26.12.22

Pandemia diminuiu o bem-estar em 2020, especialmente as condições materiais de vida

Ana Maia, in Público online

Índice de Bem-estar da população portuguesa evoluiu positivamente entre 2004 e 2020, mas pandemia teve impacto na evolução. Em 2021 parece haver sinais de estabilização.

A pandemia afectou o índice de bem-estar em 2020, especialmente na área das condições materiais de vida, revela o Instituto Nacional de Estatística (INE). Numa escala de zero a 100, o índice não chegou a metade da tabela. Já relativamente a 2021 parece ter havido sinais de estabilização.

Segundo o relatório, publicado esta segunda-feira, “o Índice de Bem-estar (IBE) da população portuguesa evoluiu positivamente entre 2004 e 2020”. Mas a pandemia de covid-19 teve impacto nesta evolução em 2020, com o INE a estimar que “o valor de 2020 se tenha mantido em 2021”. Este índice recorre a dez índices sintéticos, que se traduzem em duas perspectivas de análise: condições materiais de vida e qualidade de vida.

“Comparando a evolução das duas grandes perspectivas do bem-estar, verifica-se que foram as condições materiais de vida que apresentaram o maior decréscimo em 2020, tendo recuperado ligeiramente em 2021, contrariamente ao que sucedeu com a perspectiva da qualidade de vida que não recuperou em 2021”, lê-se na análise. Na mesma explica-se que nem todos os indicadores apresentam valores em 2021, tendo-se realizado por isso uma projecção desses indicadores e “sendo apenas divulgado o valor dos índices de domínio”.

De acordo com o INE, na perspectiva das condições materiais de vida foram considerados três domínios de análise que agregam 26 indicadores: bem-estar económico, vulnerabilidade económica e emprego. Já para a qualidade de vida foram, considerados sete domínios de análise que agregam 45 indicadores: Saúde, balanço vida-trabalho, educação, conhecimento e competências, segurança pessoal, participação cívica e governação, relações sociais e bem-estar subjectivo, ambiente.

Assim, na área das condições materiais de vida todos os índices desceram em 2020, sendo o domínio do bem-estar económico “o que apresentou a evolução mais negativa”. Mas é também aquele que se estima mais ter recuperado no ano passado. Já o domínio da vulnerabilidade económica, outro dos indicadores usados para avaliar esta perspectiva, “foi o único domínio que não recuperou em 2021”.

Quanto à perspectiva da qualidade de vida, no primeiro ano da pandemia desceram apenas os índices dos domínios da Educação, Participação Cívica e Governação e Relações Sociais e Bem-Estar Subjectivo. “A análise da evolução, entre 2019 e 2020, por indicador permite identificar os cinco mais afectados pela pandemia de covid-19: por ordem e a grande distância dos restantes indicadores, está o índice de consumos culturais, a taxa de intensidade de pobreza, a taxa de risco de pobreza, a desigualdade na distribuição do rendimento e o índice de participação em actividades públicas.”

Os dados preliminares de 2021 “apontam para a manutenção do valor do Índice de Bem-estar do ano anterior”, refere o relatório do INE, que explica que “entre 2004 e 2020, o IBE passou de 20,9 a 45,8”. Uma evolução positiva que “resulta sobretudo dos progressos verificados nas condições materiais de vida, embora a evolução da qualidade de vida também tenha sido globalmente positiva”.
Educação e saúde

Embora as duas perspectivas tenham apresentado comportamentos distintos ao longo do tempo. Entre 2009 e 2013, as condições materiais de vida evidenciaram uma tendência decrescente e a qualidade de vida uma tendência oposta. Já entre 2013 e 2016, a evolução de ambas foi no mesmo sentido. Após 2016, a qualidade de vida manteve uma “tendência decrescente suave” e as condições materiais de vida “cresceram até 2019 e diminuíram ligeiramente a partir desse ano”.

A Educação “teve uma evolução positiva durante todos os anos do período, com excepção de um decréscimo em 2020 que se estima tenha sido totalmente recuperado em 2021”, lê-se no relatório, em que se refere que a “evolução do indicador do abandono precoce de educação e formação é a principal responsável pelo andamento positivo do índice”. Já o indicador relacionado com os consumos culturais registou uma queda a pique em 2020, mostrando pequenos sinais de recuperação.

No que respeita à saúde, alguns indicadores têm registado altos e baixos ao longo dos anos. “A esperança de vida à nascença, a avaliação positiva dos serviços de saúde, a mortalidade por doenças do aparelho circulatório e a mortalidade infantil foram os indicadores que apresentaram uma evolução mais favorável do que a do índice de domínio”, diz o INE.

Apenas quatro indicadores apresentam valores para 2021: taxa de mortalidade infantil, esperança de vida à nascença, proporção da população residente que avalia o seu estado de saúde como bom ou muito bom e proporção da população que refere limitação na realização de actividades habituais devido a um problema de saúde prolongado. A primeira mantém-se em linha com 2020, mas as restantes apresentam uma tendência de descida.

Na área das condições materiais de vida, a recuperação em marcha desde 2012 do domínio do bem-estar económico foi interrompida em 2019, “ano no qual se verificou um ligeiro decréscimo, estimando-se uma recuperação em 2021”. O INE salienta “a evolução favorável dos indicadores de desigualdade e concentração e da despesa de consumo final das famílias, que são os que tiveram o comportamento mais favorável no período [2004-2021]”. Já os indicadores relativos ao património e a remuneração mensal líquida “foram, não só os que tiveram a evolução mais contida, como também os que apresentaram durante o período valores mais baixos”.

Taxa de poupança das famílias cai para mínimos de mais de uma década

Rosa Soares, in Público online

Aumento do consumo privado, em 2%, foi superior ao do crescimento do rendimento disponível (1%), atirando a taxa de poupança para mínimos de mais de uma década.

Depois do forte crescimento durante o pico da pandemia de covid-19, em que atingiu os 14%, a taxa de poupança das famílias tem vindo a cair, recuando, no terceiro trimestre, para 5,1% do rendimento disponível bruto (RDB), menos um ponto percentual relativamente ao trimestre anterior, e mínimo de mais de uma década. Para a queda contribuiu o aumento de 2% do consumo privado (2,7% no trimestre anterior, na variação em cadeia), superior ao crescimento de 1% do rendimento disponível.

Por cada 100 euros disponíveis, as famílias pouparam 5,1 euros de Julho a Setembro, o valor mais baixo desde o segundo trimestre de 2008, avança o Instituto Nacional de Estatística (INE), nas Contas Nacionais Trimestrais, divulgadas nesta sexta-feira.


“O RDB das Famílias aumentou 1% face ao trimestre anterior, verificando-se crescimentos de 1,8% e 1% das remunerações e do valor acrescentado bruto (VAB), respectivamente.”

Do lado da despesa de consumo final, o aumento foi de 2,0% (2,7% no trimestre anterior), determinando a redução da taxa de poupança para 5,1% (6,1% no trimestre anterior), o que conduziu a um défice ou necessidade de financiamento de 0,2% do produto interno bruto (PIB). Esta queda contrasta com a capacidade de financiamento dos particulares no trimestre anterior, que era de 0,4% do PIB.

O RDB ajustado nominal das famílias per capita fixou-se em 17,6 mil euros, mais 1% do que no trimestre anterior, mas em termos reais diminuiu 0,4% no período em análise, adianta o INE.

O INE salvaguarda, contudo, que nas variáveis apresentadas em termos nominais, como é o caso do consumo privado, a sua evolução é marcada pela aceleração dos preços "evidenciada pelo Índice de Preços no Consumidor no terceiro trimestre de 2022".

A Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF) das famílias, que corresponde essencialmente à FBCF em habitação, registou uma taxa de variação de 0,8% face ao trimestre anterior e um aumento de 3% face ao mesmo período de 2021.

E a taxa de investimento das famílias manteve-se em 6,0% entre o segundo e o terceiro trimestre.

Já nas contas públicas, o terceiro trimestre terminou com um saldo orçamental positivo de 2,8%, muito acima do resultado previsto para a totalidade do ano.


Maria ensina na escola onde aprendeu que ser surda não a impede de nada

Samuel Silva (texto),Paulo Pimenta (fotografia) e Teresa Miranda (vídeo), in Público online

A mais jovem professora da Escola João Araújo Correia, na Régua, quer “fazer a diferença” com crianças. Na Eugénio de Andrade, no Porto, surdos e ouvintes aprendem juntos desde o pré-escolar.

Os gorros natalícios com que os alunos cobriram a cabeça sobressaem no contraste com o fundo verde. Dinis opera a câmara, em frente da qual se põe Rafael. É o mais expressivo dos cinco rapazes desta turma da Escola João Araújo Correia, em Peso da Régua. Tem olhos muito claros e gestos muito vincados. Com as mãos, repete a frase: “Larga o jogo, vem aí o Ano Novo.”

A turma está a criar um material bilingue, em português e língua gestual portuguesa (LGP), sobre “isolamento social”, para ser divulgado na página da Internet onde este agrupamento reúne materiais didácticos para alunos surdos e ouvintes. “As mãos não são só para jogar, são para comunicar” é outra das mensagens do vídeo.

“Temos visto que os jovens estão muito focados nos jogos, especialmente depois da pandemia. A ideia foi falarmos um pouco disso e de como evitá-lo”, contextualiza Maria Oliveira. É a professora dos cinco rapazes que compõem esta turma. Alunos e docente são surdos e a LGP é a sua língua materna. A professora dá hoje aulas nas mesmas salas onde aprendeu.

O PÚBLICO conheceu Maria Oliveira em 2018. Foi um dos 44 alunos que responderam ao exame nacional de Português Língua Segunda (PL2), uma prova feita especificamente para alunos surdos, que nesse ano foi realizada pela primeira vez. Com as notas desse ano, entrou na licenciatura em Comunicação e Design Multimédia, do Politécnico de Coimbra, mas não gostou da experiência.

“Fiz uma pausa. Tive de pensar melhor e percebi que o queria mesmo era ser professora de LGP.” No ano seguinte, mudou de curso, e completou a licenciatura de ensino de Língua Gestual Portuguesa na Escola Superior de Educação de Coimbra. Agora, está a fazer o mestrado, que continua a ser a qualificação mínima obrigatória para entrar na carreira docente.

