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15.7.21

Cientistas corrigem história do primeiro surto de covid-19 em Portugal

Andrea Cunha Freitas, in Público on-line

Afinal, o caso de Lousada estava mal contado. As análises às sequências genéticas do vírus que infectou várias pessoas contam uma história diferente da que ouvimos em 2020 e reforçam a importância de seguir este rasto para travar uma cadeia de transmissão.

Já passámos por muitas coisas e várias vagas desde aquele que terá sido o primeiro surto de covid-19 detectado em Portugal, numa fábrica de calçado em Lousada, no distrito do Porto. Uma equipa de investigadores do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (I3S) da Universidade do Porto e do Hospital de S. João conseguiu fazer uma reconstituição do caso que começou no fim de Fevereiro de 2020. O artigo científico publicado este mês apresenta uma nova versão da história, sublinhando a importância de seguir o rasto do vírus para travar uma cadeia de transmissão. Terá sido um oportuno excesso de zelo, mais ou menos às cegas, que evitou um pior desfecho.

O surto de covid-19 em Lousada terá sido o primeiro a ser detectado em Portugal, mas não teve consequências dramáticas. Mais de 50 pessoas foram infectadas mas foi possível isolar os casos, impedindo uma disseminação que podia obviamente ter sido mais grave e ter corrido muito mal. No entanto, na verdade o “travão” colocado neste surto foi resultado de uma série de medidas restritivas e preventivas adoptadas de forma generalizada sem que se soubesse com precisão o que estava ali acontecer. Ou seja, o plano de prevenção resultou porque apontou para todos os possíveis alvos, isolando os casos positivos detectados.

Num exercício quase forense, os cientistas conseguiram agora fazer a reconstituição deste episódio importante da pandemia a nível nacional. O trabalho foi o resultado de uma parceria que juntou os investigadores do I3S à equipa clínica do hospital de S. João, no Porto, coordenada pela infecciologista Margarida Tavares. Segundo explica ao PÚBLICO Luísa Pereira, geneticista do i3S e que coordenou este trabalho ao longo de vários meses, as análises de sequenciação do vírus reescrevem várias partes da história sobre o surto na fábrica de calçado em Lousada. O artigo foi publicado este mês de Junho na revista Viruses, do grupo suíço MDPI (Multidisciplinary Digital Publishing Institute).

Duas viagens, quatro pessoas e dois grandes almoços

Primeiro dado a corrigir no estranho caso da fábrica de calçado em Lousada: não houve uma viagem a Itália com dois elementos desta empresa. Foram duas viagens e em cada uma delas foram (e voltaram, claro) duas pessoas. Numa primeira viagem, entre 16 e 18 de Fevereiro, viajou o dono da fábrica com um cunhado. Na viagem seguinte, realizada entre 19 a 21 de Fevereiro, deslocaram-se também a Itália para outra feira de calçado um outro cunhado (que em 2020 foi identificado como paciente zero do surto em Lousada, porque foi o primeiro a ser diagnosticado) e o filho do dono da fábrica que também trabalha para a empresa.

Segundo dado a corrigir: não houve um, mas dois grandes almoços de família no mesmo dia de 25 de Fevereiro, terça-feira de Carnaval, e que acabaram por servir para alastrar ainda mais a infecção. Num dos encontros juntaram-se 26 pessoas e no outro 21.

A versão que surgiu na altura consistia no relato de apenas uma viagem de duas pessoas da fábrica, sendo que um desses viajantes teria voltado infectado e depois disseminado o vírus entre os trabalhadores da empresa e familiares, num almoço de família. Mas o rasto genético do vírus conta uma história diferente.

A pessoa que inicialmente foi identificada como o paciente zero deste surto, o cunhado que embarcou na segunda viagem, não estava infectada com a mesma variante do vírus encontrada nos outros casos diagnosticados nos dias seguintes na fábrica, na família e até entre os amigos.

“O ‘acusado’ não infectou ninguém, uma vez que nenhuma das outras pessoas tinha a mesma variante do vírus. Percebemos que quatro pessoas que trabalhavam na fábrica, e têm uma relação familiar, foram em duas viagens desfasadas mas muito próximas a duas feiras a Milão, em Itália”, confirma a geneticista.

