quintal. “É”, confirmava a mãe, enquanto a irmã, Sofia, de 17 anos, o entretinha. “O Victor não fica o tempo todo ‘grudada’ nela, mas gosta de saber que ela está ali. Faz miminhos nela. Brinca com ela. Ele vai dormir, ela sobe e vai com ele.”

O rapaz exige atenção permanente. “Estando acordado, tem de estar alguém com ele”, ia desfiando. “Eu não trabalho. Fico em função do Victor.” Com a pandemia, tudo se tornou mais cansativo. Meses sem ir à escola nem às terapias, e a mãe dividida entre ele e o outro filho, recém-nascido. “Se estiver com ele fazendo actividade e chegar alguém para falar comigo, ele se altera. Ele vem e dá um grito. Daí a pouco, vem e me belisca. Daí a pouco, vem e me morde. Não adianta botar de castigo porque ele não consegue entender.”

Embora inquieto, está mais estável desde que Mira se juntou à família, em Setembro de 2018. A mãe nota até um abrandamento nas convulsões, que começou a ter por volta dos três anos e meio. “Era de difícil controlo. Tomava muita medicação. E sempre tinha crise.” “Ele tinha uma média de oito crises. A Mira chegou, teve três. No último ano, só teve uma.”

Não tem explicação para isso. “As vezes que teve crise, chamei a Mira. Ela deitou-se próximo. Estava ali junto. Não sei se solta hormonas que ajudam a relaxar. Sei que ajuda bastante. A medicação é praticamente a mesma que estava usando quando ela chegou. Não posso dizer que foi a medicação que mudou.”

Há quem já esteja a investigar essa relação. Elizabeth só pode relatar o que observa. “Eles têm uma ligação forte. Se o Victor se sente ameaçado, ele procura: ‘Mamãe, Mira.’ Chama para junto dele. Para ele, a Mira significa segurança.”
Candy e Leonor

Um relâmpago, a integração de Candy na família Lopes. Chico ensinou-a “a andar mais direitinha” e ia deixá-la só umas horas num fim-de-semana, planeando voltar dali a pouco para a deixar um fim-de-semana inteiro. Acabou por deixá-la logo. A família já adoptara a cadela. A mãe assumira a responsabilidade.

“Está a correr muito bem”, assegura Sílvia. “Noto uma grande evolução. A Leonor já aguenta ir ao shopping a pé. Tem aquela vaidade de andar com o cão e já não pede a cadeira. Está mais calma. Claro que ainda faz birras. Começam as birras e a cadela vai lá, encosta a cabeça. Dá-lhe aquele clique. A Leonor pára.”

Levar a cadela para a escola também a ajuda a socializar. “Os miúdos de outras salas, sem necessidades especiais, têm curiosidade e aproximam-se da Leonor de outra forma.” E isso mudou a sua atitude em relação à escola. Tem mais vontade de ir. “Se digo que a Candy não vai, porque tenho de lhe dar banho, diz logo que não.”

Candy só não acompanha Leonor nos treinos de boccia, um desporto adaptado introduzido em Portugal pela Associação Portuguesa de Paralisia Cerebral. Foi integrada nas terapias. Dorme no quarto dela, no chão, numa caminha. Vai buscar-lhe o calçado. Se for preciso, leva-lhe a lancheira.

Leonor aguarda pelo arnês, que tornará mais prática a ideia de se poder segurar. E cumpre a tarefa de levar Candy à rua de manhã. A irmã ou os pais tratam disso ao final do dia. Não querem que Candy se sinta sempre em guarda. “A cadela também tem de brincar, de relaxar”, torna Sílvia. É muito brincalhona. Salta, lambe, rebola no chão. Se lhe dizem para parar, pára. Assume uma postura profissional. “Quando está a trabalhar, está a trabalhar!” A cerimónia de entrega oficial ficou agendada para o final deste mês.

Confinamento. Teletrabalho, precariedade e rendas vão agravar brutalmente desigualdade em Portugal

Luís Reis Ribeiro, in Dinheiro Vivo

Durante o período da troika, a desigualdade aumentou, mas desde 2015 que estava a melhorar. Estudo citado pelo FMI avisa Portugal: vai ser das sociedades mais dilaceradas pelo confinamento.

Portugal trilhou um caminho nos últimos anos em que conseguiu reduzir o nível de desigualdade na distribuição de rendimentos (índice de Gini ou IG). Mesmo com este progresso, em 2019, o País continuava a ser o nono mais desigual da Europa, isto é, tem o nono fosso mais fundo entre ricos e pobres. Um pouco mais cavado do que em Chipre, ligeiramente menos que no Luxemburgo.

Apesar dos avanços desde 2015, a crise pandémica pode virar totalmente este tabuleiro, empurrando a desigualdade para perto de níveis considerados perigosos para a paz e a coesão social. De acordo com uma análise apresentada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), a economia portuguesa é das mais vulneráveis e arrisca a enfrentar um dos maiores agravamentos da desigualdade da Europa; o País pode estar perante uma bomba relógio social.

Segundo um estudo citado pelo FMI, as medidas de confinamento estão a empurrar para as margens os que não têm possibilidade de adotar regime de teletrabalho, os mais precários, sobretudo os mais jovens, e os mais expostos ao mercado do arrendamento.

O referido artigo intitulado "Desigualdade salarial e os efeitos da pobreza e do distanciamento social na Europa" mostra que Portugal, Espanha e Chipre são os três países da Europa que enfrentam a maior ameaça que é o alastramento da desigualdade. Os autores são Juan Palomino, da Universidade de Oxford, e Juan Rodríguez e Raquel Sebastian, ambos da Universidade Complutense de Madrid.

Os economistas decidiram calcular o impacto no Índice de Gini na sequência de um período de confinamento, seguido de aberturas graduais. Assumiram um período de confinamento de dois meses e depois disso seis meses de reabertura das atividades, ainda parcial.

Os efeitos no tecido social e no fosso entre ricos e pobres são devastadores. De acordo com o Instituto Nacional de Estatística (INE), o coeficiente ou índice de Gini "é um indicador de desigualdade na distribuição do rendimento sintetiza num único valor a assimetria dessa distribuição". "Assume valores entre 0 (quando todos os indivíduos têm igual rendimento) e 100 (quando todo o rendimento se concentra num único indivíduo)", sendo que "este indicador é construído com base no rendimento monetário anual líquido das famílias".

No estudo divulgado pelo FMI, em Chipre, o aumento "previsível" da desigualdade na sequência do binómio confinamento/abertura parcial é de quase oito pontos, o que colocaria o IG cipriota em quase 39 pontos.

Espanha e Portugal surgem logo a seguir, registando o segundo pior impacto, com o coeficiente da desigualdade de ambos os países a piorar quase seis pontos. No caso de Portugal, significa que o nível de desigualdade, que durante os anos da troika se agravou, mas que desde 2015 estava a melhorar, pode facilmente chegar aos 38 pontos.

O Banco Mundial considera que até aos 40 pontos a situação de desigualdade é relativamente comportável, mas que de 40 para cima a situação passa a ser preocupante, problemática, causadora de fissuras sociais ameaçadoras.

Ou seja, por causa da pandemia e das medidas restritivas subsequentes, Portugal ficará à beira desse limite crítico. Espanha também.

