20.11.20
Afinal, só 10% dos casos ocorrem comprovadamente nas famílias. Mais de 80% dos casos de Covid em Portugal são de origem desconhecida
A ideia sustentou as medidas restritivas do estado de emergência. Tanto António Costa como Graça Freitas insistiram várias vezes no mesmo número: 68% dos contágios acontecem em meio familiar. Mas, afinal, nem o primeiro-ministro nem a diretora-geral de Saúde falavam do universo total de infetados, mas apenas daqueles em que se conhece o chamado “link epidemiológico”, ou seja, em que se consegue rastrear a origem da infeção. Apesar da insistência das perguntas do Observador, feitas durante esta semana, sobre qual era de facto a percentagem de casos com origem desconhecida, a resposta definitiva só chegou na reunião de especialistas do Infarmed desta quinta-feira: em 81,4% dos casos de Covid-19 as autoridades não sabem onde a infeção aconteceu.
Ou seja, em Portugal os sistemas de vigilância epidemiológica só conseguem chegar à origem de 19% dos contágios, segundo os dados apresentados por André Peralta Santos, da Direção-Geral da Saúde. Todos os restantes acontecem por transmissão comunitária, o que quer dizer que não se sabe de onde vêm, nem como acontecem.
Nos slides apresentados por António Costa, depois do Conselho de Ministros de 7 de novembro de onde saiu, por exemplo, o recolher obrigatório aos fins de semana, o valor apontado para casos sem link epidemiológico era de apenas 5% — uma percentagem muito inferior à de outros países. Na Alemanha, por exemplo, os casos de origem desconhecida são 75% e na Áustria são 77%. Em Espanha, um estudo feito no verão, revelava que 50% dos casos aconteciam em lugar e com origem desconhecida.
“68% dos contágios ocorrem em meio familiar e em convívio entre familiares, 12% em meio laboral, 8% em lares, 3% nas escolas, 3% no convívio social, 1% nos serviços de saúde. O grosso da contaminação está nos momentos de convívio familiar, em que as pessoas se sentem seguras.”
António Costa, primeiro-ministro, 7 de novembro
Por outro lado, os números mais recentes da Direção-Geral de Saúde, enviados a pedido do Observador e referentes ao período entre 9 e 11 de novembro, já mostravam valores diferentes daqueles que António Costa apresentou aos portugueses. Em vez de 68%, os contágios que acontecem em ambiente familiar tinham já descido para 55%.
A partir daqui é preciso fazer contas. Se só conhecemos menos de um quinto da origem de todos os casos, esses 55% representam uma percentagem muito menor quando se olha para o universo total de infetados com o vírus da Covid-19. Afinal, só 10,23% dos casos totais ocorrem comprovadamente nas famílias. Tudo indica que haverá mais casos, mas não são conhecidos.
Só 5% de origem desconhecida? “Era o milagre das rosas”
Desde 7 de novembro que os valores apresentados pelo primeiro-ministro têm sido a base para a tomada de decisões sobre como conter a pandemia. Nessa data, António Costa afirmava, enquanto mostrava um gráfico circular, que as infeções entre familiares e coabitantes representava 68% do total. Em meio laboral chegavam aos 12%, e em lares aos 18%. Tanto em meio escolar como em meio social a percentagem era de 3%. Nos serviços de saúde apenas de 1%. Fora do gráfico, em letras mais pequenas, lia-se: “A porção restante sem link epidemiológico conhecido.” A porção restante era de 5%.
Na conferência de imprensa, depois do Conselho de Ministros de 7 de novembro, após explicar o recolher obrigatório diário que se impunha entre as 23h e as 6 horas, António Costa sublinhava ter noção de que eram precisas medidas suplementares para conter a pandemia. “Nesta imagem que aqui temos podemos identificar quais são as causas, os contextos essenciais de contaminação que têm sido verificados no conjunto dos inquéritos epidemiológicos que têm sido verificados.” Assim explicava o chefe do Governo a necessidade do recolher obrigatório durante as tardes de fim de semana. “O grosso da contaminação está nos momentos de convívio familiar, em que as pessoas se sentem seguras”, dizia então António Costa.