Qualquer um dos outros três viajantes pode ter sido o paciente zero. Não se sabe ao certo quem. Luísa Pereira refere que “o mais provável” é que tenha sido o dono da fábrica que se sabe que ficou infectado com uma sequência do vírus que coincide com a maioria das outras que foram depois diagnosticadas, mas não é possível descartar as outras duas pessoas, uma vez que não foram recolhidas amostras desses indivíduos. Uma coisa é certa: as diferenças nas sequências genéticas do vírus que andou por ali a circular não permitem admitir sequer a hipótese de se tratar do mesmo vírus com uma ligeira mutação. “São dois ramos distintos”, insiste Luísa Pereira. Nas 23 sequências genéticas isoladas e analisadas, existia apenas uma que pertencia a um ramo do vírus SARS CoV-2 e todas as outras eram de um outro ramo.

Mas o que interessa, afinal, saber se foi um ou outro? A verdade é que o vírus se espalhou primeiro na fábrica e depois nas famílias e até em alguns círculos de amigos. O interesse dos investigadores é fácil de perceber, afinal estes foram os primeiros casos a surgir no país. A equipa clínica do Hospital de S. João tinha acesso a uma grande cadeia de transmissão do vírus localizada e que, só por isso, importava estudar.

O trabalho parte da identificação de uma pessoa responsável pela disseminação da infecção em ambiente de trabalho e familiar. Isto, lembra Luísa Pereira, aconteceu numa altura em que as autoridades de saúde recomendavam o isolamento e internamento hospitalar de qualquer caso positivo. “Muitas destas pessoas foram internadas e não porque estavam realmente doentes [com sintomas], mas apenas porque eram essas as indicações”, confirma a geneticista.

Assim, a análise às amostras que foi possível recolher e preservar revelou que ali existiram dois ramos distintos da infecção. A pessoa identificada como paciente zero tem uma variante do vírus que é diferente de todos os outros. As peças do puzzle só começaram a encaixar depois de muitas perguntas. Primeiro, soube-se que esse paciente não foi sozinho, depois que tinham existido duas viagens na mesma altura com outras duas pessoas ligadas à mesma empresa e, por fim, que tinham ocorrido afinal dois almoços de família no mesmo dia.


“As pessoas quando entrevistadas pelos médicos ou técnicos de saúde não se lembram de tudo – não é por mal. E o modo como se faz as perguntas direcciona muito as respostas”, justifica Luísa Pereira, sublinhando o papel da infecciologista Margarida Tavares que conseguiu obter muitos dados importantes junto de uma “aliada” que pertence à família afectada e que ajudou os cientistas fornecendo preciosos detalhes em falta.

De uma ponta até outra e outra foi possível reescrever esta história. Com um considerável grau de detalhe que mostrou, por exemplo, que uma das pessoas infectadas neste surto era a manicure de uma das mulheres mais velhas da família e que esta manicure, por sua vez, também infectou o marido. O puzzle dos cientistas numera as várias pessoas infectadas e segue-lhes o rasto, distinguindo os saltos do vírus com cores num gráfico que mostra a complicada teia de relações e contactos entre os quatro viajantes, os trabalhadores da fábrica, as famílias, os dois grandes almoços e os amigos. Como se estivéssemos a assistir a um policial em que seguimos o rasto de quem esteve com quem, onde, como e quando e o que aconteceu depois. Um policial sem grande suspense dado que já sabemos desde o início que o único culpado é mesmo o vírus.
A lição e a sorte de ser o primeiro

O facto de termos um ramo do vírus que só infectou uma pessoa e outro que infectou várias, pode significar alguma coisa sobre o agente infeccioso? Uma versão pode ser mais contagiosa do que outra? Luísa Pereira não arrisca uma resposta definitiva e reconhece que há várias hipóteses. Talvez, sugere, o tal indivíduo que tinha uma variante do vírus que não foi encontrada em mais nenhuma outra pessoa (analisada) tivesse uma carga viral mais baixa. Talvez esta pessoa tenha tido algum comportamento que evitou a sua disseminação. Talvez exista outra qualquer explicação para isso. Não se sabe.