No entanto, no início deste ano, de modo a responder à escassez de docentes que tem afectado as escolas, o Ministério da Educação passou a permitir que pessoas que tivessem uma licenciatura no currículo fossem contratadas pelos agrupamentos, quando não houvesse um docente disponível. A Escola João de Araújo Correia abriu, logo em Setembro, um horário incompleto, de 11 horas lectivas, com essas condições, destinado à substituição de uma professora que está em licença de maternidade.

Maria Oliveira concorreu, “porque sim”. “Nunca pensei que iria entrar. Acabei agora o curso, há colegas com mais tempo de serviço, mas como tenho uma média da licenciatura de 18 valores, fui eu a escolhida.” Quando soube que ia ser professora na mesma escola onde foi aluna ficou “emocionada”.

“Mandaste-me uma mensagem”, acrescenta Joana Silva. É uma das intérpretes de LGP na escola de Peso da Régua. Conheceu Maria no 7.º ano e hoje acompanha as suas aulas. Trabalha naquela escola há dez anos e viveu de perto a melhoria das condições de trabalho com os alunos surdos. “Há uns anos, quando tudo corria bem, eu era colocada em Outubro”, recorda. Agora, pertence ao quadro da escola.
Faltam materiais

O agrupamento João Araújo Correia é a escola de referência para alunos surdos em todo o interior Norte. Alguns dos estudantes vêm diariamente de localidades como Tarouca, a 20 quilómetros, ou Chaves, que fica a quase 90. No entanto, não integra formalmente a rede de referência para a Educação Bilingue, criada pelo Ministério da Educação em 2008.

Esta rede foi criada pelo Decreto-lei n.º 3/2008, que mudou a forma como a escola encara os alunos com alguns tipos de deficiências, concentrando nestes estabelecimentos de ensino recursos humanos – como professores de LGP, intérpretes e terapeutas da fala – e físicos para dar respostas às necessidades educativas específicas. Há 17 escolas nessa lista que, na região norte, inclui apenas estabelecimentos de ensino localizados no Porto e em Braga.

Apesar da melhoria de condições, o trabalho dos professores de Língua Gestual ainda é “muito duro”. “O ministério não nos faculta materiais, somos nós que temos de os criar”, queixa-se Maria Oliveira. Quase todos os recursos que usa na sala de aula foram desenvolvidos por si ou enquanto professora ou enquanto aluna. “Há muitos materiais que fiz com a Filipa e o Diogo, que eram meus colegas, e que continuam aqui. Isso também me ajudou a tornar a profissional que sou hoje”, recorda com um sorriso.
Todos os dias a chamada é bilingue, vocalizando os nomes civis de cada um e usando o respectivo nome gestual 

Maria dá aulas de LGP e Cidadania a turmas do 7.º e 8.º anos e faz algumas horas da semana no pré-escolar no mesmo agrupamento. “Adoro”, atira, em referência ao trabalho com crianças. “Eu sei o quanto as crianças surdas sofrem por às vezes os pais não terem sensibilidade e acessibilidade atempadamente e é muito importante nós estarmos nessa fase com elas. Nós podemos fazer a diferença.”
556 surdos

A Direcção-Geral dos Estabelecimentos Escolares contabiliza 556 alunos surdos nas escolas nacionais. A grande maioria (428) são utilizadores de LGP. Há, no entanto, cada vez mais alunos que não optam por ter Língua Gestual, porque fizeram implantes cocleares que lhes permitem aprender em ambiente oralista. Nesses casos, beneficiam do apoio de terapeutas da fala e de professores de Educação Especial.

O Ministério da Educação está a preparar as aprendizagens essenciais para a LGP, disciplina curricular para os alunos surdos que a têm como a sua língua materna, e também para o Português Língua Segunda, o Português aprendido pelos alunos surdos. As duas disciplinas têm grupos de recrutamento de docentes próprios e são ministradas nas escolas de referência.

É o caso do agrupamento de escolas Eugénio de Andrade, em Paranhos, no Porto. Integra a rede de referência para a Educação Bilingue desde 2008, mas o trabalho com surdos remonta a 1979, fruto de uma parceria com o Instituto de Surdos Araújo Porto, uma instituição criada na cidade em 1893 e ligada actualmente à Santa Casa da Misericórdia.

A classificação como escola de referência permite ter recursos humanos reforçados para trabalhar com alunos surdos: são sete professores de LGP, oito intérpretes e nove terapeutas da fala. O agrupamento tem 83 alunos surdos, do pré-escolar ao 9.º ano. Alguns estão integrados no currículo geral e outros em turmas bilingues, com currículo adaptado. Nesses casos, as turmas são mais pequenas, podendo ter no máximo dez alunos.

É o caso do 8.º S, que encontramos na aula de Educação Tecnológica. Na sala há sete alunos, acompanhados por quatro adultos: dois professores de Educação Especial, especializados na área da surdez, uma intérprete e a professora titular da disciplina. “Fazemos uma articulação entre todos”, garante Ângela Saraiva, responsável pela disciplina.

É professora há 18 anos e integra a Equipa Multidisciplinar de Apoio à Educação Inclusiva. A turma é pequena, mas tem “muitas especificidades”, pelo que precisa realmente de todos aqueles profissionais. Os sete alunos são todos surdos, mas alguns têm medidas adicionais, devido a outras deficiências. “O grande desafio aqui é efectivamente fazer uma análise dos alunos e procurar encontrar as estratégias que vão ao encontro dos diferentes grupos.”

No quadro de ardósia, o sumário das lições n.º 9 e 10 explica aquilo em que os alunos estão a trabalhar: “Representação gráfica rigorosa da estrutura de uma ponte.” Anaísa, uma das alunas, não está com meias palavras: “Odeio esta disciplina.” “Gosto de aprender, gosto de estudar”, clarifica. Mas prefere Geografia ou Físico-Química. E também LGP.

Anaísa é surda, mas tem capacidade para oralizar. Prefere, no entanto, expressar-se na sua língua primeira. “Eu prefiro estar junto dos surdos, posso comunicar melhor.” Conhece muitos dos amigos que tem na escola desde a infância, quando entrou no pré-escolar na Escola Augusto Lessa, a EB 1 do agrupamento, situada a poucos metros da escola-sede. “Com os ouvintes é diferente. Há algumas coisas que eu não percebo, porque eles falam rápido”, acrescenta.
Amor em dactilologia

Houve um dia em que, na escola onde Miguel Sousa estudava, entregaram aos alunos uma folha com o alfabeto da LGP. “Eu aprendi aquilo e já falava alguma coisa, sempre letra a letra”, conta. Chama-se “dactilologia” ao acto de dizer uma palavra em Língua Gestual caracter a caracter. Quando conheceu Diana Silva, era assim que comunicavam. “Ela é que começou depois a ensinar-me outros gestos.”

Miguel é ouvinte, Diana é surda. Namoraram, casaram e, há três anos, tiveram um filho, Gustavo. No início deste ano, a criança entrou no pré-escolar no agrupamento Eugénio de Andrade. “Foi bom ter surdos aqui. Deu-me mais confiança. Se fosse noutra escola, seria mais difícil para mim”, confessa a mãe. Já conhecia esta escola. Também estudou aqui, desde 1999, quando entrou no 5.º ano, até ter ido para o ensino superior – é licenciada em Serviço Social.

A escola do Porto tem uma longa experiência no trabalho com alunos surdos, mas Diana Silva nota diferenças positivas face ao tempo em que foi aluna. “Agora há professores de LGP e há intérpretes.” O primeiro intérprete da escola chegou, quando Diana já frequentava o 9.º ano. Antes de ter essa ajuda “era tudo mais difícil”. “O currículo também melhorou bastante face ao tempo em que andei aqui”, avalia.

A integração dos surdos é hoje outra, realça ainda. Naquela altura, as turmas “estavam completamente separadas”. Os estudantes “ouvintes ficavam de um lado, o bloco D era para os surdos. E não se juntavam”. Hoje, as duas comunidades convivem e desde cedo. Um projecto-piloto do agrupamento Eugénio de Andrade, pensado para ter a duração de três anos, juntou crianças surdas e ouvintes, em ambiente bilingue. A ideia é que os “alunos aprendam a comunicar naturalmente em língua gestual” e “socializem desde pequenos”, sintetiza a directora adjunta, Sónia Cruzeiro.

É nesta turma que está Gustavo, filho de Diana Silva e Miguel Sousa. É uma de oito crianças ouvintes na sala do pré-escolar. Alguns deles, tal como Gustavo, são filhos de surdos, comummente designado por “CODA”, acrónimo da designação inglesa Child of Deaf Adults. O termo deu título ao filme CODA – No Ritmo do Coração, vencedor do Óscar de Melhor Filme no ano passado.

Na mesma turma há sete colegas surdos. Com as 15 crianças trabalham uma intérprete e um docente de LGP, uma educadora de Ensino Especial e dois terapeutas da fala. “Isto é um luxo”, diz Teresa, a educadora titular da turma, a propósito dos recursos humanos reunidos para este projecto-piloto. Apesar do pioneirismo do cruzamento de crianças surdas e ouvintes em ambiente bilingue, o dia-a-dia da turma é “a vida normal de jardim-de-infância”. “Eles pegam-se uns com os outros, chateiam-se”, continua a educadora.

A turma passa bastante tempo fora da escola, em diferentes actividades. A cada duas semanas, por exemplo, vão à horta na Quinta do Covelo, não muito longe do estabelecimento de ensino. No dia da visita do PÚBLICO, as crianças tinham ido semear ervilhas. De galochas calçadas e capa para a chuva com o logótipo do município do Porto, sacodem a chuva e alguma terra antes de entrarem na sala, no rés-do-chão da escola. “A não ser que chova muito, vamos na mesma. A rotina é muito importante para eles.” A chamada das 15 crianças da turma, por exemplo, é feita todos os dias por um aluno diferente. E todos os dias a chamada é bilingue, vocalizando os nomes civis de cada um e usando a LGP e o respectivo nome gestual.