O mesmo trabalho também mostra que a desigualdade tende a piorar na maioria dos países mais ricos, embora essa evolução assuma uma menor gravidade nos muito ricos, claro. Na lista de impactos previsíveis, os economistas espanhóis consideram que a Dinamarca será o território menos afetado pelo fenómeno. Mesmo assim, o respetivo IG sobe 3 pontos. É cerca de metade do caso português.

O que explica que alguns países sofram mais do que outros?

Para o FMI, é claro que a pandemia alargue o fosso da inclusão social em alguns territórios, como Espanha e Portugal.

"O impacto da pandemia será particularmente agressivo para os trabalhadores com baixas qualificações e temporários", sobretudo para os que estão envolvidos nos setores do turismo e da hospitalidade, observa o Fundo.

A Comissão Europeia e o Banco de Portugal fazem o mesmo tipo de aviso. O ajustamento à pandemia na economia portuguesa tende a ser mais duro e difícil por causa da exposição ao turismo (hotéis, restaurantes), setor onde não é possível trabalhar à distância.

Os trabalhadores com menor nível de qualificações são também aqueles que se defrontam com "menos opções de teletrabalho", um canal que amplifica o efeito devastador da pandemia numa parte muito específica da população e com elevada dimensão.

Segundo o INE, no terceiro trimestre, apenas 13% dos trabalhadores em Portugal estavam em teletrabalho, cerca de 644 mil pessoas num total de quase 4,8 milhões de empregados. Com a abertura gradual das atividades, o número de teletrabalhadores afundou quase 40% face aos três meses mais marcados pelo confinamento (abril a junho). Quase 400 mil voltaram ao trabalho presencial ou ficaram sem emprego pois muitas empresas simplesmente faliram ou foram esmagadas por uma forte quebra na procura.

A análise do FMI, com base no artigo dos economistas espanhóis, refere que o índice de teletrabalho na camada dos trabalhadores com menos qualificações é muito baixo em países como Portugal, Itália, Espanha e Grécia. E bastante mais elevado na Escandinávia (Noruega, Dinamarca, etc.), o que ajuda a amortecer o impacto negativo num quadro de confinamento, em que se limita o trabalho presencia.

Isto significa que os trabalhadores menos qualificados, com salários mais baixos (mais pobres, por assim dizer) e mais precários em Portugal são os que mais facilmente ficam sem trabalho ou são obrigados a parar, logo ficam sem sustento sempre que o confinamento aperta.

O FMI refere ainda que "as perdas de rendimento" decorrentes desta situação podem tornar a vida desses trabalhadores ainda mais difícil pois tendem a "agravar" o fardo do custo da habitação, que é fixo. Por exemplo, "se os preços do arrendamento não ajustam em simultâneo", esta população trabalhadora será ainda mais marginalizada, alimentando o problema da desigualdade.

Aumento do trabalho doméstico não-remunerado pode empurrar 469 milhões de mulheres para a pobreza extrema

Gabriel Ribeiro, in Visão

Pandemia agravou desigualdade de género e consequências económicas para as mulheres, diz a ONU

Por todo mundo, a pandemia de Covid-19 está a obrigar as pessoas a ficar mais em casa. Como resultado, o trabalho doméstico não-remunerado aumentou, tanto para os homens como para as mulheres. Ainda assim, são elas que estão a gastar mais tempo nas lidas de casa, como limpezas, cuidar dos filhos e cozinhar. “Tudo pelo qual trabalhamos, que levou 25 anos, pode ser perdido num ano”, avisa a vice-diretora executiva da ONU Mulheres, Anita Bhatia, à BBC.

Um novo estudo da ONU Mulheres, realizado em 38 países do mundo, confirma “de forma esmagadora” que as mulheres e os homens aumentaram a sua carga de trabalho doméstico não-remunerado, mas são “as mulheres que estão a fazer a maior parte”. A tendência, contudo, já vinha de trás: antes da pandemia, elas gastavam três vezes mais horas em trabalho doméstico do que eles. “Se (o número de horas) era três vezes maior quando comparado com o dos homens antes da pandemia, então garanto que (agora) esse número tenha, pelo menos, duplicado”, diz Bhatia. O relatório conclui ainda que os pais são mais ajudados pelas filhas do que pelos filhos neste tipo de tarefas.

O aumento do trabalho doméstico durante a pandemia revelou-se ser também um problema com consequências económicas. “É preocupante que mais mulheres do que homens estejam a deixar a força de trabalho, talvez como resultado dessa carga de trabalho maior”, diz o estudo. É expectável que as perdas de emprego e de meios de subsistência agravem o fosso da pobreza entre os géneros. “No final deste ano, 13% das mulheres e meninas do mundo – 469 milhões de pessoas – viverão em pobreza extrema”.

A vice-diretora executiva da ONU Mulheres utiliza o exemplo dos Estado Unidos para explicar a gravidade do fenómeno: “Só no mês de setembro, nos EUA, cerca de 865 mil mulheres abandonaram a força de trabalho em comparação com 200 mil homens. Isso pode ser explicado pelo facto de que havia uma grande carga de cuidados e não havia mais ninguém por perto”.

De acordo com o documento, as mulheres têm mais probabilidade de aumentar as horas em tarefas domésticas, tais como cozinhar e servir refeições, limpar, fazer compras para a família e decorar ou reparar a casa, mas no cuidado de animais domésticos ganham os homens. Em casa, a tendência é que tanto elas como eles ajudem no cuidado a outros membros, mas ainda assim há tarefas em que as mulheres gastam mais tempo: cuidar das crianças, ensiná-las, brincar com elas e prestar auxílio emocional. Já os homens estão mais propensos a ajudar os mais velhos.

Pelo mundo, os governos foram ajudando as famílias e a ONU Mulheres ressalva algumas iniciativas. A Argentina, por exemplo, aumentou o pagamento da pensão mensal por filho, a Austrália e a Costa Rica garantiram que as creches permanecessem abertas em tempo de confinamento e a Áustria, Chipre e Itália concederam licença familiar adicional para pais que trabalham, entre outros exemplos.

Governo aprova Estratégia Nacional para os Direitos da Criança

 in Sapo24

O Conselho de Ministros aprovou hoje a Estratégia Nacional para os Direitos da Criança para o período 2021-2024, que assenta numa visão integrada para o planeamento em matéria de infância e Juventude.

Segundo o comunicado do Conselho de Ministros, esta estratégia assenta em promover o bem-estar e a igualdade de oportunidades a todas as crianças e jovens, apoiar as famílias e a parentalidade e promover o acesso à informação e à participação das crianças e jovens.

A estratégia visa ainda prevenir e combater a violência contra crianças e jovens e promover a produção de instrumentos e de conhecimento científico potenciadores de uma visão global dos direitos das crianças e jovens.

Inicialmente projetada para 2019-2022, a estratégia que esteve em consulta pública até 20 de janeiro, foi reajustada devido ao contexto de pandemia vigorando agora entre 2021 e 2024.

Segundo o gabinete da ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, tornou-se necessário reajustar o período de vigência da Estratégia, mantendo os mesmos pressupostos, objetivos e prioridades estratégicas, que também refletem os contributos recebidos no âmbito da consulta pública.

A ENDC tem por base uma proposta elaborada pela Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ), na qualidade de Entidade Pública com atribuições ao nível da promoção dos direitos e proteção das crianças e jovens, e congrega os resultados de um amplo e participado processo de consulta pública.