Sabe-se que as duas sequências estavam a circular na altura e eram as duas comuns, esclarece a geneticista. Das poucas certezas que restam para memória futura é que a pessoa que foi na altura identificada como o paciente zero não o era. Não podia ser.

“A sequenciação é muito importante para ter toda a informação” sobre a viagem de um vírus e, consequentemente, para a conseguir travar. Por ter sido um dos primeiros surtos, a cadeia de transmissão acabou por ser atacada em várias frentes e evitou consequências mais graves. Mas foi uma estratégia às cegas em que todos lucraram com um excesso de zelo que impôs uma série de medidas que nas fases seguintes da pandemia (com um elevado número de casos diagnosticados) não seria possível. Isolar e até internar todos os casos positivos independentemente da gravidade dos sintomas da doença não é sequer uma hipótese hoje.

Por isso, fica a lição. Tudo acabou bem porque ainda tudo estava a começar e houve excesso de zelo, mas o ideal é que seja possível ter rapidamente este tipo de dados para agir de forma também rápida e certeira. “Agora sabemos que estas informações complementares de sequenciação são muito úteis e se forem feitas rapidamente serão muito mais úteis no terreno”, diz Luísa Pereira.

Por teimosia, rigor ou pela necessidade de saber que faz parte de fazer ciência, a equipa fez questão de tirar o estranho caso do surto na fábrica de Lousada a limpo. As análises e sequências já estavam feitas desde o ano passado e o artigo estava pronto a publicar no início deste ano, mas como as revistas foram atingidas por uma verdadeira avalanche de trabalhos sobre este vírus e sobre a doença que provoca, o esclarecimento do caso do primeiro surto de covid-19 em Portugal teve de esperar. Até agora.


20.11.20

Casos entre crianças até aos 9 anos sobem 66%. DGS passa a divulgar informação sobre situação nas escolas

 Samuel Silva e Andreia Sanches, in Público on-line

Há três semanas que não há actualização relativamente aos surtos em ambiente escolar. Número de jovens até aos nove anos infectados subiu 66% nas últimas duas semanas.

A Direcção-Geral de Saúde (DGS) vai passar a divulgar semanalmente a informação relativa ao número de casos de covid-19 registados nas escolas. Há três semanas que os dados sobre os surtos em contexto escolar não são actualizados. A decisão é tomada depois de, na quinta-feira, na reunião com peritos, o Presidente da República ter dito que queria saber mais sobre o risco que existe nas escolas. De acordo com os dados da DGS sobre a infecção nas diferentes classes etárias, o grupo das crianças até aos 9 anos é aquele onde se registou o maior aumento de infecções nas últimas duas semanas.

Os dados relativos aos estabelecimentos de ensino serão actualizados pela DGS na conferência de imprensa agendada para a próxima segunda-feira. E, a partir daí, serão actualizados semanalmente. Durante o mês de Outubro, a DGS divulgava o número de surtos em escolas nos balanços que fazia regularmente sobre a pandemia, mas há três semanas que a informação não é actualizada. Os últimos dados foram avançados a 23 de Outubro. Eram então 63 os surtos em escolas, segundo a DGS.

O Ministério da Educação lançou, entretanto, uma nova plataforma informática onde os directores de cada agrupamento devem dar conta da evolução da pandemia nas respectivas comunidades escolares. O novo sistema veio substituir o email, que estava a ser usado desde o início do ano lectivo como forma de comunicação destes indicadores aos delegados regionais de Educação.

A informação colocada na plataforma é a mesma que já antes era divulgada por email. Isto é, os directores das escolas têm que indicar sempre que existe um caso positivo na comunidade escolar, seja entre alunos, professores ou funcionários, independentemente do local de contágio. Mesmo os contágios que acontecem fora das escolas são contabilizados. Sempre que há uma turma em isolamento profiláctico também é comunicado.

O PÚBLICO pediu estes dados ao Ministério da Educação nas últimas duas semanas, bem como à Direcção-Geral da Saúde, não tendo recebido resposta até ao momento.