Diana e Miguel quiseram integrar Gustavo nesta turma onde há crianças surdas para o ajudar “a ter mais contacto com a mãe”, conta o pai. “Em casa não quero obrigá-lo a aprender LGP. Aqui, a aprendizagem é mais natural”, acrescenta a mãe. Quatro meses depois de ter chegado à escola, a criança já se expressa em língua gestual. Em casa, refere-se aos colegas de turma pelo seu nome gestual.

“E como é o teu nome?”, pergunta o pai. Gustavo atravessa a sala de aulas e vai até à cartolina onde estão os nomes de todos os alunos. Retira o quadrado colado com velcro onde está o seu nome gestual e apresenta-o: o polegar direito a passar horizontalmente sobre a sobrancelha direita. O gesto faz referência a um arranhão que tinha feito nessa zona da face, quando era mais pequeno. Os nomes gestuais fazem sempre referência a uma particularidade de cada pessoa e são atribuídos pela própria comunidade surda a cada um dos seus membros.

Tal como os pais desejavam, Gustavo é bilingue. Com o pai, os tios e os avós, que são ouvintes, oraliza. Quando fala com a mãe, só usa língua gestual. “Ele chega a casa e já faz gestos que nós nunca lhe tínhamos ensinado”, valoriza Diana Silva. Às vezes, ainda é “preciso tentar perceber”, como acontece com qualquer outra criança de três anos que está a aprender a expressar-se. “Porque ele não faz o gesto perfeito, mas já ajuda muito para que possamos comunicar.”

Combate à pobreza deve ser “desígnio nacional”


Fátima Ferrão, in Expresso

Apoio: portugueses são solidários em situações de crise, mas ainda pecam pela aceitação da pobreza como uma inevitabilidade. Nas IPSS, o saldo das receitas continua a ser negativo e faltam braços para trabalho de voluntariado

No Dia Internacional da Solidariedade Humana, que se comemorou esta terça-feira, dia 20, Manuel Costa e Oliveira terminou o dia com uma “extraordinária sensação de satisfação”. A manhã passada num Agrupamento de Escolas do concelho de Sintra a falar sobre solidariedade e a tarde vivida numa multinacional da região a recolher bens doados deixaram o provedor da Santa Casa da Misericórdia de Sintra (SCMS) verdadeiramente surpreendido. Entre as 400 crianças que trouxeram alimentos e brinquedos para doar e a dimensão da oferta reunida pelos colaboradores da empresa do sector automóvel, aconteceu “algo nunca visto”, confessa o responsável, que dedica já mais de duas décadas às causas sociais.

São dias como este que refletem a solidariedade de um concelho onde a Santa Casa da Misericórdia alimenta diariamente 1300 pessoas, apoia centenas de idosos em atividades que promovem o envelhecimento ativo, num centro de dia e em apoio domiciliário, e faz a gestão de um centro de apoio a sem-abrigo e de uma creche. Uma missão que apenas consegue cumprir com as ajudas que recebe. “Estamos dependentes do apoio dos cidadãos, das empresas e da autarquia, porque sozinhos não temos capacidade para ajudar”, explica o provedor, que, apesar de reconhecer que os portugueses são muito solidários, defende que “é preciso muito mais e de forma regular ao longo de todo o ano”. Em Sintra faltam essencialmente voluntários, um elemento crucial para que toda esta máquina de apoio funcione. A SCMS tem pouco mais de 80 funcio­nários, mas, como explica Manuel Costa e Oliveira, precisa diariamente de motoristas para a distribuição da alimentação e de todos os braços que possam ajudar na recolha, transporte e organização dos bens doados.

Solidários mas resignados

Carlos Farinha Rodrigues também conhece bem o retrato social de um país onde a pobreza ainda afeta mais de 20% da população, percentagem que se eleva se incluirmos a franja de portugueses em exclusão social. Na opi­nião do professor do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) e autor de vários estudos sobre a pobreza e a desigualdade em Portugal e sobre a eficácia das políticas sociais, os portugueses são solidários em situa­ções de crise profunda mas pecam pela aceitação das situações de pobreza. “É frequente ouvirmos dizer que houve e sempre haverá pobreza, mas isto não é verdade, porque a pobreza resulta das nossas ações enquanto sociedade e das políticas sociais”, diz.

No entanto, o professor sublinha que o combate à pobreza não se faz apenas de políticas sociais e que a intervenção do Estado não pode resumir-se à aplicação destas políticas. Este é um trabalho que, diz, “implica a conjugação de diferentes políticas públicas, como uma melhor educação, melhores serviços essenciais, melhor habitação e mais recursos económicos”.

Uma opinião partilhada por Susana Peralta, professora na Nova SBE: “Além das políticas de apoio ao rendimento, é preciso resolver problemas estruturais, que têm um impacto no médio/longo prazo.” Por exemplo, acrescenta, uma política de habitação consequente, que não existe em Portugal. “Isso é fundamental para vários aspetos da vida das pessoas, como a educação e a saúde mental.”

Na opinião de Susana Peralta, o principal papel nas políticas de combate à pobreza tem de ser do Estado, porque tem a capacidade de partilha de risco a esta dimensão. “Pelo menos, a parte do financiamento tem de ser pública.” Carlos Farinha Rodrigues acrescenta que para este combate é fundamental juntar todos os atores — Estado, cidadãos, autarquias, IPSS e empresas —, pois “a sociedade como um todo tem de assumir esta missão, e a solidariedade é o cimento que pode fazer do combate à pobreza um desígnio nacional”.

A SOLIDARIEDADE EM NÚMEROS

Alimentação

No Banco Alimentar são distribuídas, em média, 105 toneladas de alimentos por dia. Em 2021 foram 34.551, que chegaram regularmente a 400 mil pessoas.

Sem-abrigo

Em 2021, o CASA (Centro de Apoio ao Sem-Abrigo) tirou da rua 110 pessoas. Em todo o país foram apoiadas 6447 pessoas e distribuídas 600 mil refeições quentes.

Pobreza

1,8 milhões de portugueses vivem abaixo do limiar da pobreza, com rendimentos inferiores a €6653 por ano. Número que sobe para 2,3 milhões quando se junta a exclusão social.

Apoio social

A contribuição anual do Estado para as IPSS ronda os €1,9 mil milhões. Em 2022 foi atribuído um apoio extraordinário de €18 milhões para compensar a inflação.

5 IDEIAS PARA AJUDAR NO PRÓXIMO ANO

Banco Alimentar Os 40 mil voluntários atuais são poucos para dar resposta ao trabalho diário de entregar as mais de 100 toneladas de alimentos

Corpo Europeu de Solidariedade Destinado a jovens dos 18 aos 30 anos para voluntariado dentro e fora da UE

Centro de Apoio ao Sem-Abrigo (CASA) Distribuir refeições, conversar e ajudar a incluir, de norte a sul do país

Portugal Voluntário Plataforma que põe em contacto quem quer ajudar as instituições que precisam de ajuda

Agora Nós Programa de voluntariado dirigido a jovens que em simultâneo permite reforçar diferentes competências

Refletir sobre a solidariedade

Na semana em que se celebrou o Dia Internacional da Solidariedade Humana (20 de dezembro), o Expresso — com o apoio do BPI e da Fundação “la Caixa” — desafia a sociedade a pensar neste tema e a perceber como está o panorama do sector social e dos apoios aos segmentos mais desfavorecidos da população nesta altura de reflexão.

Textos originalmente publicados no Expresso de 23 de dezembro de 2022

Portugal: Rede Europeia Anti-Pobreza distinguida pela Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados

in Agência Ecclesia

Monsenhor Agostinho Jardim Moreira destacou trabalho «na defesa dos direitos humanos e na luta contra a pobreza e exclusão social»




Porto, 23 dez 2022 (Ecclesia) – A Rede Europeia Anti-Pobreza (EAPN) Portugal foi distinguida pela Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, com o Prémio Bastonário Ângelo d’Almeida Ribeiro, no dia 16 de dezembro.

“Mais uma força motora que contribui para continuarmos a defender esses mesmos direitos humanos e as pessoas em situação de pobreza e exclusão social”, disse o presidente da EAPN Portugal, sobre o significado desta distinção.

Num comunicado enviado à Agência ECCLESIA, pela Rede Europeia Anti-Pobreza Portugal, o monsenhor Agostinho Jardim Moreira realçou é o reconhecimento de todo o trabalho da instituição “na defesa dos direitos humanos e na luta contra a pobreza e exclusão social”.

O sacerdote da Diocese do Porto salientou que é necessário um maior compromisso conjunto da sociedade com os problemas da pobreza, e exemplificou que em jogos de futebol, como no Mundial, a comunidade une-se por um só objetivo e “quando uma seleção que ganha, toda a gente grita”.

“Perante a pobreza não há um grito de alerta”, observou.

O Prémio Bastonário Ângelo d’Almeida Ribeiro da Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados destina-se a distinguir anualmente personalidades ou entidades nacionais que “mais se tenham destacado na defesa dos direitos dos cidadãos”, e já atribuído ao secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, à AMI e ao Banco Alimentar Contra a Fome.

A EAPN – European Anti Poverty Network (Rede Europeia Anti Pobreza) foi fundada em 1990, em Bruxelas, está em desde 17 de dezembro do ano seguinte, com sede no Porto.

“Somos uma organização que trabalha para e com pessoas. Ao longo destes anos, assumimos um forte compromisso com as pessoas em situação de pobreza: pugnar pelos seus direitos e dar-lhes voz”, disse o padre Agostinho Jardim Moreira.

“Não fazemos nada por eles, fazemos sim com eles: com os seus contributos, com as suas ideias, reiterando as suas angústias e preocupações. A nossa voz é a voz deles e só assim faz sentido continuar este caminho de 31 anos”, acrescentou.

A entrega do prémio realizou-se no âmbito da Sessão Comemorativa do 74.º Aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, no Salão Nobre da Ordem dos Advogados.

Presidente da República quer que no próximo ano haja menos pobreza

in RTP

O Presidente da República quer que no próximo ano haja menos pobreza e mais desenvolvimento, justiça e paz.