Será criada uma Comissão Interministerial, presidida pela Ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social e a implementação da estratégia será coordenada pela CNPDPCJ e concretizada através de Planos de Ação bienais, que devem conter os eixos, objetivos estratégicos e operacionais que constam da Estratégia e identificar as respetivas metas, calendários e entidades responsáveis pela sua execução.


Porque ganham menos as mulheres?

Inês Pina, in Observador

Vários estudos mostram que a entrada de homens e mulheres no mercado de trabalho acontece de forma igualitária. Há um momento, contudo, em que tudo muda.

Quando 2020 nos bateu à porta, desabou sobre nós um terramoto pandémico que nos fez repensar o quotidiano. Que nos fez olhar para a espuma dos dias de uma outra forma. Ora, se no que nos toca mais diretamente, foi necessário um novo olhar, as questões mais profundas e mais estruturais precisam de continuar a ser discutidas com um olhar renovado: profundo e decisivo.

É estrutural a desigualdade entre homens e mulheres em vários campos da sociedade. E muito há a enfatizar sobre esta diferença. Mas foquemo-nos na famosa diferença salarial.

A mão-de-obra feminina chegou ao mercado de trabalho em força. Disso já não há dúvidas! Nas sociedades mais desenvolvidas já não há entradas proibidas. Desde a alta finança à engenharia, às medicinas, ao exército, à política, nenhuma profissão é proibida. As mulheres entraram e escancararam as portas.

Se no mercado laboral elas estão em força, muito se deve às universidades, onde elas são donas e senhoras. Desde o século passado que se inverteu a tendência. Há mais mulheres do que homens nas universidades. O caminho tem sido traçado e tem solidificado. Porém, a questão da diferença salarial mantém-se quase estagnada, mesmo depois de ouvirmos vários políticos a enfatizar nos seus discursos “tarefas iguais, salários iguais”.

Vários estudos mostram que a entrada de homens e mulheres no mercado de trabalho acontece de forma igualitária e que a trajetória se mantém sem diferenças de maior nos primeiros anos. Há um momento, contudo, em que a carreira profissional das mulheres fica estagnada, não as deixando chegar ao nível seguinte.

A dificuldade em atingir este nível seguinte, perdendo a corrida para os homens, coincide com a maternidade. Chegada a maternidade, a mulher “faz uma pausa” na carreira e isso, na cultura organizacional, determina a estagnação profissional. Enquanto o homem não é obrigado a parar para cuidar do bebé, a mulher para durante meses! Ou melhor, não são apenas meses, porque “cuidar da criança” ainda é uma atividade tida como quase exclusivamente feminina. É a mulher que acompanha os filhos ao médico, que os acompanha no percurso escolar e isso, na verdade, representa anos!

Sabendo, de antemão, desta “condição”, a cultura organizacional tende a “apostar” na carreira do homem pois este, sem a “obrigatoriedade” de fazer interrupções na carreira, reclea-se um “ativo” mais seguro.

Tudo isto acaba por condicionar a carreira profissional da mulher, deixando-a presa a determinados níveis profissionais e, em consequência, sem aumento de ganhos salariais. Quando a mulher constitui uma família monoparental, a perda de poder económico é ainda mais acentuada, criando e alimentando um ciclo de pobreza no feminino.

Como podemos contribuir para a diminuição deste gap social?

Com 12 milhões de habitantes, o Ruanda, um pequeno país africano é, segundo diversos indicadores, um dos países mais igualitários para as mulheres. Lidera em participação política e tem uma diferença salarial entre homens e mulheres particularmente baixa – apesar de estar em 158º de 171 paises no ranking de Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Este equilíbrio aconteceu em consequência do genocídio da década de 1980. Perdida grande parte da mão-de-obra masculina, o Ruanda teve, por força das circunstâncias, de empoderar as mulheres. Mulheres que na política foram tomando um conjunto de decisões em prol da diminuição da desigualdade e que coloca hoje o país num dos lugares de topo no âmbito da igualdade de género.

A primeira-ministra da Islândia, Katrín Jakobsdóttir, foi eleita em 2017 e é a segunda mulher a ocupar esse cargo na história do país. A Islândia aprovou uma série de leis para reduzir a disparidade salarial entre homens e mulheres, garantir uma representação efetiva de mulheres nos cargos de topo das empresas e assegurar licenças de maternidade/paternidade partilhadas e pagas. Com estas medidas, a Islândia prepara-se para estilhaçar os telhados de vidro que as mulheres ainda sentem nas sociedades desenvolvidas. Desde 2000, pais e mães têm direito a dividir entre si nove meses de licença, recebendo 80 por cento do salário. As mães ficam três meses de licença, os pais outros três e os três meses restantes podem ser partilhados entre os dois.

A medida teve um impacto enorme. Hoje, 90 por cento dos pais islandeses tiram licença de paternidade e, desta forma, já não há discriminação na hora de contratar. Pais e mães param, indiscriminadamente, na hora da parentalidade. As mulheres têm, assim, a possibilidade de acesso a qualquer cargo e à progressão de carreira nas mesmas condições que os seus pares homens, passando esta a depender apenas do mérito e não do género.

São exemplos como estes, que nos podem conduzir no caminho para o fim da desigualdade salarial.

Portugal criticou no Conselho da UE a proposta de um mecanismo de defesa do Estado de direito

Paulo Pena, in Público on-line

A posição de Portugal, nas reuniões à porta fechada do Conselho da UE, sobre as regras do Estado de direito é elogiada pelo ex-ministro dos Negócios Estrangeiros da Polónia. Nas actas da Alemanha, Portugal aparece como “muito crítico” da proposta que levou a Hungria e a Polónia a vetar o orçamento comunitário.

Portugal “jogou do nosso lado”. A informação nova surgiu a meio de uma entrevista, por telefone, com o anterior ministro dos Negócios Estrangeiros da Polónia. Witold Waszczykowski é desde 2019 eurodeputado do partido Lei e Justiça (PiS), que governa em Varsóvia, e explicava-nos a oposição do seu Governo ao mecanismo do Estado de direito. Denunciava o que diz ser uma “guerra ideológica”, e as tentativas de “chantagem” que os países exercem no Conselho da UE. E, de súbito, fez aquela revelação: “Por vezes a oposição acusa-nos de apoiar apenas um país, a Hungria, mas sabemos que isso não é assim. O Grupo de Visegrado, e vários outros países, como a Eslovénia, Letónia e Portugal, jogaram do nosso lado.” A tradução aqui é importante. A expressão exacta de Waszczykowski foi “played together with us”.

Esta era, de facto, uma informação nova sobre a actual crise da União Europeia. O Fundo de Recuperação, a famigerada “bazuca” que tenta inverter os custos sociais e económicos da pandemia, está num limbo; dois países anunciaram o seu veto às políticas orçamentais porque discordam da introdução de um mecanismo de “protecção” para os financiamentos europeus “em caso de deficiências generalizadas no que diz respeito ao Estado de direito nos Estados-membros”.

Quase todos os europeus já ouviram o nome desses países, que se opõem à regra de protecção do Estado de direito: Hungria e Polónia. Naturalmente, aliás. Esses são os dois estados da UE onde muitas investigações, parlamentares, jornalísticas e de ONG, revelaram alterações profundas, e politicamente orientadas, do sistema judicial, das regras da liberdade de imprensa e da forma como são tratadas as minorias (política de refugiados, discriminação sexual, entre outras).