Desde que a plataforma foi lançada, no dia 5 de Novembro, e até à última quarta-feira, o número de jovens até aos nove anos infectados com covid-19 subiu 66%, de acordo com o boletim da DGS emitido nesta quinta-feira, com dados referentes às 24 horas anteriores. Este foi o grupo etário com maior crescimento, seguido dos 10 aos 19 anos (uma subida de 63% das infecções).


Desde o início da pandemia foram reportados 11.772 casos de covid-19 entre crianças até aos nove anos, dos quais cerca de 4600 desde 5 de Novembro, data da entrada em funcionamento da plataforma na qual as escolas devem registar os casos positivos. E foram notificados cerca de 20.780 casos nos jovens dos 10 aos 19, dos quais à volta de oito mil também de 5 de Novembro até à data.

Em números absolutos, contudo, o grupo mais atingido é o dos 40-49 anos, com 13 mil novas infecções nestas duas semanas. No mesmo período o aumento total dos casos, em todas as idades foi de 45,6% (ou seja, mais 76.109, tendo a covid-19 atingido desde Março 243 mil pessoas, a maioria das quais recuperou).

Na última semana, a DGS mudou a apresentação dos dados das infecções por grupo etário (havia menos de 300 situações no domingo para as quais não havia idade atribuída, sendo o grupo etário “desconhecido”). Desde o início da semana todas os casos reportados aparecem já com a indicação do grupo etário a que pertence a pessoa que testou positivo. Esta alteração, contudo, terá pouco impacto nas comparações da evolução da doença por idades uma vez que o número de situações que até domingo não apareciam associadas a nenhum grupo etário era residual.

Os números divulgados pelo Governo há duas semanas, quando anunciou novas medidas de combate à pandemia de covid-19 indicavam que cerca de 3% dos casos detectados provinham de “ambiente escolar”, uma categoria onde estão incluídas não só as escolas públicas, como também as privadas, as universidades e os politécnicos.

Afinal, só 10% dos casos ocorrem comprovadamente nas famílias. Mais de 80% dos casos de Covid em Portugal são de origem desconhecida

Ana Kotowicz, in O Observador

Depois do Conselho de Ministro de 7 de novembro, Costa insistiu que 68% dos contágios são em meio familiar. Afinal, esse valor, que sustentou as medidas do estado de emergência, é muito inferior.

A ideia sustentou as medidas restritivas do estado de emergência. Tanto António Costa como Graça Freitas insistiram várias vezes no mesmo número: 68% dos contágios acontecem em meio familiar. Mas, afinal, nem o primeiro-ministro nem a diretora-geral de Saúde falavam do universo total de infetados, mas apenas daqueles em que se conhece o chamado “link epidemiológico”, ou seja, em que se consegue rastrear a origem da infeção. Apesar da insistência das perguntas do Observador, feitas durante esta semana, sobre qual era de facto a percentagem de casos com origem desconhecida, a resposta definitiva só chegou na reunião de especialistas do Infarmed desta quinta-feira: em 81,4% dos casos de Covid-19 as autoridades não sabem onde a infeção aconteceu.

Ou seja, em Portugal os sistemas de vigilância epidemiológica só conseguem chegar à origem de 19% dos contágios, segundo os dados apresentados por André Peralta Santos, da Direção-Geral da Saúde. Todos os restantes acontecem por transmissão comunitária, o que quer dizer que não se sabe de onde vêm, nem como acontecem.

Nos slides apresentados por António Costa, depois do Conselho de Ministros de 7 de novembro de onde saiu, por exemplo, o recolher obrigatório aos fins de semana, o valor apontado para casos sem link epidemiológico era de apenas 5% — uma percentagem muito inferior à de outros países. Na Alemanha, por exemplo, os casos de origem desconhecida são 75% e na Áustria são 77%. Em Espanha, um estudo feito no verão, revelava que 50% dos casos aconteciam em lugar e com origem desconhecida.

“68% dos contágios ocorrem em meio familiar e em convívio entre familiares, 12% em meio laboral, 8% em lares, 3% nas escolas, 3% no convívio social, 1% nos serviços de saúde. O grosso da contaminação está nos momentos de convívio familiar, em que as pessoas se sentem seguras.”
António Costa, primeiro-ministro, 7 de novembro

Por outro lado, os números mais recentes da Direção-Geral de Saúde, enviados a pedido do Observador e referentes ao período entre 9 e 11 de novembro, já mostravam valores diferentes daqueles que António Costa apresentou aos portugueses. Em vez de 68%, os contágios que acontecem em ambiente familiar tinham já descido para 55%.