A mensagem foi deixada na cerimónia da entrega da Vela da Cáritas Portuguesa no Palácio de Belém .

O Presidente da República recebeu também o Corpo Nacional de Escutas, para a apresentação da Luz da Paz de Belém.

Marcelo Rebelo de Sousa sublinha que sempre que aumentam as desigualdades é a paz que fica em causa.

Cáritas luta contra o assistencialismo, mas pedidos emergenciais não param de aumentar

Sara Almeida, in Expresso das Ilhas

As acções deste organismo passam quase despercebidas, fora dos holofotes. Mas a Cáritas, organização católica presente em Cabo Verde desde 1976, continua muito activa. Longe da ideia de esmola e do assistencialismo, as Cáritas visam hoje promover a autonomia das pessoas e suas comunidades. Contudo, as imensas dificuldades que nos últimos anos têm afligido a população, continuam a obrigar, amiúde, à entrega de alimentos e outras ajudas emergenciais, como a compra de medicamentos. A pobreza está a aumentar e os desafios são muitos…

Passam quase desapercebidos do olhar do público. As acções que promovem, fazem questão, são discretas.

“As Cáritas têm um princípio: o que a mão direita dá a mão esquerda não precisa de saber”, conta a Directora Executiva da Cáritas Diocesana de Santiago, Ronisse Tavares.

Sob este princípio, quando, por exemplo, se distribuem cestas básicas ou kits escolares para famílias necessitárias, não se difundem registos da entrega. Nem quando se leva a cabo os vários projectos que desenvolvem com vista a ajudar os vulneráveis. A questão da dignidade humana prevalece, a acção é feita sem alarido público.

“É triste e lamentável quando as pessoas passam fome, ir uma figura pública mostrar a entrega daquele aquele cesto de comida. É humilhante”, critica.

Projectos

A Cáritas Diocesana de Santiago trabalha essencialmente com projectos, numa ideia de que é através destes que se consegue melhorar de forma sustentável e prolongada no tempo a vida das comunidades e sua gente.

“A Cáritas tem um trabalho que luta contra o assistencialismo. O que trabalhamos é a questão de proporcionar autonomia às próprias famílias”, explica.

Tudo começa no terreno, onde as Cáritas paroquiais, mais próximas dos problemas locais, têm um papel activo. Ronisse Duarte descreve o processo: são realizadas visitas domiciliares, durante as quais é feito um diagnóstico que permite conhecer a situação das famílias”. Os problemas são identificados, é elaborado um projecto “de forma participativa”, e busca-se então financiamento, entre financiadores e parceiros nacionais e internacionais.

Estes projectos e programas, como referido, visam promover a auto-sustentabilidade das famílias, e o bem-estar da comunidade. Entre os vários projectos desenvolvidos Ronisse destaca, por exemplo, a reabilitação ou construção de cisternas, incluindo nas escolas, construção de casas de banho, construção de pocilgas e capoeiras ou a distribuição de plantas fruteiras e animais para criação. Promovem-se também formações e apoios vários que vão da segurança alimentar, às práticas agrícolas e pecuárias, passando por áreas como o corte e costura ou o serviço doméstico.


Porém, além de projectos mais estruturados, a necessidade das pessoas mais vulneráveis cria situações em que é preciso apoiar de forma emergencial e num âmbito mais local, por vezes em doações individuais. Assim, a Caritas também promove a distribuição de cestas básicas e vestuário, medicamentos, pagamento de propinas, materiais escolares, etc.

Não é o foco principal do trabalho da Cáritas Diocesana, mas…

Aumento da pobreza

Há nove anos que Ronisse Duarte trabalha na Cáritas Diocesana de Santiago, e da sua experiência nota um aumento da vulnerabilidade nas famílias cabo-verdianas. De 2013 a 2019 sentiu-se alguma melhoria, mas desde então a esta data, a “situação está muito complexa”. À seca juntou-se a pandemia, com um aumento de trabalho significativo na Cáritas, e agora acrescenta-se o aumento exponencial dos preços de bens essenciais e outros.

Os pedidos têm vindo, pois, a aumentar desde 2019 e houve, a par disso e em sentido inverso, uma redução dos financiamentos.

“Neste momento temos 7 projectos à espera de financiamento”, desabafa Ronisse Duarte.

E quanto aos pedidos emergenciais que chegam, nota-se por exemplo, um aumento da insegurança alimentar. “Não realizamos projectos para a cesta básica”, a nível individual, lembra a directora executiva. Porém, face às necessidades de certas famílias em concreto, é impossível ficar indiferente.

“Há situações em que não dá para recusar a cesta básica, porque encontramos pessoas que, de facto, não têm nada para comer. Não podemos ficar indiferentes, perante esta situação”, reforça.

Quando isso acontece, e o pedido é feito na Cáritas diocesana, o mesmo é direccionado para a Cáritas Paroquial da zona do requerente, que tem um trabalho de maior proximidade, para o devido apoio.

Entretanto, além de alimentos também têm aumentado os pedidos para apoio nas despesas de educação e saúde, destacadamente para a compra de medicamentos e consultas (há inclusive pedidos para tratamentos em Dakar, algo que foge ao escopo da organização).

Dinheiro na mão, é contra o princípio das Cáritas, mas em caso de necessidade comprovada a nível paroquial, procede-se, à compra do medicamento necessário ou ao pagamento na instituição de ensino.

Face ao aumento dos pedidos que chegam, Ronisse Duarte não hesita a responder, tal como até os números oficiais mostram, que de facto a pobreza tem estado a aumentar.

“A situação não está fácil. Há pessoas que não têm praticamente nada”, lamenta. “Pessoas que não têm trabalho, não têm nenhuma fonte de rendimento, que têm crianças, que têm idosos, que tem pessoas deficientes em casa… damos prioridade a essas pessoas”, conta.

Um outro lado importante também da Cáritas é a difusão de informação. Assim, principalmente, ao nível das Cáritas Paroquiais, é feito um trabalho informativo junto às pessoas para estas poderem aceder aos apoios disponibilizados pelo próprio Estado. Por exemplo, as famílias são informadas de que devem integrar o cadastro único “para que possam ter acesso a direitos básicos”, ou como proceder ao “pedido de pensão social.”. Também é feita sensibilização quanto a outras questões com que se deparam no terreno como a falta de registo das crianças, entre outras.

Lembrando a tempestade René

Além da seca, pandemia e guerra, os últimos anos trouxeram também outros infortúnios que obrigam a um reforço de intervenções. Um caso destacado por Ronisse Duarte foi das chuvas torrenciais de 2020. A 8 de Setembro desse ano, a tempestade René “passou” por Cabo Verde e destruiu várias moradias e meios de subsistência, principalmente na Praia (onde inclusive faleceu um bebé nas enxurradas). A Caritas Cabo-verdiana implementou um projecto de intervenção de Urgência, juntamente com a Cáritas Diocesana de Santiago e Paroquiais, realizaram um trabalho intensivo, de apoio às famílias afectadas.

“Através da visita que realizamos na comunidade junto com as Caritas Paroquial locais, conseguimos identificar os problemas, fizemos um projecto de intervenção de urgência”

Depois, com o financiamento do CRS (Catholic Relief Services), foram apoiadas cerca de 600 famílias da Praia, Santa Catarina e São Vicente “com colchões, kits de cozinha, kits de quartos, lençóis, fogão, cesta básica num período de praticamente 3 meses…”, lembra.

Voluntariado envelhecido

Na verdade, um pouco por todo Cabo Verde há várias associações comunitárias e ONGs que vão fazendo também trabalho de apoio aos mais vulneráveis. São imensas e muitas vezes o seu trabalho tem, de facto, impacto na vida das comunidades.

A relação com entre essas entidades e a Cáritas, garante Ronisse Duarte é boa e concertada. Nas comunidades onde decorrem projectos da Cáritas, inclusive, é feita uma parceria para evitar a “questão da duplicação” de esforços. O mesmo acontece, diz, como o poder local.

Entretanto, sendo a Cáritas um organismo que funciona também com base no voluntariado, os voluntários são a sua grande força. Na diocese de Santiago há cerca de 900 voluntários, mas há também um problema: é um corpo de voluntários envelhecido e verifica-se que há necessidade na angariação de voluntários mais jovens. Mesmo no seio da Igreja Católica, os mais novos preferem outras entidades, como os escuteiros, onde podem também realizar o seu voluntariado. Outros, eventualmente, estão em outras organizações, como essas associações comunitárias, imbuídos de valores e de um espírito solidário diferentes.

Mas, “até hoje Cáritas é forte”, garante.

O envelhecimento do corpo de voluntários teve, por exemplo, bastante impacto durante a pandemia. Na altura, sabendo-se dos riscos para a população idosa, muitos voluntários ficaram com medo de sair à rua.

“Mas mesmo assim a Caritas não parou, continuou a trabalhar e muito. No confinamento o trabalho aumentou. Por exemplo, a nível nacional conseguiu-se apoiar praticamente 4 mil pessoas com cestas básicas”, refere.

Natal

E, no meio de muitas crises e tempestades, hei-nos chegados ao Natal de 2022. Se há época em que o sentimento de solidariedade é projectado, será certamente no Natal. E na Cáritas?

Por vários locais de Cabo Verde, as Cáritas paroquiais estão a organizar actividades natalícias e distribuição de dádivas às famílias vulneráveis. A Cáritas Diocesana de Santiago também costumava organizar uma actividade comemorativa, mas este ano tal não foi possível. “É tanta coisa”. Contudo, continua a apoiar as paroquiais nessas suas actividades e festas locais.

Entre os apoios para este Natal 2022, a directora executiva destaca o que foi dado para comemoração da data por parte do embaixador da Ordem de Malta, e que servirá especificamente para as comemorações da Paróquia de São José.

“As Cáritas paroquiais estão mais próximas da comunidade, mesmo que não se consiga fazer uma actividade junta, mobilizamos recursos e entregamos-mos para estas realizarem as actividades”, conta Ronisse Duarte.