O que muito poucos sabem é que Budapeste e Varsóvia não estiveram sozinhas nesta oposição à medida proposta pela Comissão Europeia no dia 3 de Maio de 2018, e que aguarda desde então a aprovação pelo Conselho da UE. A razão é simples: o Conselho é um órgão legislativo, mas o que se passa nas suas reuniões preparatórias é um segredo diplomático bem guardado.

O Conselho não divulga as actas das suas reuniões preparatórias. Por isso, é muito difícil confirmar que posição tomou cada país sobre uma lei. Mas uma fonte, verificada, que teve acesso aos documentos oficiais da delegação alemã no Conselho, forneceu-nos uma prova adicional. Nos resumos das discussões, feitos pelos diplomatas alemães no Conselho, Portugal é descrito como “muito crítico” da proposta de criação de um mecanismo de salvaguarda do Estado de direito.
Como Polónia e Hungria podem atrasar a recuperação económica de Portugal e de toda a UE


No dia 12 de Novembro de 2018, uma segunda-feira, Ana Paula Zacarias, secretária de Estado dos Assuntos Europeus, fez uma intervenção de fundo na reunião do Conselho, que decorreu à porta fechada em Bruxelas. A delegação alemã anotou. “ITA [Itália] e PRT [Portugal] foram muito críticos e questionaram a proposta, incluindo a falta de ligação entre o Estado de direito e o orçamento, a duplicação dos procedimentos existentes e a necessidade do mecanismo.”

Esta foi a única posição de fundo assumida por Portugal ao longo de toda a discussão. Os aliados de Lisboa foram, como vimos, a Itália, que na altura era governada por uma coligação onde pontificava Matteo Salvini – aliado táctico de Orbán –, e outros países de leste, como a República Checa, a Eslováquia, a Bulgária e a Croácia. Estes eram, para a Alemanha, os países “com dúvidas e críticos” da proposta.

A “linha vermelha”

Do início ao fim, como atestam as actas da Alemanha de todas as reuniões que decorreram no Conselho, à porta fechada, Portugal nunca defendeu a proposta original da Comissão Europeia, que foi aprovada pelo Parlamento Europeu. Numa das últimas reuniões, no dia 29 de Setembro deste ano, os países discutiram uma proposta de “compromisso” da presidência alemã. As mudanças no mecanismo eram tantas, que alguns países (como a Bélgica e o Luxemburgo) se queixavam de que o Conselho estava a ir “longe demais” nas cedências. Um outro grupo de países (Holanda, Áustria, Suécia, Finlândia, Irlanda, Dinamarca) consideraram o compromisso “inaceitável”, por moderar demasiado o mecanismo do Estado de Direito. A Hungria e a Polónia, por seu lado, continuavam a considerar que a lei, mesmo tão revista, ainda ia longe de mais.

Hungria e Polónia montam a cena para Conselho Europeu dramático


Portugal, no final deste processo, estava entre estes dois grupos opostos de países. “A proposta teve em conta as diferentes posições dos Estados-membros e equilibrou-as bem”, defendeu a representação do Governo. Esta posição foi secundada pela República Checa, a Eslováquia, a Croácia e Chipre.

Como o Ministério dos Negócios Estrangeiros declara nas respostas que nos enviou, por escrito, a posição conhecida de Portugal era outra. “O não respeito pelo Estado de Direito, sempre foi uma “linha vermelha” para o Governo. O primeiro-ministro já referiu várias vezes publicamente que quem não cumpre os valores fundamentais tem de sair da UE.”

Com esta posição de princípio, como se justifica a actuação dos representantes portugueses no Conselho da UE? O ministério começa por garantir que “não é verdade que o Governo tenha defendido que ‘não há qualquer ligação’ entre o princípio do Estado de direito e as regras orçamentais da UE”. Mas explica que assumiu uma linha diplomática nas negociações. “Ao longo desta negociação, a posição do Governo foi sempre de disponibilidade para encontrar uma solução que permitisse alcançar um acordo global em que todos os Estados-membros se revissem, que respeitasse o equilíbrio de um consenso – sempre difícil numa União a 27.”

E este é o ponto fulcral: será possível haver um acordo deste tipo, unânime e consensual, entre visões tão diferentes? Um relatório da Transparência Internacional (TI), que será publicado no próximo dia 8 de Dezembro, critica a forma como tudo se passou e aponta a falha: o mecanismo do Estado de direito “poderia ter sido adoptado rapidamente por maioria qualificada. Em vez disso, o Conselho só avançou nesta matéria ao negociar o quadro financeiro plurianual 2021-27, que exige unanimidade, dando aos países que se opõem a um quadro reforçado do Estado de direito a oportunidade de manter as negociações reféns – um exemplo claro de como a cultura da unanimidade mina a capacidade do Conselho de se precaver contra o abuso dos fundos orçamentais da UE em países onde o Estado de direito está ameaçado”.

Hungria e Polónia aceitam condicionalidade ao Estado de direito, mas exigem rever o regulamento

“Esta é a questão mais importante da UE”

Mesmo que nunca se tenha oposto, por princípio, ao mecanismo, Portugal ajudou, com a sua posição crítica no Conselho, a adiar a sua aprovação, como revelam as actas consultadas pelo Investigate Europe. E isso teve uma consequência: ao ficar “em discussão” durante mais de dois anos, à porta fechada, no Conselho, o mecanismo deu à Hungria e à Polónia uma carta de peso no jogo, quando a UE precisa de aprovar o auxílio de emergência para a crise provocada pela covid-19.

A “falta de transparência sobre as posições individuais de cada país”, critica a TI, “ameaça fundamentalmente a legitimidade do processo, uma vez que não é claro para os cidadãos que países bloqueiam uma decisão e porquê”.

A posição assumida pelo Governo português não traduz nenhuma posição que tenha sido votada, em Portugal. Em Junho de 2018, as comissões responsáveis do Parlamento nacional analisaram a introdução deste mecanismo e não levantaram qualquer dúvida ou crítica. A Comissão de Assuntos Europeus e a de Orçamento, Finanças e Modernização Administrativa aprovaram dois pareceres sobre a proposta da Comissão, que enviaram para Bruxelas. Nada escreveram sobre a redundância, ou desadequação, da proposta da Comissão.

No dia 19 de Janeiro de 2019, em Estrasburgo, o Parlamento Europeu foi chamado a votar sobre a proposta. Nenhum eurodeputado português votou contra a medida proposta pela Comissão, que foi aprovada por 72% do plenário (só o PCP, posteriormente, assumiu a sua rejeição). Todos os eurodeputados do PS votaram a favor. Pedro Silva Pereira e Manuel dos Santos deram parecer positivo nas comissões que integravam.

Ana Gomes, outra das eurodeputadas socialistas que aprovaram o projecto, fica surpreendida quando lhe revelamos que o Governo tinha uma posição crítica no Conselho. “Não me lembro de alguma vez o Governo querer discutir este assunto comigo, que era quem estava na Comissão LIBE do Parlamento Europeu e tinha de estar repetidamente a tomar posição sobre a matéria. E obviamente a minha posição foi sempre pela defesa dos princípios e valores fundamentais da UE. Se calhar nunca quiseram discutir isto comigo para não me desvendar qual era o posicionamento que o Governo estava a defender no Conselho…”

Ana Gomes salienta a importância da “posição unânime dos deputados socialistas e de todo o Grupo S&D”, que era a de garantir um mecanismo, “com sanções, justamente para casos como a Hungria”. “Esta era e é das questões mais importantes, estratégicas mesmo, da Europa.”