A partir daqui é preciso fazer contas. Se só conhecemos menos de um quinto da origem de todos os casos, esses 55% representam uma percentagem muito menor quando se olha para o universo total de infetados com o vírus da Covid-19. Afinal, só 10,23% dos casos totais ocorrem comprovadamente nas famílias. Tudo indica que haverá mais casos, mas não são conhecidos.
Só 5% de origem desconhecida? “Era o milagre das rosas”

Desde 7 de novembro que os valores apresentados pelo primeiro-ministro têm sido a base para a tomada de decisões sobre como conter a pandemia. Nessa data, António Costa afirmava, enquanto mostrava um gráfico circular, que as infeções entre familiares e coabitantes representava 68% do total. Em meio laboral chegavam aos 12%, e em lares aos 18%. Tanto em meio escolar como em meio social a percentagem era de 3%. Nos serviços de saúde apenas de 1%. Fora do gráfico, em letras mais pequenas, lia-se: “A porção restante sem link epidemiológico conhecido.” A porção restante era de 5%.

Na conferência de imprensa, depois do Conselho de Ministros de 7 de novembro, após explicar o recolher obrigatório diário que se impunha entre as 23h e as 6 horas, António Costa sublinhava ter noção de que eram precisas medidas suplementares para conter a pandemia. “Nesta imagem que aqui temos podemos identificar quais são as causas, os contextos essenciais de contaminação que têm sido verificados no conjunto dos inquéritos epidemiológicos que têm sido verificados.” Assim explicava o chefe do Governo a necessidade do recolher obrigatório durante as tardes de fim de semana. “O grosso da contaminação está nos momentos de convívio familiar, em que as pessoas se sentem seguras”, dizia então António Costa.

O Observador tentou, sem sucesso, obter um esclarecimento do gabinete do primeiro-ministro sobre estes dados. Em concreto, pretendia-se confirmar o valor dos 5% e saber qual a fonte dos valores apresentados por António Costa, já que no documento divulgado em nenhum lugar se creditava a fonte usada.

Durante a conferência de imprensa de 7 de novembro, o chefe do Executivo nunca fez qualquer referência aos valores sem link epidemiológico, embora surgissem no gráfico.

O Observador ouviu vários especialistas, antes das declarações proferidas esta quinta-feira por André Peralta Santos, e as opiniões sobre os 5% de origem desconhecida dividiam-se: ora foram considerados impossíveis, ora foram explicados pelo sistema de vigilância português, considerado melhor do que o de outros países.

“Estimamos que 68% a 70% dos casos acontecem através de convívio familiar ou social. Consideramos que o momento da partilha de bebidas e de comida é um momento crítico para o contágio. O momento das refeições é de alto risco porque estamos sem máscara que nos dê qualquer proteção.”

“Isso é o milagre da rosas”, dizia o infectologista Francisco Antunes. “A DGS não tem pessoal suficiente para acompanhar tantos casos diários e tantas cadeias de transmissão. Nos dias em que há 6 mil casos, somos capazes de chegar à origem de todos? Não acredito nisso. Se fosse assim tão fácil, a epidemia em Portugal teria outras caraterísticas”, defendeu o professor catedrático e jubilado da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.

A 28 de outubro, a chanceler da Alemanha afirmava que o seu país tinha perdido o controlo do vírus. “Hoje estamos num ponto em que já não sabemos de onde vêm os contágios em 75% das infeções detetadas em todo o país”, afirmou Angela Merkel. Na Áustria, o chanceler Sebastian Kurz fazia uma declaração semelhante a 14 de novembro: “A verdade é que as autoridades já não conseguem rastrear 77% das infeções, o que significa que já não sabem onde ocorreram estas infeções.”

Para conhecer os números de outros países, o Observador contactou o Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC). No entanto, a resposta foi de que o organismo europeu não tem dados sobre os casos de origem desconhecida dos diferentes países. “Parece haver um consenso de que as pessoas são infetadas especialmente em espaços lotados, daí que se mantenha o conselho sobre a importância de manter o distanciamento”, disse apenas o ECDC na sua resposta.