A nível de ofertas a título individual, nesta época as pessoas estão mais sensibilizadas para a doação. Embora a Cáritas receba pequenos contributos durante todo o ano, no Natal isso é mais sentido, principalmente a nível das Cáritas paroquiais.

Enfim, o Natal não passa em branco, mas o trabalho da Cáritas é todos os dias, sempre que a comunidade precisar.

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Cáritas em Cabo Verde

A Cáritas é o organismo Oficial da Igreja Católica para promover a Caridade Cristã, a justiça social e a solidariedade humana um organismo oficial da Igreja Católica, presente em 162 países e 200 territórios organizados, que promove a dignidade da pessoa humana, apoiando, para o efeito, os mais vulneráveis, independentemente da sua religião, nacionalidade, ou cor política.

“É um pilar da Igreja Católica que tem uma acção direccionada para acção social e faz intervenção a nível das comunidades”, explica a Directora Executiva da Cáritas Diocesana de Santiago, Ronisse Duarte.

Foi instituída em Cabo Verde em 1976 e desde então nunca mais parou a sua actividade. No país, é constituída pela Cáritas Cabo-verdiana, que faz a ligação com a Cáritas Internacional, e duas Cáritas diocesanas (Mindelo e Santiago) que as integram 41 Cáritas Paroquiais existentes a nível nacional.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1099 de 21 de Dezembro de 2022.
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22.12.22

Drogas e álcool saem das ARS e voltam a concentrar-se num organismo único

Natália Faria, in Público online

Manuel Pizarro prepara-se para concentrar as competências em matéria do uso problemático de drogas, álcool e jogo num único organismo, semelhante ao antigo Instituto da Droga e da Toxicodependência.

Dez anos depois, o Governo prepara-se para voltar a mexer no modelo organizativo para a área dos comportamentos aditivos e das dependências. O objectivo passará por retirar o tratamento da dependência do álcool e das drogas da alçada das administrações regionais de saúde, para onde foi canalizado quando, em 2011, a pretexto da necessidade de poupança imposta pela “troika”, o Governo liderado por Pedro Passos Coelho decidiu extinguir o Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT), onde se concentravam até então todas as competências.

Ao que o PÚBLICO apurou, o novo organismo poder-se-á denominar Instituto das Adições (IA) e, além das drogas e do álcool, abrangerá também as dependências ligadas ao jogo e aos ecrãs, mas, por enquanto, nada está fechado. Não se trata de ressuscitar o IDT, mas apenas a filosofia que vigorou até então e que mantinha aglutinadas numa única organização todas as competências na área dos comportamentos aditivos – da definição de estratégias e políticas à sua operacionalização, passando pelo tratamento dos utentes e respectiva reinserção.

“Foi-nos pedida uma proposta para a concretização da criação de uma estrutura única”, confirmou João Goulão, o director-geral do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), o organismo que herdou do ex-IDT a responsabilidade pela elaboração de políticas e de normas de actuação na área, enquanto os profissionais, o tratamento, a redução de danos e a reinserção social dos utentes foram pulverizados pelas cinco ARS existentes no país. Em cada ARS foi criada uma Divisão de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (DICAD), ao mesmo tempo que os centros de respostas integradas (CRI) substituíram os antigos centros de atendimento a toxicodependentes.

O novo modelo nunca funcionou, segundo o vaticínio generalizado dos profissionais do sector. Desde logo porque a propalada integração dos CRI (onde os toxicodependentes são tratados em regime de ambulatório) na rede de cuidados primários de saúde nunca saiu do papel. Mas também porque o facto de o organismo que desenha as políticas não ter tutela nem competências sobre quem as aplica – as cinco ARS – criou uma "direcção bicéfala", ou, como caracterizou o próprio Goulão, uma “terra de ninguém”, que conduziram à degradação das respostas e à debandada de muitos profissionais.

Ao longo dos últimos anos, perante o que consideraram ser a ameaça de colapso do célebre “modelo português” que tornou o país num exemplo à escala mundial, os profissionais do sector reivindicaram repetidamente o regresso ao anterior modelo.

Em 2016, 625 profissionais da área enviaram uma carta ao então ministro da Saúde, Adalberto Campos, em que pediam a recriação de “um serviço nacional, vertical e especializado” para responder ao problema das drogas e do álcool. Naquele mesmo ano, 13 coordenadores da DICAD da região Norte demitiram-se em protesto contra a “situação de ingovernabilidade” em que se diziam.

E o actual ministro da Saúde, Manuel Pizarro, chegou a subscrever, em Dezembro de 2019, uma carta aberta em que três ex-ministros da saúde, cinco bastonários, médicos e professores universitários exortavam o Governo a criar de novo uma instituição com autonomia e meios para responder ao uso problemático de drogas. Pizarro sustentou então, em declarações ao PÚBLICO, que a solução seria “criar uma instituição do tipo IDT, com autonomia” e equiparou a extinção daquele organismo a “um erro que tarda em ser corrigido”.

Em Outubro de 2020, Pizarro foi ainda mais contundente num artigo publicado na revista Dependências: "É urgente reverter a extinção do IDT. É imperioso dar relevo à política de combate às drogas. Em nome dos dependentes e das suas famílias e em defesa das comunidades que o consumo de droga assusta e perturba, não me calarei até que isso aconteça", prometeu.

Mais recentemente, no dia 5, a secretária de Estado da Promoção da Saúde, Margarida Tavares, reconheceu, em declarações à mesma revista, a necessidade de uniformizar a "manta de retalhos" em que se transformou a resposta ao uso problemático de substâncias. E prometeu aumentar as comparticipações do estado às comunidades terapêuticas que são actualmente de um euro por hora, estando há 14 anos sem qualquer actualização.

Neste cenário de fundo, Emídio Abrantes, médico e porta-voz do chamado “Grupo de Aveiro” que dinamizou a recolha de assinaturas entre os que reivindicam o regresso ao modelo antigo, diz-se expectante. “O processo de verticalização está em curso e estamos ansiosos que avance, mas importa que este trabalho de reconstrução envolva todos os profissionais”, declarou, sustentando que a nova estrutura terá de ter assegurada uma “coexistência pacífica” com os centros de saúde, os hospitais e os cuidados de saúde mental. “É importante que haja esse ambiente solidário, de profunda cooperação, porque precisamos todos uns dos outros”, enfatizou.

Numa altura em que, na antecâmara de mais uma crise social e económica se teme pelo recrudescimento dos consumos problemáticos (a última análise à situação do país em matéria de droga dá conta de 115 mortes por overdose de drogas e álcool, num aumento de 45% face a 2020), Goulão aplaude de pé a receptividade ministerial para fazer mudanças. “A grande vantagem é termos uma estrutura que tenha a responsabilidade de pensar as políticas e que passará a poder executá-las directamente, aproveitando a massa crítica dos profissionais de primeira linha”, concluiu.

Idosos sozinhos: “Preciso de ouvir uma voz, já não digo receber aquele abraço” Programa da GNR para proteger os idosos a viver sozinhos ou isolados tem também uma dimensão social.

Ana Dias Cordeiro (texto) eRui Gaudêncio (fotografias), in Público onlline

Programa da GNR para proteger os idosos a viver sozinhos ou isolados tem também uma dimensão social. “Este bocadinho da nossa vida que acaba por ser pouco, para estas pessoas é imenso.”

Diamantino Santos Quelhas vive há 15 anos numa casinha branca à beira da estrada da Bela Vista em Vale Fetal, no concelho de Almada. Já sentado, dentro de casa, prepara-se para contar por que é uma das 105 pessoas acompanhadas pelas equipas da GNR no programa Idosos em Segurança. “Não me sinto sozinho, já estou habituado. Não gosto de incomodar ninguém.”

Di-lo com as lágrimas que lhe escapam dos olhos, como as que lhe rolaram pela face, sem aviso, assim que ao portão se viu diante do cabo da GNR, Hélio Cruz, quando este chegou pela manhã para o acompanhamento porta-a-porta do programa inserido nas funções da GNR de Prevenção Criminal e Policiamento Comunitário.

Na lista do haver, tem a casinha estreita e branca, que se abre para um pequeno quintal onde, assim que se mudou de Coimbra, para aqui morar, plantou uma nespereira, que viu crescer e que agora partilha o espaço com tralha e cadeiras velhas encostadas ao muro junto à estrada de onde acena, sempre que pode, aos conhecidos que passam. Muito alinhada está a roupa no estendal, com as peças de uso diário, um casaco leve e ainda um pijama.

A solidão e o isolamento são dois dos critérios para idosos estarem sinalizados, com registo no programa Apoio 65 – Idosos em Segurança, da Guarda Nacional Republicana (GNR). “Isto é social, não é policial, o que estamos a fazer”, diz Hélio Cruz, coordenador do programa no destacamento de Almada que abrange cinco postos territoriais da GNR (além de Charneca, também Costa da Caparica, Trafaria, Fernão Ferro e Paio Pires). O militar refere-se à sinalização, mas também à articulação que, por opção, podem fazer com os serviços sociais das juntas de freguesia, os centros de saúde, a Segurança Social e outras entidades, para suprir as necessidades dos mais vulneráveis.

“O que está escrito não é o principal, o principal é a intervenção.” Pessoalmente, diz, “isto foi uma missão que me foi atribuída, à qual me dedico de corpo e alma”.

Diamantino Quelhas recebe 370 euros de pensão de reforma e 150 euros por ano por ser antigo combatente. Mas paga 225 euros de renda e ainda o que há para pagar de água, luz e para a instituição particular de solidariedade social (IPSS) que lhe entrega a comida.

Até aos seus 65 anos, não faltava à confraternização anual dos antigos combatentes: esteve 28 meses e 19 dias, em Angola, Cabinda. Já estava então casado, desde os 19 anos, com a mulher e mãe dos dois filhos de quem está, há vários anos, divorciado. Sobre esses temas, pouco ou nada fala.

Ao seu colo, dormita “uma cachorrinha”, a Lassie. Foi-lhe oferecida num gesto de quem, por amizade, intuiu que a longa lista de perdas resultaria em demasiada solidão para tamanha fragilidade. “Foi um senhor que me perguntou se eu não queria mais nenhum quando o meu cão morreu. O dono do café também é muito meu amigo”, diz, antes de relatar, em síntese: “Arranjei um cachorrinho, ando aí a passeá-lo. Tinha um, mas ele morreu.”

