28.9.23

O que vem primeiro – os lucros da indústria tóxica ou a saúde?

Vicky Cann, opinião, in Público

A prometida reforma da regulamentação dos produtos químicos na UE está a ser posta em causa pelo lobbying, numa altura em que Olaf Scholz cede às reclamações implacáveis da indústria química.


"Acabem com a desindustrialização!" é a mais recente hipérbole do lobbying da VCI (Verband der Chemischen Industrie, a associação alemã da indústria química) para se opor à nova regulamentação. A VCI é um dos principais grupos de pressão a nível alemão e europeu, e uma das suas tácticas consiste em desviar a atenção dos vastos e dispendiosos impactos dos produtos químicos tóxicos na nossa saúde e no ambiente e, em vez disso, criar alarmismo sobre a perda de "competitividade". A VCI tem na mira a legislação REACH – a mais importante da UE em matéria de produtos químicos – e exige às instituições europeias que "evitem tornar a legislação mais rigorosa". As suas exigências incluem também "travar a maré de nova regulamentação" e "evitar proibições generalizadas" de produtos químicos tóxicos.

O lado errado da história

Já aqui estivemos antes. Há vinte anos, o lobby da indústria CEFIC (Conselho Europeu da Indústria Química) utilizou exactamente a mesma retórica – denunciada na altura pelo Corporate Europe Observatory – quando se opôs à introdução das regras REACH originais e ameaçou que estas iriam "desindustrializar a Europa" e provocar a perda de dois milhões de postos de trabalho. De facto, desde 2002, as exportações de produtos químicos da UE têm crescido a uma média de 6,7% por ano.


Mas o REACH já não é adequado ao seu propósito. O Pacto Ecológico Europeu (European Green Deal) prometeu actuar em prol de um ambiente livre de substâncias tóxicas e a Comissão Europeia comprometeu-se a rever o REACH, uma vez que as regras actuais não estão a conseguir retirar as substâncias químicas tóxicas do mercado ao ritmo necessário para resolver a crise da poluição.


E é urgente. Os cidadãos europeus estão expostos a "níveis alarmantemente elevados de substâncias químicas", estando a poluição química associada ao cancro, à infertilidade, à obesidade e à asma, tendo também contribuído para o colapso das populações de insectos, aves e mamíferos.

No entanto, três anos depois, a Comissão não apresentou a sua proposta de revisão do REACH. Não só está atrasada, como também se espera que a sua ambição seja enfraquecida. Neste momento, o destino da revisão está em suspenso.

Reenquadrar a regulamentação ambiental como um "fardo" é uma táctica comum mas enganadora do lobby dos tóxicos, quando o verdadeiro fardo são os enormes impactos na saúde humana associados ao fabrico, venda e utilização de substâncias tóxicas

Como é possível que uma política progressista destinada a resolver graves problemas de saúde e ambientais, juntamente com um grande número de outras peças-chave da agenda do Pacto Ecológico sobre pesticidas e biodiversidade, tenha ficado tão vulnerável à pressão da indústria?

Acesso privilegiado

A VCI, cujos membros incluem a BASF e a Bayer, tem sido uma das vozes mais fortes a pedir aos decisores políticos alemães e da UE que impeçam a adopção de novas regras comunitárias sobre produtos químicos. E a pressão será certamente exercida sobre o Chanceler Scholz ao receber a indústria, os sindicatos e os políticos na sua cimeira sobre produtos químicos, a 27 de Setembro.


Afinal, a VCI é o quinto maior grupo de pressão na Alemanha, declarando um orçamento anual de quase 9 milhões de euros para influenciar os políticos na Alemanha e 64 lobistas activos. A nível da UE, a VCI é a quarta maior associação comercial a fazer lobby em Bruxelas (o CEFIC é a maior). Para além disso, a Lobbypedia descreve a VCI como um dos "maiores doadores partidários" na Alemanha, com 5,7 milhões de euros em donativos a partidos políticos de todo o espectro entre 2000 e 2021.


Os políticos alemães têm-se destacado na oposição à revisão do REACH, um apelo que foi depois retomado pelo Partido Popular Europeu e ouvido ao mais alto nível. Na semana passada, a Presidente da Comissão, Von der Leyen, não mencionou a revisão do REACH no seu discurso sobre o estado da UE. Até o Comissário para o Ambiente, Sinkevičius, parece duvidar do seu destino, dizendo ao Parlamento Europeu, na semana passada, que espera que a proposta veja a luz do dia, "se houver ambição".
De quem é o fardo?

Um dos principais pontos da retórica da indústria é o facto de a regulamentação ser demasiado "pesada" para a sua capacidade de lidar com ela. E essa narrativa parece ter sido bem aceite pelos políticos de direita. Mas reenquadrar a regulamentação ambiental como um "fardo" é uma táctica comum mas enganadora do lobby dos tóxicos, quando o verdadeiro fardo são os enormes impactos na saúde humana associados ao fabrico, venda e utilização de substâncias tóxicas.

Alguns custos relacionados com a saúde a nível europeu devido à exposição aos PFAS, um grupo específico de produtos químicos também conhecidos como substâncias químicas “eternas", foram estimados em 52-84 mil milhões de euros por ano. Embora os custos de pagar a factura das enormes consequências para a saúde e o ambiente dos produtos químicos tóxicos não apareçam explicitamente no orçamento de ninguém, são demasiado reais.


Mas os produtos tóxicos são o núcleo do trabalho de alguns dos membros da VCI. A BASF e a Bayer estão entre os 12 maiores produtores mundiais de PFAS e são também "campeões" de vendas dos pesticidas mais tóxicos e controversos do mundo. Entre si, os dois gigantes industriais produzem 156 produtos químicos que, segundo a ChemSec, são "substâncias que suscitam grande preocupação" e que devem ser eliminadas progressivamente.

Hora da decisão

A Comissão de Von der Leyen está prestes a decidir se mantém a sua promessa de 2020 de apresentar uma proposta sólida de reforma do REACH, a fim de regulamentar melhor os produtos químicos tóxicos, ou se cede às exigências da indústria. Por isso, o momento da cimeira de Scholz sobre os produtos químicos é ainda mais preocupante.

Depois de ter recebido a indústria química, será que vai fazer pressão em seu favor, fazendo um apelo discreto ao Berlaymont, como sabemos que os anteriores chanceleres fizeram por outros interesses industriais alemães? Ou será que vai recordar à indústria que regras ambientais mais rigorosas não são apenas do interesse público, mas que, em última análise, podem conduzir a eficiências industriais e a uma transição para produtos sustentáveis?A política consiste em tomar decisões difíceis. No caso da regulamentação dos produtos químicos, isso significa fazer frente ao poder das grandes empresas de produtos tóxicos, para proteger a nossa saúde e a dos nossos solos e águas. Os cidadãos europeus esperam que Von der Leyen e Scholz aceitem esse desafio.

Investigadora na ONG Corporate Europe Observatory (CEO)

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