Francisco Antunes não tem dúvidas de que os números da Alemanha ou Áustria são mais credíveis. “Neste momento, tendo em conta a transmissão que acontece na comunidade, é muito difícil identificar cadeias de transmissão em qualquer parte do mundo.”

Outros especialistas ouvidos pelo Observador antes da reunião desta quinta-feira do Infarmed sustentavam que Portugal tem uma vigilância epidemiológica que outros países não têm. E apontavam o dedo, por exemplo, à Espanha e Alemanha que, por terem sistemas organizados por regiões, não terão, na sua opinião, a mesma eficácia que o nosso sistema nacional.

Contágios familiares. Como entra o vírus em casa dos portugueses?

Seja qual for a percentagem exata dos contágios em ambiente familiar, há uma pergunta que é preciso fazer. Como é que o vírus está a entrar na casa dos portugueses? Nesse ponto, todos os especialistas ouvidos pelo Observador estão de acordo: o SARS-CoV-2 não aparece de geração espontânea.

“Quando se diz que 10 casos são de uma disseminação familiar, é provável que nem todos o sejam”, argumenta Ricardo Mexia. “Há pelo menos o primeiro caso, aquele que o levou para dentro da família, que terá acontecido noutro sítio. Há uma parte importante de disseminação comunitária do vírus. Quando saímos de casa todos nós nos cruzamos com pessoas nos supermercados, no trabalho”, detalha o especialista em Saúde Pública.

Elisabete Ramos, presidente da Associação Portuguesa de Epidemiologistas, tem a mesma argumentação: “A primeira pessoa da família é infetada nos contextos do dia a dia e quanto mais o vírus circular em comunidade, mais provável será que aconteça o primeiro caso da família. A partir daí, a disseminação pode acontecer de formas diferentes. Podemos ter um disseminador nato, que vai transmitir o vírus a muita gente — vai a muitos eventos, tem muitos contactos desprotegidos — ou podemos ter alguém que não contagia mais ninguém. A minha infeção pode multiplicar-se por muitas ou poucas pessoas dependendo do meu comportamento.”

“A verdade é que as autoridades já não conseguem rastrear 77% das infeções, o que significa que já não sabem onde ocorreram estas infeções.”

“É evidente que se o vírus está a chegar às famílias é porque elas se infetam na comunidade em festas, almoços, jantares, bares, em locais fechados… Podem acidentalmente infetar-se nos transportes públicos, nos cuidados de saúde, nas escolas. O vírus está a ser transportado de fora para dentro das famílias”, defende o médico infectologista Francisco Antunes.

O maior problema, argumenta, são os aerossóis que se formam quando se fala, se grita ou se canta. “São muito mais pequenos do que as gotículas, permanecem suspensos no ar durante horas e se eu estiver a falar com uma pessoa infetada, mesmo a mais de 2 metros de distância, sem máscaras, posso ficar infetado — sobretudo se o infetado estiver na fase de maior carga vírica, antes de aparecerem os sintomas, durante o período de incubação que é quando há maior transmissão”, explica o professor catedrático.

Tal como a epidemiologista Elisabete Ramos, Francisco Antunes lembra que nem todos os infetados transmitem o vírus da mesma forma. “Há os supertransmissores, que têm uma muito elevada carga vírica. Num restaurante, onde estamos sem máscara, se houver problemas de ventilação e lá estiver um supertransmissor, posso acabar infetado.”

Sobre os dados familiares, Elisabete Ramos, investigadora do Instituto de Saúde Pública do Porto, lembra que era importante distinguir algumas situações. “Devemos separar melhor a informação sobre contactos familiares evitáveis e não evitáveis. Os da família nuclear, que coabita, que partilha objetos, são inevitáveis. Aqueles que são visitas a familiares, em que não temos proteção, são evitáveis.”

Nenhum dos especialistas estranha que boa parte dos contactos possam acontecer em ambiente familiar, já que é ali que as pessoas baixam a guarda e se protegem menos. “Os contactos de maior risco são os de família e não os valorizamos. É normal que seja um contacto de menor cautela. Mesmo num almoço de família estamos mais à vontade”, exemplifica Ricardo Mexia.