Diamantino conta ainda com a amizade daqueles que, reformados como ele, se juntam no café, sempre que possível. “Somos todos vizinhos, somos todos amigos. Também é um cantinho. Não vou todos os dias mas gosto muito de ir.”
Todos os dias o filho liga para saber como está. Diamantino não telefona a ninguém. “Não tenho dinheiro no telemóvel”, diz, encolhendo os ombros, para logo depois iluminar a expressão num largo sorriso em sinal de orgulho. “Lá no café quando sentem muito a minha falta, telefonam-me.”

“Quando lá vou, tomo um café com um pastel de nata ou um queque, dou um bocadinho aqui à minha cachorrinha”, descreve assim aquela que parece ser a razão por que se levanta todos os dias. “É isso o meu pequeno-almoço.”

2020 não foi só o ano da pandemia; para Diamantino foi o ano em que “perdeu capacidade de fazer a sua alimentação”, explica o cabo Hélio. Em casa, almoça o que lhe traz diariamente o Centro Social e Paroquial de São José. “Um gajo come pouco, para dar para o jantar”, diz depois com uma risada.

O tom nunca é de queixa, mas mais horas de conversa dariam para mais incontáveis desamparos, como este: esteve com a água cortada porque recebeu uma dívida de mais de 2000 euros para pagar que era do anterior inquilino. “Durante um ano, ou mais, ia buscar água ao vizinho.” Em relação à dívida, foi esquecida, por se ter provado que o consumo não era de Diamantino.
"Andamos aqui desorientados"

Na visita da equipa de apoio aos idosos da GNR de Santiago do Cacém, a primeira coisa que Alice Serrão partilha é a grande aflição que a consome desde aquele dia em que, à saída do Intermarché, o casal foi convidado a fazer um rastreio aos ouvidos. A consulta gratuita, dentro de uma carrinha, resultaria na venda de um aparelho auditivo para o marido. É certo que este pouco conversa, não por o seu discurso não ser claríssimo, mas porque ouve muito mal.

A proposta pareceu honesta a Alice, até ao momento em que fez contas à prestação mensal de 98 euros que passariam a pagar para a compra de um aparelho que não tinham procurado. Com os juros de um plano de pagamento a 60 meses, a solução para o problema ficaria em mais de 5600 euros.

“Eu tive medo de me meter nisso e, no fim, caí na mesma. Eu bem perguntei à senhora quanto custava, mas ela não respondia, olhando só para o meu marido para lhe perguntar se ele estava a ouvir bem”, diz Alice de pé, ao lado do marido, sentado. “Eu já nem sequer tenho nome”, diz António Francisco Serrão. “Falta-me o melhor. Coitadinho”, diz sobre a perda do filho. Para qualquer um dos dois, é impossível viver desde que uma doença o levou, com 53 anos, no ano passado.

Choram sempre que falam dele, e falam muito dele porque todo e qualquer tema conduz a esse luto infinito: o estarem sozinhos e terem pouco dinheiro, as compras, a roupa de que é preciso tratar para ir ao médico, as consultas, a casa cujo telhado o filho ia arranjar, o carro, em que voltaram nesse dia, já às escuras, sem terem ligado os faróis, nem mesmo os mínimos. Costumam ir para as compras cedo, para o regresso ser feito com a luz do dia. Mas nesse dia, distraíram-se com o negócio que lhes foi proposto.

“A consulta foi muito bem dada. E o meu marido ouvia que era uma maravilha quando lhe puseram o aparelho. Mas a pessoa que vende isso tem que saber que estes aparelhos não são para quem não tem dinheiro. Ela aproveitou-se desta velharia que aqui está”, diz, contendo os nervos. Alice Serrão tem 81 anos e cuida do marido de 85 anos na aldeia de Giz onde vivem há uns anos desde que saíram de Galiza, lá junto à Lagoa de Santo André.

“Estamos acolhidos, os dois”, completa Alice, para dizer que enquanto o marido precisar dela, ela viverá. Ele trabalhou nos blocos e na limpeza das obras; ela na monda do arroz, antes de ganhar um problema na coluna. “Eu trabalhei tudo e mais alguma coisa. Reformei-me e ainda andei 12 anos na pesca na lagoa.”

Agora, com a parca pensão de reforma, há meses em que não sobra nada, diz Alice, ainda preocupada com o que o banco poderá retirar-lhe da primeira prestação do contrato que assinou por ser por débito directo. “O filhinho faltou, andamos aqui desorientados”, diz.

Ao telefone com uma representante da empresa que vendeu o aparelho, o guarda principal Luís Carapinha, que conhece bem o casal, certifica-se que nenhum valor será debitado. “Começamos a olhar para estas pessoas como se fossem da nossa família”, diz Alice, sobre essa ajuda que só ficará completa com uma confirmação que só virá na semana seguinte.
Sem um euro para um café

Hélio Cruz, ao lado da sua chefe, a tenente Patrícia Manso, é recebido com abraços quando entra pela casa de Maria Fernanda Graça, em Paio Pires, que lhe agradece “muito, muito” por a ter escolhido para contar a sua história. É para a senhora reformada um sinal de reconhecimento agora que recebe poucas visitas. Dos três filhos, diz, o que sofre de uma perturbação psiquiátrica e esteve intermitentemente acolhido em comunidades terapêuticas para tratar uma toxicodependência, “é o único que se importa”.

Os outros dois, mais novos, passam pouco, e quase não telefonam. O filho mais novo deixou-lhe um computador que não usava mas que Maria Fernanda nunca ligou nem sabe como funciona. “O que eu não gosto é de ver que tem a despensa vazia”, diz-lhe o cabo Hélio Cruz, depois de inspeccionar a cozinha. A ele, Maria Fernanda liga, mas com parcimónia. “Sei que tenho ali uma voz amiga. Às vezes sinto-me tão em baixo, moralmente em baixo. Tento não telefonar. Sei que está ocupado, e que vou provavelmente incomodar.” Não incomoda, sorri o militar. "É que eu preciso de falar, de ouvir uma voz. Não digo que seja aquele abraço…”

FotoMaria Fernanda vive sozinha em Paio Pires Rui Gaudêncio

Os fins de mês são apertados, e nesta segunda-feira é dia 28. Maria Fernanda aguarda a pensão de reforma e o subsídio de Natal para ganhar um avanço, sobretudo nos medicamentos, que já não toma há três meses. Conta os dias até esse 10 de Dezembro. Vive sem a medicação, contudo imprescindível para as dores e a garantia de uma prevenção para os acidentes cardiovasculares, depois da trombose que a levou a um internamento de 17 dias no Garcia de Orta, em Almada.

Começou depois a ser acompanhada, a ir para o centro de dia da Associação dos Pensionistas e Idosos de Paio Pires. “Fazemos desenhos, pintamos, fizemos para o São Martinho trabalhos manuais com folhas do Outono. Agora estamos a fazer tricô e trabalhos manuais para o Natal.”

As suas amigas só se aventuram com o jogo de cartas UNO quando Maria Fernanda está presente porque é aquela com as ideias mais claras e uma das mais novas, embora seja a que anda com maior dificuldade e quase já nem possa participar nos passeios. “Eu não saio. Para quê? Não tenho dinheiro nem para tomar um café. Não consigo andar. O que vou fazer para o meio da rua, sem ninguém? É uma vergonha estar ao pé das pessoas e não ter um euro para tomar um café.”

Os temas sucedem-se num fio de conversa que parecem surgir como uma lufada de ar para aligeirar “as dores e as mágoas”, diz Maria Fernanda. Ligados ou não, os assuntos sobrepõem-se uns aos outros: a solidão está ligada ao sentimento de abandono, e este fá-la valorizar a atenção do filho doente que, no entanto, foi aquele que, pela doença e a toxicodependência, a maltratou e lhe roubou todo o ouro e dinheiro que tinha em casa para comprar droga. Foram anos em que se esqueceu de si mesma. “Aqui a Dona Fernanda estava a ir-se embora aos bocadinhos. Era pele e osso”, diz Hélio Cruz.

“O meu filho nunca me bateu, mas chegou a ameaçar que me batia, que me matava e se matava. Ele ofendia-me, eu sentia-me maltratada. Eu cheguei a ganhar medo, mas não fiz queixa. Ele é o meu filho”, continua sem qualquer sinal de mágoa na voz. “Mágoas” tem, diz a reformada de 74 anos, sobretudo às segundas-feiras, quando fica calada, por nada ter para contar, no reencontro no centro de dia em que as amigas relatam com entusiasmo os programas de fim-de-semana com a família. “Vão almoçar com a filha, com o filho, com os netos. Vão sempre a algum lado. Vão passear. Custa-me muito, nessas alturas, ouvir e não ter nada para dizer.”
“Eu é que cuido da minha mulher”

Longe de tudo, Silvestre Maria Francisco não se sente sozinho. Aos 81 anos, é quem cuida da mulher com problemas de saúde. Os dois vivem no monte de Fetais dos Fogos, em Santiago do Cacém, onde, diz, não tem receio de ser assaltado.

“Poucas são as pessoas que passam por aqui. As que eu vejo passar são pessoas que eu conheço”, diz. Os fados que ouve “dia e noite na rádio, e desde que haja pilhas” enchem-lhe as medidas. Os animais fazem companhia. “Tenho os porcos a engordar ali daquele lado. E o patrão [dono dos terrenos] sempre que mata um porco, traz-me carne e linguiça.” E depois há os cães, o grande e aquele, mais pequeno, que dá o sinal quando se aproxima alguém.

Silvestre Francisco foi agricultor “quando havia de tudo – trigo, cevada, tremoço, tremocinho”. “Fui tirador de cortiça, trabalhei na construção civil. Depois acabei com tudo. Vim para esta zona. Com a minha idade, vou para onde?”, interroga-se, olhando em volta como quem vê tudo o que precisa.