O Observador tentou, sem sucesso, obter um esclarecimento do gabinete do primeiro-ministro sobre estes dados. Em concreto, pretendia-se confirmar o valor dos 5% e saber qual a fonte dos valores apresentados por António Costa, já que no documento divulgado em nenhum lugar se creditava a fonte usada.
Durante a conferência de imprensa de 7 de novembro, o chefe do Executivo nunca fez qualquer referência aos valores sem link epidemiológico, embora surgissem no gráfico.
O Observador ouviu vários especialistas, antes das declarações proferidas esta quinta-feira por André Peralta Santos, e as opiniões sobre os 5% de origem desconhecida dividiam-se: ora foram considerados impossíveis, ora foram explicados pelo sistema de vigilância português, considerado melhor do que o de outros países.
“Estimamos que 68% a 70% dos casos acontecem através de convívio familiar ou social. Consideramos que o momento da partilha de bebidas e de comida é um momento crítico para o contágio. O momento das refeições é de alto risco porque estamos sem máscara que nos dê qualquer proteção.”
“Isso é o milagre da rosas”, dizia o infectologista Francisco Antunes. “A DGS não tem pessoal suficiente para acompanhar tantos casos diários e tantas cadeias de transmissão. Nos dias em que há 6 mil casos, somos capazes de chegar à origem de todos? Não acredito nisso. Se fosse assim tão fácil, a epidemia em Portugal teria outras caraterísticas”, defendeu o professor catedrático e jubilado da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.
A 28 de outubro, a chanceler da Alemanha afirmava que o seu país tinha perdido o controlo do vírus. “Hoje estamos num ponto em que já não sabemos de onde vêm os contágios em 75% das infeções detetadas em todo o país”, afirmou Angela Merkel. Na Áustria, o chanceler Sebastian Kurz fazia uma declaração semelhante a 14 de novembro: “A verdade é que as autoridades já não conseguem rastrear 77% das infeções, o que significa que já não sabem onde ocorreram estas infeções.”
Para conhecer os números de outros países, o Observador contactou o Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC). No entanto, a resposta foi de que o organismo europeu não tem dados sobre os casos de origem desconhecida dos diferentes países. “Parece haver um consenso de que as pessoas são infetadas especialmente em espaços lotados, daí que se mantenha o conselho sobre a importância de manter o distanciamento”, disse apenas o ECDC na sua resposta.
Francisco Antunes não tem dúvidas de que os números da Alemanha ou Áustria são mais credíveis. “Neste momento, tendo em conta a transmissão que acontece na comunidade, é muito difícil identificar cadeias de transmissão em qualquer parte do mundo.”
Outros especialistas ouvidos pelo Observador antes da reunião desta quinta-feira do Infarmed sustentavam que Portugal tem uma vigilância epidemiológica que outros países não têm. E apontavam o dedo, por exemplo, à Espanha e Alemanha que, por terem sistemas organizados por regiões, não terão, na sua opinião, a mesma eficácia que o nosso sistema nacional.
Contágios familiares. Como entra o vírus em casa dos portugueses?
Seja qual for a percentagem exata dos contágios em ambiente familiar, há uma pergunta que é preciso fazer. Como é que o vírus está a entrar na casa dos portugueses? Nesse ponto, todos os especialistas ouvidos pelo Observador estão de acordo: o SARS-CoV-2 não aparece de geração espontânea.
“Quando se diz que 10 casos são de uma disseminação familiar, é provável que nem todos o sejam”, argumenta Ricardo Mexia. “Há pelo menos o primeiro caso, aquele que o levou para dentro da família, que terá acontecido noutro sítio. Há uma parte importante de disseminação comunitária do vírus. Quando saímos de casa todos nós nos cruzamos com pessoas nos supermercados, no trabalho”, detalha o especialista em Saúde Pública.