A teoria é confirmada por quem está no terreno. Isabel Cristina, enfermeira na Unidade de Saúde Familiar de Santa Maria da Feira, passa várias horas da sua semana a fazer rastreios ao telefone. “Não tenho dúvidas de que a resposta que mais ouço é que foi com alguém de casa. Também há muitos doentes que dizem que apanharam o vírus em viagens de carro. Depois há as empresas que facilitam nos momentos de pausa e há muitas pessoas que se infetam em jantares de família e amigos.”

A enfermeira diz que este é um vírus estranho e que tanto ouve casos de famílias inteiras infetadas como lhe surgem outras em que, mesmo a dormir no mesmo quarto, o contágio não se dá. Por último, mesmo sem dados concretos, conta que cada vez mais há doentes que não sabem onde foram contaminados. “Não sei se são já a maioria, mas são muitos. Às vezes não sei o que está a acontecer. A investigação epidemiológica está a ser feita a correr, não temos tempo para descascar muito os casos positivos. O nosso foco agora é travar a pandemia, não é investigar.”

30.7.20

Horários duplos nas escolas podem ser um risco, avisam directores

Samuel Silva, in Público on-line

Se alunos tiverem de ir para ATL vão aumentar os contactos sociais. Só nas zonas urbanas deverá haver horários divididos entre a manhã e a tarde para algumas turmas, prevêem dirigentes.

O funcionamento das escolas em horários duplos, com aulas de manhã para umas turmas e de tarde para outras, pode “ser um risco para contenção da covid-19”, acredita o presidente da Associação Nacional de Directores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP), Filinto Lima. A solução também implica constrangimentos para as famílias. Os directores acreditam que serão poucos os agrupamentos a segui-la.

A Direcção-Geral da Saúde recomenda às escolas que os estudantes circunscrevam o máximo possível os contactos aos colegas da mesma turma, para reduzir os riscos de contágio. Com os horários duplos, essa “bolha” rebentará, prevê Filinto Lima: os alunos “terão de passar a outra metade do dia em ATL ou outras soluções semelhantes” e desse modo aumentarão os contactos sociais.

A opção pelo funcionamento das escolas em horário duplo será também “a que mais problemas pode causar aos pais”, reconhece o presidente da ANDAEP. Essa é igualmente uma preocupação da Confederação Nacional das Associações de Pais (Confap). As famílias teriam de encontrar “soluções para os alunos na outra metade do dia, sobretudo para os mais novos”, afirma o presidente, Jorge Ascenção.

Nos últimos dias, tem chegado à Confap um “número superior ao desejável” de casos de escolas que querem optar pelo horário desdobrado, o que surpreendeu Ascenção: “Pensamos que esta solução deve ser tomada em casos excepcionais, mas tememos que esteja a tornar-se regra.” A Confap enviou, por isso, um pedido de esclarecimento ao Ministério da Educação.

A tutela ainda não respondeu à Confap. Questionado pelo PÚBLICO, o gabinete do ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, limita-se a afirmar que “as escolas estão a elaborar os seus planos de preparação do próximo ano lectivo, no âmbito dos instrumentos de autonomia que possuem e com as orientações enviadas”.

Tanto Filinto Lima, como Manuel Pereira, que preside à Associação Nacional de Dirigentes Escolares (ANDE), a outra associação de directores, acreditam, contudo, que será “pontual” a opção pelo horário duplo nas escolas. Essa solução é viável “sobretudo em zonas urbanas”, antevê o dirigente da ANDE, onde há maior oferta de transportes e proximidade entre os estabelecimentos de ensino e as habitações dos estudantes.

Nas zonas rurais, “muitos alunos vivem a dezenas de quilómetros” do local onde têm aulas e dependem de transportes escolares organizados pelas autarquias, com horários que estão habitualmente concentrados no início e no final do dia. Uma alteração aos horários de funcionamento dos estabelecimentos de ensino implicaria ter de reforçar a rede de transportes para dar resposta aos alunos e as autarquias “não estão dispostas a duplicar os gastos com transportes”, acredita Manuel Pereira.