“Não sinto nada que me apoquente. Não me sinto isolado”, diz Silvestre Francisco. Não tem água e não tinham luz quando vieram para aqui, diz até com um sorriso despreocupado. Pode beber a água do furo. E esta tarde, por exemplo, a sua mulher foi a casa da filha para tomar o banho. “Estamos há 30 anos juntos, há 20 anos aqui. Eu é que faço tudo, cuido dela, faço a comidinha.”
“Oxalá fosse só a mim”

Todos os anos, a Operação Censos Sénior da GNR contabiliza os idosos sinalizados que vivem sozinhos ou isolados. Fá-lo por critérios de segurança, podendo a intervenção vir a ter uma natureza social. Este ano, a Operação Censos Sénior contabilizou 44.511 pessoas, um pouco mais dos 44.484 do ano passado. Em 2020, estavam sinalizados 42.439 e no ano anterior eram 41.868. São números relativos ao continente de idosos que podem ser sinalizados pela comunidade, vizinhos ou entidades como os centros de saúde, entre outros. Também ficam sinalizados quando são vítimas de crimes, como furto, violência doméstica, negligência ou burla.

Foi por uma situação de burla que a equipa do Policiamento Comunitário de Santiago do Cacém chegou a Deixa-o-Resto. Esta é a aldeia onde Custódia Francisca guarda a casa emblemática para várias gerações de homens que tiveram no seu marido, o senhor Ventura, o seu barbeiro de eleição.
Agora viúva, sem filhos, Custódia faz por não passar muito tempo sozinha. Convive com vizinhos e tem uma amiga que, todas as noites, a acompanha nos programas de televisão, que se seguem ao jantar. Visita a irmã. Gosta de ler, especialmente à noite quando não lhe largam pensamentos sobre aquilo com que já estará conformada, diz estóica. “Eu estive quase dois meses sem cabeça para ligar a televisão. Estive à beira de um esgotamento. Mas tenho sido forte. A minha irmã diz-me sempre ‘esquece’.”

A conversa vai avançada, sem uma queixa, quando Custódia relata enfim aquilo que ainda hoje não percebe como aconteceu.

Bateram-lhe à porta e dois homens que se fizeram passar por médicos. Custódia não desconfiou. A porta ficou aberta. Quando virou costas, viu que o carro já tinha arrancado. Levaram os 20 mil euros que tinha guardado para comprar o terreno da casa. “Uma pessoa está tão tranquila. Se eu tivesse sabido, eu tinha fechado a porta.”

“Oxalá fosse só a mim.” Não é, e para isso esta equipa de cinco militares que têm sinalizadas 696 pessoas idosas sozinhas, embora nem todas a precisar de acompanhamento, organiza acções de sensibilização em lares e centros de dia.

As pessoas sentem vergonha de serem burladas, explicam o guarda principal Luís Carapinha, a cabo Mónica Madruga e o guarda principal Rui Pinto.

“As pessoas que passaram por isso dizem que lhes deram um cheirinho” e assim ficaram desorientadas. Mas é sobretudo a conversa, que as leva a acreditar, acrescentam. Os burlões entram pelas casas dos idosos com artimanhas diversas: podem pedir as notas para trocar, dizendo que as que têm guardadas vão perder validade; ou vir com a promessa de benzer o ouro para prevenir uma doença ou uma qualquer desgraça na família.

Sozinhas, mais facilmente as pessoas acreditam. A missão do programa da GNR Idosos em Segurança é garantir a segurança e o bem-estar das pessoas. Mas não fica por aí. “Temos que ter sensibilidade. Ficar algum tempo a conversar quando estamos perante pessoas vulneráveis. Este bocadinho, que na nossa vida acaba por ser pouco, para estas pessoas é imenso.”

“O RSI veio para diminuir a pobreza, mas até agora só diminuiu a severidade da pobreza. Não retirou uma única pessoa dessa situação”


Catarina Maldonado Vasconcelos, Rui Duarte Silva, in Expresso

Fernanda Rodrigues, da Comissão Coordenadora da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza e da Cruz Vermelha Portuguesa no Porto, admite preocupação perante o período que o mundo enfrenta. Os mais pobres acabarão invariavelmente por sentir ainda com mais força o impacto da crise financeira, mas Portugal tem um problema cívico de reconhecimento da pobreza. “Fomos educados a achar que é tão natural ser pobre como não ser”, diagnostica, frisando, desde logo: “Não, não é”

Inclusão, assistência e ação social sempre fizeram parte das preocupações de Fernanda Rodrigues, antiga consultora da Comissão Europeia na equipa portuguesa de avaliação do Programa Pobreza II. Já não consegue recuar ao momento divisor de águas, aquele em que a consciência soprou como um apelo para o exercício profissional. “Em todas as trajetórias, juntam-se elementos de ordem pessoal e vão-se acrescentando outros de ordem educativa e de formação. Desde cedo eu tinha muito encanto pelo compromisso com coisas que via não resolvidas na sociedade.”

A investigadora lembra-se de integrar um grupo de jovens ativistas de uma igreja, o que deu "consistência" ao encanto "pelo compromisso com coisas que via não resolvidas na sociedade", e "o curso de Serviço Social veio quase como um caminho de continuidade". Já foi coordenadora do Plano Nacional de Acção para a Inclusão, entre 2006 e 2010. Em 2016, foi condecorada com a Medalha de Honra da Segurança Social pelo trabalho no sistema de segurança social.

O compromisso com a justiça social esteve sempre presente porque "a ideia de mudar a sociedade é encantatória", admite ao Expresso. Desde o antigo Instituto de Assistência à Família ao grande compromisso com a área de política pública, Fernanda Rodrigues acompanhou todas as mudanças na Segurança Social, em trabalhos na linha da frente e na investigação, e o longo processo que Portugal tem enfrentado, desde que, em 1987, aderiu ao Programa de Luta Contra a Pobreza. Dá aulas desde 1976, coordenou os dois últimos programas de ação para a inclusão e integra uma comissão coordenadora do programa de luta contra a pobreza. Garante que "não há nada de mal na designação como assistência social" e que mantém o "posicionamento cívico e político de que ninguém quer viver num país de desigualdade": uns denunciam-na, outros intervêm e há ainda os que fazem "de conta que não veem".

Em entrevista ao Expresso, a investigadora da Comissão Coordenadora da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza e da Cruz Vermelha Portuguesa no Porto vinca que "a pobreza não é um problema da sociedade civil, é um problema das políticas públicas". Fernanda Rodrigues lembra que a “impossibilidade de acesso à primeira habitação por parte dos jovens é uma condição determinante de pobreza” e deixa um alerta: “Portugal é dos países que menos reconhecem civicamente a pobreza que tem, exatamente porque nos habituámos a conviver com ela. Fomos educados a achar que é tão natural ser pobre como não ser.”

Este é um período que a está a preocupar…|
É um período de preocupação. Todos os períodos como este, que trazem agravamento das condições de vida da população, são preocupantes. Quando isto acontece para toda a gente, acontece mais incidentemente para pessoas que já estavam em situação de desvantagem. Não há nenhum mistério nisto. Todos nós estamos a perceber o que significa o abaixamento do nível de vida. Falamos da crise inflacionista. As restrições que já estão a acontecer do ponto de vista alimentar e nutricional, do uso da habitação - que é um bem tão essencial e tão organizador das nossas vidas -, no âmbito da saúde... Muitas pessoas acabam por preterir a saúde porque têm outras coisas a que dar sentido.

“A verdade é que ninguém nos dá garantias de quando a crise inflacionária vai terminar. Estamos a tentar passar por isto como se fosse absolutamente circunstancial, mas não sabemos.”

O Serviço Nacional de Saúde deixa-nos muito bem vistos em todas as comparações internacionais, mas temos de cuidar do acesso em permanência. O acesso ao SNS é mais complicado para aqueles que têm dificuldades. Desde 2020 até agora, Portugal desceu cinco posições na comparação entre países da União Europeia. Isso é muito preocupante. Nós vínhamos a ter recentemente um trajeto de alguma melhoria. Assistir à demolição disso é fatal. Em primeiro lugar, para as pessoas, e, em segundo lugar, para aqueles que olham para a realidade com vontade de que ela seja outra.

A verdade é que ninguém nos dá garantias de quando isto vai terminar. Essa é outra incerteza. Estamos a tentar passar por isto como se fosse absolutamente circunstancial, mas não sabemos. Penso que terá repercussões, inclusivamente para a própria estratégia, que foi concebida há tão pouco tempo. Foi concebida já com muito pano de fundo relativamente ao agravamento, mas não com as tonalidades que ele vai ter.

Estamos a falar da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza, lançada no final do ano passado, que previa retirar 600 mil pessoas da situação de pobreza, entre as quais 170 mil crianças, e reduzir a taxa de pobreza monetária para 10%. Estes objetivos já não são realistas? Devem ser revistos?
Não se trata de rever os objetivos, mas de adequar os recursos a essa nova realidade. Eu continuo a achar que não temos qualquer razão para não considerar, por exemplo, que o combate à pobreza é um grande objetivo. Nesta estratégia, argumentou-se que não era possível interferir e alterar a situação de pobreza das crianças sem intervir nas famílias de que elas fazem parte. Não se pode considerar que por magia se retira as crianças da situação de pobreza. Houve esta perceção e este acordo; é um compromisso político. Não estou convencida de que esta prioridade se altere. Estou convencida de que vai ser preciso concretizá-la provavelmente com meios adicionais aos que são previstos. Em situações como esta, a primeira resposta é sempre esta: "Vamos responder como se isto fosse uma coisa para passar. Vamos fazer de conta que isto é uma circunstância, e, a par e passo, ver como isto se vai enraizando." Quando enraiza, estamos perante coisas consolidadas às quais é preciso responder de outra forma.

“A pobreza não é um problema da sociedade civil, é um problema das políticas públicas.”