A importância do assunto, na opinião dos cidadãos europeus, é atestada pela mais recente sondagem realizada a pedido do Parlamento Europeu. “Mais de três em cada quatro inquiridos concordam: Os fundos da UE devem ser condicionados à implementação do Estado de direito e dos valores democráticos por parte do governo nacional.” Em Portugal, segundo a mesma sondagem, 77% dos inquiridos concordam com a existência dessa condição “democrática” para que um país aceda a fundos comunitários.

Os segredos do Conselho

O caso do mecanismo do Estado de Direito é apenas um exemplo, numa longa lista de casos, da forma como o Conselho da UE bloqueia leis, sem que se conheça uma razão para que isso aconteça.

Estão actualmente 158 propostas em “processo de co-decisão”. No Conselho há actualmente 63 diplomas, 17 destes há mais de 3 anos, que aguardam pelo “sim”, ou o veto, dos estados. Este número diminuiu desde Outubro, porque a Comissão Europeia decidiu retirar 18 directivas que se encontravam paradas no Conselho. Porquê? Quem se opunha a elas? Responder a essas perguntas fundamentais é uma tarefa longa e difícil. A equipa de jornalistas Investigate Europe pretende acompanhar e revelar os bastidores de um processo legislativo que se mantém secreto, apesar das críticas.

Um dos nossos trabalhos mais recentes mostrou como um país oficialmente “neutro”, que era a Alemanha, influenciou outro país, a Croácia, para se opor a uma directiva que obriga as grandes multinacionais a revelar onde pagam impostos, e qual o seu valor. Também nesse caso, o Governo português assumiu à porta fechada uma posição contrária à que defendia em público (no seu programa, ou na forma como os seus eurodeputados votaram o diploma).

Nos próximos trabalhos, que resultam de vários meses de pesquisa, mais de 50 entrevistas a responsáveis com conhecimento directo sobre o assunto, e análise de documentos, legislação e dados, tentaremos retratar o mais importante - e desconhecido - dos legisladores que decidem sobre as nossas vidas: O Conselho da UE. Uma instituição política, em que não são os políticos eleitos, mas os funcionários dos governos nacionais, que legislam. Um órgão onde o segredo diplomático dificulta a tomada de decisões e impossibilita o escrutínio público e onde várias reformas desejadas pelos cidadãos (como as que referimos neste texto) são bloqueadas sem que os responsáveis por esse “veto” tenham de justificar publicamente as suas decisões - e onde a influência do lobby, e alguns negócios difíceis de explicar, prevalecem-, longe da vista dos eleitores, e alimentando o crescente populismo anti-Bruxelas.

Com Harald Schumann, Sigrid Melchior e Wojciech Ciesla

*Investigate Europe é um projecto iniciado em Setembro de 2016 que junta jornalistas de nove países europeus. Este trabalho foi financiado em Portugal pela Fundação Calouste Gulbenkian com uma bolsa de investigação jornalística. Investigate Europe tem o apoio das fundações Adessium (Holanda), Cariplo (Milão), Stiftung Hübner und Kennedy (Kassel), Fritt Ord (Oslo), Rudolf Augstein-Stiftung (Hamburgo), GLS (Alemanha) e Open Society Initiative for Europe (Barcelona).



Confiança e clima económico baixaram em Novembro com agravamento da pandemia

Pedro Crisóstomo, in Público on-line

Perspectivas sobre evolução financeira familiar voltaram a agravar-se. No comércio, a confiança dos empresários “diminuiu significativamente”.

Depois de cinco meses num “patamar relativamente estável”, o indicador de confiança dos consumidores recuou em Novembro, mês em que a pandemia se agravou e o país regressou ao estado de emergência. O clima económico das empresas, que estava a recuperar, também caiu.

Ao actualizar nesta sexta-feira os resultados dos inquéritos de conjuntura mensais, o Instituto Nacional de Estatística (INE) explica que o índice de confiança dos consumidores caiu este mês por causa de um contributo negativo das expectativas para os próximos 12 meses, “nomeadamente, perspectivas sobre a evolução futura da situação económica do país, da situação financeira do agregado familiar e da realização de compras importantes”. Ainda assim, contribuíram positivamente “as opiniões sobre a evolução passada da situação financeira” das famílias.

Este indicador tinha caído de forma abrupta na primeira vaga da pandemia — registou em Abril a maior descida da série estatística, ou seja, desde 1997 — mas conseguiu uma “recuperação parcial” em Maio e Junho, estabilizando a partir daí até Outubro. Agora voltou a contrair-se e não foi um movimento isolado. O indicador de clima económico, aquele que o INE mede a partir de inquéritos às empresas, também estava a recuperar nos seis meses anteriores e interrompeu essa trajectória em Novembro.

O agravamento é transversal: aconteceu em todos os sectores, do comércio e serviços à indústria, passando pela construção e obras públicas, onde, refere o INE, a redução teve uma “maior magnitude”.

O estado de emergência, um estado de excepção ao regime constitucional vigente, foi declarado a 6 de Novembro pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, depois de ouvido o Governo e aprovada a sua autorização pelo Parlamento. Entrou em vigor no dia 9 e foi renovado por mais 15 dias, entretanto.

O inquérito aos consumidores começou dias antes, a 2 de Novembro, e decorreu até dia 17; no caso do inquérito às empresas, decorreu entre 1 e 23 de Novembro.

O INE especifica que 70,1% das entrevistas aos consumidores foram obtidas “até ao dia 5 de Novembro (dia anterior ao anúncio do estado de emergência)”, embora já desde o final de Outubro a possibilidade do regresso a este estado de excepção fosse referida pela comunicação social.

No caso das empresas, indica o INE, “a percentagem acumulada de respostas obtidas antes de 9 de Novembro (data de entrada em vigor do novo estado de emergência) para cada inquérito” foram mais baixas (de 35% na indústria transformadora, de 45,6% na construção, de 41,2% no comércio e de 40,5% nos serviços).

Comércio e restauração criticam programa Apoiar

Queda transversal nos serviços

No comércio, a deterioração é mais acentuada no retalho — onde se fazem sentir as novas restrições aos fins-de-semana com os encerramentos a partir das 13h — do que nas vendas por grosso.

O resultado conjunto é negativo: a confiança dos empresários “diminuiu significativamente, interrompendo o perfil ascendente observado entre Maio e Outubro, após a forte redução em Abril”.

Apesar disso, as perspectivas dos empresários sobre a sua actividade nos três meses seguintes já estava a descer desde Agosto, o que agora se acentuou. Tanto este factor como a avaliação sobre o volume de vendas contribuíram de forma negativa para o resultado final (pelo contrário, as opiniões dos empresários sobre o volume de stocks contribuíram “positivamente” para o resultado global, ainda que as apreciações tenham continuado a descer).