Elisabete Ramos, presidente da Associação Portuguesa de Epidemiologistas, tem a mesma argumentação: “A primeira pessoa da família é infetada nos contextos do dia a dia e quanto mais o vírus circular em comunidade, mais provável será que aconteça o primeiro caso da família. A partir daí, a disseminação pode acontecer de formas diferentes. Podemos ter um disseminador nato, que vai transmitir o vírus a muita gente — vai a muitos eventos, tem muitos contactos desprotegidos — ou podemos ter alguém que não contagia mais ninguém. A minha infeção pode multiplicar-se por muitas ou poucas pessoas dependendo do meu comportamento.”
“A verdade é que as autoridades já não conseguem rastrear 77% das infeções, o que significa que já não sabem onde ocorreram estas infeções.”
“É evidente que se o vírus está a chegar às famílias é porque elas se infetam na comunidade em festas, almoços, jantares, bares, em locais fechados… Podem acidentalmente infetar-se nos transportes públicos, nos cuidados de saúde, nas escolas. O vírus está a ser transportado de fora para dentro das famílias”, defende o médico infectologista Francisco Antunes.
O maior problema, argumenta, são os aerossóis que se formam quando se fala, se grita ou se canta. “São muito mais pequenos do que as gotículas, permanecem suspensos no ar durante horas e se eu estiver a falar com uma pessoa infetada, mesmo a mais de 2 metros de distância, sem máscaras, posso ficar infetado — sobretudo se o infetado estiver na fase de maior carga vírica, antes de aparecerem os sintomas, durante o período de incubação que é quando há maior transmissão”, explica o professor catedrático.
Tal como a epidemiologista Elisabete Ramos, Francisco Antunes lembra que nem todos os infetados transmitem o vírus da mesma forma. “Há os supertransmissores, que têm uma muito elevada carga vírica. Num restaurante, onde estamos sem máscara, se houver problemas de ventilação e lá estiver um supertransmissor, posso acabar infetado.”
Sobre os dados familiares, Elisabete Ramos, investigadora do Instituto de Saúde Pública do Porto, lembra que era importante distinguir algumas situações. “Devemos separar melhor a informação sobre contactos familiares evitáveis e não evitáveis. Os da família nuclear, que coabita, que partilha objetos, são inevitáveis. Aqueles que são visitas a familiares, em que não temos proteção, são evitáveis.”
Nenhum dos especialistas estranha que boa parte dos contactos possam acontecer em ambiente familiar, já que é ali que as pessoas baixam a guarda e se protegem menos. “Os contactos de maior risco são os de família e não os valorizamos. É normal que seja um contacto de menor cautela. Mesmo num almoço de família estamos mais à vontade”, exemplifica Ricardo Mexia.
A teoria é confirmada por quem está no terreno. Isabel Cristina, enfermeira na Unidade de Saúde Familiar de Santa Maria da Feira, passa várias horas da sua semana a fazer rastreios ao telefone. “Não tenho dúvidas de que a resposta que mais ouço é que foi com alguém de casa. Também há muitos doentes que dizem que apanharam o vírus em viagens de carro. Depois há as empresas que facilitam nos momentos de pausa e há muitas pessoas que se infetam em jantares de família e amigos.”
A enfermeira diz que este é um vírus estranho e que tanto ouve casos de famílias inteiras infetadas como lhe surgem outras em que, mesmo a dormir no mesmo quarto, o contágio não se dá. Por último, mesmo sem dados concretos, conta que cada vez mais há doentes que não sabem onde foram contaminados. “Não sei se são já a maioria, mas são muitos. Às vezes não sei o que está a acontecer. A investigação epidemiológica está a ser feita a correr, não temos tempo para descascar muito os casos positivos. O nosso foco agora é travar a pandemia, não é investigar.”