Nos serviços, o indicador também “diminuiu de forma significativa, depois de ter recuperado parcialmente, entre Junho e Outubro, do mínimo histórico da série atingido em Maio”. Com as perspectivas sobre a evolução da procura em queda, o sentimento negativo atravessa as várias áreas dos serviços, com especial ênfase em três áreas: actividades artísticas, de espectáculos, desportivas e recreativas; transportes e armazenagem; e alojamento e restauração.

Do lado dos consumidores, os dados do INE mostram que, a caminho do Natal, as “perspectivas de realização de compras importantes agravaram-se nos dois últimos meses, de forma mais intensa em Novembro”. Quanto às apreciações sobre a concretização de compras importantes no momento em que o inquérito estava a ser respondido, o índice também caiu, embora permaneça “próximo dos valores observados nos cinco meses anteriores”.

Esta trajectória aconteceu apesar de as opiniões sobre a evolução da situação financeira do agregado familiar terem recuperado “ligeiramente em Outubro e Novembro” e, com isso, ficado “num patamar relativamente estável desde Maio”. Só que as perspectivas “relativas à evolução futura da situação financeira do agregado familiar voltaram a contrair-se, “suspendendo a recuperação observada entre Maio e Agosto”.

Na área da construção e obras públicas, a queda deve-se às apreciações sobre a carteira de encomendas e as perspectivas de emprego no sector.


António Damásio: “Há uma grande distribuição de generosidade, paciência e calma nos portugueses”

Pedo Rios, in Público on-line

O leitor tem mais em comum com uma bactéria do que aquilo que possa pensar. Na obra de António Damásio, a vida, com ou sem cérebro, ocupa o papel central. Em entrevista ao P2, o neurocientista fala sobre o que faz de nós humanos, a pandemia e de como precisamos de robôs vulneráveis.

Sentir & Saber – A Caminho da Consciência é o novo livro de António Damásio, um dos mais importantes neurocientistas do mundo. Nesta obra, edição Temas e Debates, com 48 breves capítulos, o director do Instituto do Cérebro e da Criatividade da Universidade do Sul da Califórnia, em Los Angeles, salienta a importância do afecto na consciência dos seres humanos. Em conversa por videochamada com o P2, o cientista, com 76 anos, critica os políticos que manipulam a raiva e as redes sociais que danificam a cultura humana.

Sentir & Saber é um livro mais pequeno do que o habitual para si. Trata da consciência, um tema envolto em mistério. Porque escreveu um livro pequeno sobre um tema tão grande?
Já tinha dito muitas vezes: “Um dia, vou escrever um livro só com as ideias de que gosto.” Comecei a pensar em fazer capítulos muito curtos e na ideia do espaço, muito ligado também à estrutura de um livro de poesia: ter um texto que ocupa apenas uma parte de uma página ou que acaba num espaço branco, o que obriga o leitor a parar e a pensar. O objectivo principal é que as ideias se imponham e se tornem mais transparentes.

A neurociência ainda procura saber porque é que temos vida interior, uma consciência de nós mesmos, e não somos apenas robôs de grande qualidade, capazes de processar informação e reagir a estímulos. Fala-se no “problema difícil da consciência”, atribuem-lhe mistério. Mas o professor escreve que a consciência não é insolúvel e não é um problema tão “difícil” assim.
Não há este “hard problem” de que se fala e que certos filósofos têm pretendido vincar. E não há porque a forma como corpo e sistema nervoso se inter-relacionam é muito diferente daquilo que se espera. Não é de todo parecida com a forma como o sistema nervoso se relaciona com o exterior. O chamado “mistério da consciência” não é um mistério ligado ao sistema nervoso, mas sim um problema ligado à interacção do sistema nervoso com o corpo.

Se ler descrições sobre o “hard problem”, encontra pessoas que dizem: “Como é possível que uma estrutura física como o cérebro dê origem ao espírito, à mente, que não é física?” Bem, esse é o problema: é que não é só o cérebro, não é só o sistema nervoso, é o sistema nervoso em interacção, é esse conjunto que serve de base à consciência. Isto não é só sobre o sistema nervoso, trata-se de uma parceria entre sistema nervoso e corpo.

E isso simplifica ou complica o nosso entendimento do que é consciência? De repente, está todo o corpo envolvido nela.
Por um lado, clarifica porque diz: “É possível haver uma resposta, vamos tentar uma nova abordagem do problema.” Por outro lado, claro que o campo sobre o qual temos de trabalhar para criar todos os dados que confirmem essa explicação é agora muito maior.

Há mais de 20 anos que o meu trabalho incide principalmente na ideia de que corpo e sistema nervoso não estão separados e que corpo e mente não estão separados. É a coisa mais importante do meu pensamento científico e filosófico.

Já disse que o intestino terá sido o primeiro “cérebro” da história da vida na Terra. No intestino sentimos, por exemplo, ansiedade.
As provas são perfeitamente claras, é uma questão de pedir às pessoas para reorientarem o seu pensamento. Podem até usar a psicologia do senso comum, que às vezes se menospreza. Quando temos ansiedade, sentimo-la no corpo — no coração que bate descontroladamente, na respiração, que se torna difícil, no estômago ou no intestino. Todas as referências dos sentimentos são feitas ao corpo. São elas a realidade daquilo que é ansiedade ou, da mesma forma, o bem-estar.

Se assim é, porque é que insistimos em pôr tudo em gavetas: cognição vs. emoção e sentimentos?
Temos a tendência de facilmente cair em simplificações. Quando os pensadores começaram a olhar para os sentimentos, verificaram — e é verdade em muitas circunstâncias — que podem levar a um mau caminho: se a pessoa resolver um problema puramente de um modo afectivo, pode chegar à conclusão errada. Daí a ideia de que excluir a emoção, contar apenas com os factos e tentar ser puramente racional seria uma maneira melhor de resolver a nossa ligação com as complexidades do mundo.

Não há nada no meu pensamento e na ciência que fazemos que seja contra a razão, pelo contrário. O que queremos é mostrar que a razão tem sempre de ser informada por aspectos afectivos. Se se excluir completamente o afecto, a razão fica desordenada.

É um processo integrado.
No livro, tenho quatro grandes divisões: o ser, as representações que trazem a mente, depois o afecto, depois a razão. Biologicamente, houve uma sequência: de seres simples que nem sequer tinham emoções a seres mais complexos em que aparecem as emoções e, depois, seres em que aparece a possibilidade dos factos e da razão. Mas não é possível ter seres que têm unicamente razão sem terem um aspecto subjacente, que é o dos afectos. Aquilo que faz parte das nossas histórias individuais e o trajecto do ser humano e de outros seres vivos no planeta aponta para que a emoção e o sentimento tenham sido formas primárias de resolver problemas inteligentemente.

O que lhe ensinou esta pandemia sobre os seres humanos?
Estamos defronte de uma doença séria. As pessoas não se aperceberam imediatamente da gravidade do problema, que não é só das pessoas idosas. Nunca pensei que na minha vida iria encontrar algo tão parecido com os grandes problemas da II Guerra Mundial. Sempre tive muito interesse por ler sobre a II Guerra e pensar no horror daquele período, pensar que felizmente aquilo passou e que não iríamos ter de viver qualquer coisa como este terror. A verdade é que estamos a viver esse horror, não tão focado no cenário europeu (e com horrores absolutamente incríveis), mas planetário.
"Quando temos ansiedade sentimo-la no corpo"António Damásio

A pandemia escancarou a nossa fragilidade. Mas também fomos capazes de fazer vacinas em menos de um ano.
Há este paradoxo: somos de uma fragilidade incrível e nunca pensámos que isto poderia acontecer, mas, ao mesmo tempo, temos uma capacidade de resposta que vem do facto de que há ciência de ponta.

Disse, em Agosto de 2019, antes de tudo isto começar, que os nossos comportamentos poderiam levar a uma pandemia. Outros especialistas já alertavam para isso. Mas o impacto da covid-19 foi uma surpresa para quase todos, não era algo que estivesse “no programa”.
Há uma arrogância humana lamentável na forma como se menospreza o ambiente e os seres não humanos. As pessoas têm um certo respeito pelos pássaros, têm respeito pelos cães e pelos gatos, ou seja, têm respeito pelas criaturas que lhes trazem alguma coisa, que funcionam como companheiros.

E nas quais reconhecemos emoções.
Exacto. As pessoas têm animais de estimação porque esses outros seres vivos lhes dão qualquer coisa. É uma troca perfeitamente egoísta. As pessoas não imaginam o que são as vidas de seres unicelulares, que estão vivos tal como nós, e não se importam nada de os destruir quando eles muitas vezes são extremamente positivos para nós. Por exemplo: todas as bactérias que estão dentro do meu corpo e do seu neste momento a fazer com que o nosso microbioma funcione. Se não estivessem lá, estaríamos em muito mau estado. [As pessoas] não têm noção disso e não têm noção de que alterações do clima destroem espécies e a qualidade do ar. Há uma ignorância em relação ao mundo. Estamos a ver uma espécie de acordar tardio para coisas que têm importância e para as quais temos de prestar atenção.

Vemo-nos como seres excepcionais, à parte. Porém, a sua ciência mostra que temos muito em comum com as bactérias, enquanto a física, para dar outro exemplo, tem mostrado que somos “meras” interacções de partículas. A ciência torna o ser humano mais humilde?
Absolutamente. Uma ciência verdadeiramente humana pode fazer coisas magníficas. Pode dar-nos uma ideia da nossa complexidade e da forma como ela faz parte da complexidade muito maior do nosso ambiente. Dá-nos uma possibilidade de descobrir aquilo que é melhor em nós e de ter uma acção positiva em relação ao que está à nossa volta — por exemplo, em relação ao clima, à biodiversidade ou a problemas políticos, como a pobreza. Se compreendermos o que é um ser humano, devemos ter mais e mais falta de tolerância para deixar outros seres humanos viverem em mau estado de saúde, sem casa ou as protecções que nós, os mais privilegiados, temos.

Tudo caminha num sentido muito curioso: é uma espécie de realização, através da ciência, de bons sentimentos e bons desejos que normalmente eram trazidos unicamente pela religião. Era a religião que nos dava a direcção daquilo que é ser bom e decente, como ser humano em relação aos outros e ao mundo. A ciência não é, de forma alguma, oposta à religião, é uma nova forma de caminhar no sentido daquilo que as melhores religiões puderam trazer ao ser humano. Antes da ciência, realizava-se puramente pelo transcendente e por um desejo de ser melhor. Agora, com a ciência, podemos realizá-lo de formas mais práticas e directas.

Escreve muito sobre a homeostasia, o processo de regulação pelo qual um organismo mantém constante o seu equilíbrio e procura garantir a sobrevivência. É já o desejo de ter uma vida boa, que está tanto nos homens como nas bactérias?
É um desejo antes do desejo.

Gosta de frisar que as bactérias têm esse “desejo”, mesmo que não o saibam. São inclusive seres sociais, mesmo que não tenham noção disso.
Há todos estes processos estruturais que existem desde que existe a vida (e possivelmente antecedem a existência da vida — por exemplo, em processos de cooperação ao nível de partículas físicas). A vida de bactérias que têm uma sociabilidade e se comportam diferentemente conforme o ambiente é demonstração de que a vida, ela própria, como fenómeno central, já contém, de forma relativamente abstracta, os guias para o nosso comportamento. Aquilo que depois conquistamos — e que é magnífico — começa com processos muito pouco claros (as coisas estão contidas, escondidas), mas, à medida que somos capazes de fazer representações do mundo exterior e do interior, as coisas tornam-se mais claras.

E aí entra a mente.
A nossa ascensão em direcção à mente é um processo extraordinário. Dá-nos a capacidade de ir descobrir aquilo que está em nós próprios e à nossa volta através de mapas e imagens que são representações. As bactérias e grande parte dos seres vivos, mesmo os complexos, não podem fazer isso. Para que seja possível fazer representações e chegar à mente, aos sentimentos, à representação do que está à nossa volta, é preciso ter um sistema nervoso.

A vida tem quatro mil milhões de anos, há 3500 milhões de anos que se passaram sem sistema nervoso. Quinhentos milhões de anos não são nada. E sobretudo sistemas nervosos como os nossos, com 100 milhões de anos, são uma coisa recente. Quando se pensa na trajectória da história, é um pequeno momento, mas é esse momento que nos dá o passaporte para a mente e para entrar naquilo que são as representações dos factos e as representações do estado do nosso interior, que são os sentimentos, que trazem o princípio da consciência. É isso que quero que as pessoas percebam e é por isso que o livro é mais pequeno.

Há um debate sobre uma suposta consciência das plantas, tese de que discorda. Queremos meter a consciência em tudo? Não aceitamos facilmente que há muitas manifestações da vida que a dispensam?
Projectamos sobre todos os seres ideias sobre a forma como chegaram a certas conclusões ou comportamentos. Quando vemos uma planta que se encolhe com o frio, a planta pensou que se tinha de encolher, tal como nós? Não é assim. Há uma série de processos que são automáticos e que têm que ver com a homeostasia dentro daquele organismo. As coisas que fazem na procura de água, a maneira como as raízes se distribuem na terra… Claro que não há nenhum cérebro na planta a dizer “vai para a direita, é onde está mais água”, mas há uma maneira de fazer esse primeiro nível do detectar (sensing ou detecting, em inglês), que é muito diferente do sentimento.

O detectar simples é uma coisa que as plantas e as bactérias fazem. Nós também fazemos, mas grande parte daquilo que é importante que nós detectamos é acompanhada por um sentimento, por uma “cor”, positiva ou negativa, que é dada pelo afecto.
“Há arrogância humana lamentável na forma como se menospreza o ambiente e os seres não humanos”António Damásio

Há coisas que nos aproximam das bactérias e de outros seres vivos, mas há outras que nos tornam diferentes. Como damos o salto? O que faz de nós humanos?
Esse salto é dado pela quantidade de conhecimentos que conseguimos apreender, manter e manipular. Há animais que são de enorme perspicácia, inteligência motora, capacidade de resolver problemas. Vemos isso nos símios, em elefantes, há um grande número de espécies não humanas com consciência, com uma vida afectiva, com uma vida social complexa e uma inteligência extraordinária. O que falta é a quantidade de conhecimentos que os cérebros dessas criaturas conseguem ter (em nós são quantidades absolutamente extraordinárias). E a capacidade de manipular esses conhecimentos com várias abordagens, como a matemática e a linguística.

Uma das coisas extraordinárias daquilo que se está a passar entre nós, para além da tecnologia que nos reúne, é o facto de estarmos a usar linguagem. Estou a falar numa colecção de símbolos, uma determinada língua entre centenas de línguas que poderia utilizar, e você está a receber essas frases e eu as suas. Depois, há linguagens, como a matemática, que permitem de uma forma mais abstracta manipular conhecimentos. E a possibilidade de imaginar novos conhecimentos porque podemos manipular tudo na nossa imaginação, que é uma coisa extraordinária: você agarra numa história, parte-a aos bocados, recombina os elementos e faz uma nova história. Veja o curioso que é que esse recombinar é exactamente o que a natureza tem estado a fazer com ácidos nucleicos, através de toda a sua evolução, com genes...


SENTIR & SABER - A CAMINHO DA CONSCIÊNCIA

O enorme edifício intelectual está ligado ao edifício afectivo antigo, que continua a dar-nos apontadores. Às vezes, está errado: o afecto pode confundir-nos.

E temos visto muitos políticos a utilizar os afectos para manipular os cidadãos. A raiva, em particular, parece ser um dos grandes trunfos na política contemporânea.
A raiva e o medo são emoções e sentimentos de defesa. As pessoas acabam por utilizá-los porque se sentem ameaçadas. São uma forma de se defenderem quando não há uma possibilidade de resolver os problemas inteligentemente. Se as pessoas sentem medo e são levadas a irritarem-se e a terem zanga em relação a outros, isso é extremamente eficaz. Os bons sentimentos acabam por ser destruídos. É mais fácil induzir raiva e medo em pessoas que não tiveram acesso aos factos. Se, em vez de mostrar os factos, mostrar só uma situação que possa espoletar a zanga, abre um atalho: corta o processo normal, que seria ter os factos e depois pensar sobre eles. Seria possível evitar a zanga porque haveria outras soluções possíveis.

Vemos isso diariamente nas redes sociais, que critica. No entanto, os utilizadores parecem hoje mais conscientes dos seus problemas. Continua pessimista?
Acho que há uma melhoria. Vai ser muito difícil ter um grande efeito porque há um aspecto de dependência que vem do nosso desejo de informação.

O fear of missing out, o medo de ficar de fora, de perder algo.
Lembro-me de achar que o Twitter era bom para ter certas informações. Agora, não vejo o Twitter, só e-mail, that's it! O que me faz ser um pouco mais optimista é que há mais e mais pessoas que estão a verificar que é preciso responder com firmeza. Se não, vamos ser destruídos. Completamente. A cultura vai ser subserviente de um tipo de informações e um tipo de isolamento de opiniões extremamente graves. E há mais e mais pessoas que estão a perceber isso.

Que estão a ser manipuladas?
Perfeitamente.

Nos últimos anos, as políticas de identidade ganharam força. O que explica a força da ideia de identidade?
Há certas ideias que são atractivas porque há uma resposta afectiva muito positiva. A ideia de identidade (em relação a uma raça, a um grupo de pessoas, a uma identidade sexual) tem muito significado e peso afectivo porque as pessoas não se sentem todas iguais. Se me disserem: “Você é português, Portugal é um país pequeno, não tem importância nenhuma”, eu fico furioso. Porquê? Há qualquer coisa que tem que ver com o sítio em que nós nascemos que forma uma parte da nossa identidade, que tem que ver com a língua, os pais, as famílias, os sítios com que nos relacionamos. São coisas extremamente ligadas àquilo que é a nossa pessoa e, por isso, um ataque a essas coisas é como se fosse um ataque físico ao nosso corpo. É daí que vem o enorme poder do aspecto identitário e a enorme gravidade que é explorá-lo. Está-se a atirar pessoas contra elas mesmas: às vezes, há um grupo ao nível de uma identidade, mas os políticos espertos conseguem partir essa identidade ao nível do sítio onde estão nos Estados Unidos.
"O enorme edifício intelectual está ligado ao edifício afectivo antigo"António Damásio

Também assistimos a uma polarização política e identitária em Portugal, nomeadamente com a ascensão da extrema-direita através do Chega. Como vê isto a partir dos EUA?
Tenho um conhecimento remoto, que vem de ler o PÚBLICO e o Expresso. Portugal é um sítio muito curioso, parece-me sempre melhor do que outros… É um país extraordinário e muito mais equilibrado. Talvez por isso tenha menos capacidade de resolver problemas, talvez porque há uma grande distribuição de generosidade, paciência e calma nas pessoas, que resulta da nossa própria história. Essas coisas que descreve encontram-se noutros países de uma forma mais vincada, com muito mais riscos, mas [em Portugal] é um espelho. As coisas parecem-me, de um modo geral, melhores.

No novo livro, escreve também sobre a inteligência artificial (IA). Não a teme.
Grande parte da IA é muito estúpida [risos]. O mais curioso na IA é que é muito limitada por aspectos cognitivos. É pensar a inteligência apenas com o aspecto mais moderno (o cognitivo) e não com os aspectos fundamentais que vêm do afecto. Ora, a inteligência dos seres vivos começou com aspectos que têm que ver com a regulação da vida. Uma vez que houve sistema nervoso, [a inteligência] passou a ser ligada pelos sentimentos e pela consciência. E só na parte final passou a ser uma inteligência dos factos, que tem que ver com olhar para o mundo e, através da visão, da audição e do tacto, descrevê-lo. Em vez de olhar para a nossa trajectória biológica, a IA foi directamente ao fim. E assim conseguiu uma coisa magnífica, que é ter uma inteligência rápida, que resolve uma quantidade de problemas, mas que, muitas vezes, os resolve de uma forma não particularmente inteligente e não condutiva ao ser humano que precisa de afecto e carinho.

O que estamos a propor é que se faça uma nova espécie de IA que tenha em conta o afecto e que vem das chamadas soft robotics (matérias que podem ser modificadas, que se podem premer ou mudar com o frio e o calor). É uma forma de dar uma resposta do tipo que nós temos quando o nosso corpo responde a boa ou má temperatura, a calorias suficientes ou insuficientes. É uma nova linha de máquinas artificiais que julgo ter imenso futuro.

O que trariam essas máquinas de bom ao ser humano?
A vulnerabilidade. A IA é um aspecto extremo da inteligência em que não há praticamente vulnerabilidade. E nós, seres humanos, estamos no meio: temos certas vulnerabilidades e certas capacidades. Para um robô se relacionar consigo ou comigo, é preciso que tenha qualquer coisa de um ser humano médio. Você não pode estar um dia inteiro sem beber água, vai ficar desidratado. Essas vulnerabilidades vêm do facto de que a vida não é um algoritmo fixo, mas uma constante adaptação a condições biológicas. Trazer vulnerabilidades para a robótica é uma maneira de a aproximar de nós. O problema da IA e a sua limitação é ser invulnerável.

Essas máquinas conseguiriam resolver problemas que hoje não conseguem?
Exacto. Falta-lhes o factor das nossas limitações.

É das limitações que surge a criatividade?
Absolutamente. A IA corrente dá-nos soluções para problemas que nós definimos. É muito mais difícil encontrar os problemas.

Os humanos são geniais quando desafiam o pensamento estabelecido. Como Einstein, que viu na gravidade um efeito de um espaço-tempo curvo.
Temos de pensar fora da caixa e para o fazer não podemos ser perfeitos.

E, por vezes, falhar espalhafatosamente.
Falhar é uma grande maneira de depois não falhar.