Uma estratégia não resolve - e não vai resolver, de certeza -, mesmo no espaço a que se propõe, que são dez anos, o problema. A convicção necessária é de que a sua conceção correspondeu à prioridade para este tempo. Mas há muita coisa que se faz na luta contra a pobreza que, sendo de articulação com as políticas públicas, não é exclusivamente intervenção do Estado. Ainda assim, se há lugar em que o Estado tem de ter a primazia e um papel substantivo é na luta contra a pobreza. A sociedade civil, se fizer aquilo que tem feito - e bem -, é um grande apoio. Mas este não é um problema da sociedade civil, é um problema das políticas públicas.

As pessoas mais pobres são sempre mais afetadas em momentos como este, mas há também algumas franjas da sociedade a serem arrastadas para o limiar da pobreza.
Temos estes dois movimentos: os efeitos sentidos na pobreza já enraizada, mas também nas condições de empobrecimento de alguns grupos da população.

“A impossibilidade de acesso à primeira habitação por parte dos jovens é uma condição determinante de pobreza.”

Temos, por isso, perfis cada vez mais diversos da população pobre.
Sim, sobretudo de pessoas em risco de pobreza. No que diz respeito à habitação, lidamos com uma situação de dificuldade, quase impossibilidade de as pessoas ganharem autonomia. Sabe-se hoje, pelos estudos feitos, que a impossibilidade de acesso à primeira habitação por parte dos jovens é uma condição determinante de pobreza.

Nesta nova realidade de pobreza, insere-se uma grande variedade de pessoas e de territórios. As grandes zonas urbanas são muito atrativas de vários pontos de vista - como do ponto de vista cultural, por exemplo -, mas deixaram de responder às necessidades das pessoas, como, por exemplo, de alojamento. Não é muito habitual que hoje quem quer usufruir das coisas que se passam no Porto e é um jovem à procura de casa consiga fixar-se na cidade, a não ser que tenha suportes de outra natureza. Ou então estamos a incentivar os jovens e a dizer-lhes: "Tentem viver com outros." Isto é muito preocupante.

Nós só temos inventariadas na cidade do Porto as pessoas que pedem habitação social. Há uma espécie de autocondicionamento. As pessoas pedem habitação social porque estão numa determinada situação que lhes permite pensar nessa possibilidade. Mas há muitos jovens, muitas pessoas, que nem sequer pensam em concorrer à habitação social, por formação e trajeto de vida. Nós hoje estamos longe de saber qual é efetivamente a procura que a habitação tem na cidade do Porto, a não ser que recorramos aos privados que o sabem. A área da habitação é muito preocupante; é uma área em que vamos acumulando problemas.

A precariedade do trabalho é hoje uma condicionante imensa. Nós fazíamos parte de uma geração que tinha o seu salário e contava com ele. Muitos jovens vivem em situação de precariedade, sabendo que hoje têm trabalho - e até pode ser minimamente remunerado, mas também não é o caso -, mas desconhecendo se amanhã também será assim. Esta incerteza é também uma fonte imensa de precarização da vida. "Que garantias posso eu dar, numa relação, com o contrato que estabeleço?"

Há vários parâmetros para definir pobreza. Hoje é impossível também deixar de lado a pobreza energética e o peso das alterações climáticas. Esses parâmetros devem ser equacionados na definição de pobreza?
A própria estratégia toca nesse tema. Nós continuamos a falar da pobreza energética com um certo sentimento de vergonha. Chegámos às questões climáticas um bocadinho mais tarde do que outros. Isso não é problema nenhum, pode até ter uma vantagem, que é sabermos recuperar aquelas que têm sido as melhores práticas.

“Uma das consequências que vai ter a inflação é que as pensões, mesmo sendo atualizadas, nunca vão ser atualizadas tendo em conta o que está a acontecer realmente."

Ainda hoje a situação de desconforto habitacional - desconforto no sentido básico do termo, não é no sentido supérfluo - significa falar sobre o aquecimento e sobre a mobilidade dentro das habitações. Algumas pessoas não conseguem fazer o seu fim de vida em casa porque não têm condições internas de mobilidade no seu próprio espaço. Muitas vezes, há coisas que se podem fazer e há programas destinados a isso. Não podemos estar a assistir a um envelhecimento tão rápido da população sem querer interferir na qualidade desse envelhecimento. Temos de cuidar do envelhecimento de várias maneiras. Do ponto de vista das pensões, por exemplo. Provavelmente uma das consequências que vai ter a inflação é que as pensões, mesmo sendo atualizadas, nunca vão ser atualizadas tendo em conta o que está a acontecer realmente, mas através de uma percentagem calculada em média. Podemos assistir a um desgaste ainda maior das pensões, e, mais uma vez, das mínimas. As pessoas que recebem o RSI [rendimento social de inserção] também vão ter uma condição de maior empobrecimento. Aquilo que recebem do RSI vai chegar para menos do que chegava até agora, o que significa que ficam numa situação de acrescida precariedade.

"Há salários que são fontes de empobrecimento."

Dizia que a resposta à crise inflacionista tem seguido uma abordagem circunstancial. Essa não é a abordagem correta?
Nas questões da pobreza, há sempre dois andamentos. Temos um nível de pobreza consolidada, que exige medidas adequadas e que não são fáceis de implementar, reconheço. A interferência na pobreza da política de salários que temos não é um assunto que se resolva amanhã, mas tem de se resolver, porque há salários que são fontes de empobrecimento. Por outro lado, temos a pobreza que acontece no dia-a-dia: uma perda de uma casa, um acidente, situações que têm de ter uma resposta imediata. Eu não posso dizer a uma pessoa que fica sem habitação: "Olhe, estamos a desenvolver um programa de habitação ótimo. Se tiver calma, daqui a três anos terá uma casa." Cada um dos andamentos não tem de prejudicar o outro. Não podemos deixar de nos preocupar com o que acontece quotidianamente só porque temos um ótimo plano a longo prazo. Um dos grandes problemas das políticas públicas é andarem zangadas umas com as outras. Dificilmente conversam entre si. A conversa tem de ser interministerial e depois intersetorial. Tudo isto tem de fazer sentido.

Por falar em articulação, o que vê a falhar em termos de políticas locais e o que é que é falha do Estado central?
Durante muito tempo, as autarquias estiveram afastadas de um conjunto de competências que sempre foram mais reivindicadas pelo Estado central. O Estado acabou por estar responsabilizado por tarefas que melhor seriam representadas por entidades a nível local vinculadas às políticas públicas. Podem dizer que é ideologia, mas não é. Responsabilizar as políticas públicas é um ato cívico, é saber por que é que eu sou contribuinte, por que é que eu me disponibilizo, e outros para mim, relativamente a uma solidariedade nacional.

“Em muitos momentos tivemos a faca e o queijo na mão e cortámos a mão, em vez de cortarmos o queijo. É preciso aproveitar a oportunidade.”

Estamos, neste momento, a atravessar um período muito interessante desse ponto de vista, com a descentralização de algumas competências do Estado central para o poder local. Este pode ser um caminho de diálogo, em primeiro lugar, porque as políticas centrais tendencialmente têm um perfil homogeneizador da realidade, têm de falar para todos. Mas depois, na sua aplicação local, elas devem ter de conviver com a diversidade. É uma oportunidade ótima para enriquecer as políticas nacionais, e não as desmerece. Toma-as como referencial de partida e depois tenta, em cada um dos locais, uma aplicação que seja consentânea com as características de cada local e com os próprios recursos. Há locais que têm recursos do ponto de vista da solidariedade que são ótimos para articulação com estas políticas. Se não se fizer acontecer, o que vamos ter a nível local é mini políticas nacionais. Em muitos momentos tivemos a faca e o queijo na mão e cortámos a mão, em vez de cortarmos o queijo. É preciso aproveitar a oportunidade.

Outro tema que lhe é caro é o ensino superior. Muitos jovens frequentam o ensino superior, alguns com acesso a bolsas, mas continuam, depois disso, a serem pobres. A esperança de quebrar esse ciclo de pobreza muitas vezes não se concretiza. O que falha no modelo social de ensino?
Só temos em Portugal algumas áreas de preferência: os atletas de alta competição, as pessoas que vêm das ilhas... Mas depois temos dificuldade em acomodar outros públicos. Está aberta outra via interessante: que a entrada no ensino superior se faça pela via profissionalizante. Quem entra nessas condições frequentemente entra com armas desiguais. Não basta dizer "temos a porta aberta, todos podem entrar". Essa é uma falsa noção de igualdade e de acessibilidade. Para se entrar, é preciso ter as condições de entrada. Depois da entrada, é preciso ter condições para ficar. É um trabalho que deveria ser feito. As universidades têm serviços sociais, mas muitas vezes estão muito mais associados à atribuição das bolsas do que à atenção aos percursos de alguns alunos que precisariam de um suplemento de vantagem para os igualar. Há muito trabalho a fazer no ensino superior, para eliminarmos a ideia - que vai sendo esbatida - de que muitos são chamados mas poucos são escolhidos.

Mas temos melhorado muito. Há hoje famílias analfabetas que têm jovens no ensino superior. Fizemos um longo percurso num período relativamente escasso. Temos de saber o que isto significa do ponto de vista do uso pleno das instituições. Há um desenho que diz "serviço público" e "entrada livre", mas tem a porta de um tamanho menor do que o dos cidadãos. Ninguém entra naquela porta. Não chega dizer "a porta está aberta".

Hoje temos uma geração tão qualificada e tão preterida em tantas coisas, designadamente no trabalho. Muitas vezes, o que os jovens têm à sua espera não é proporcional à expectativa e às competências que criaram.

Isabel Jonet argumentou que poderia ser útil fornecer alguma pedagogia quanto a apoios extraordinários distribuídos pelo Governo. Falta pedagogia? E em que contexto essa pedagogia poderia ser apresentada?
A pedagogia faz-nos falta a todos. Numa sociedade de consumo, querermos fazer pedagogia exclusivamente com aqueles que têm menos dinheiro é começar pela porta errada. Se há pedagogia a fazer é relativamente ao grande consumo. Há, como há relativamente à habitação, um modo de usar, que resulta, não do ato de ensinar, mas da ideia de uma boa convivência. Pode, nesse sentido, fazer-se alguma coisa, mas se isso for alargado a toda a sociedade: por exemplo, se for feito para um grupo de jovens, independentemente se recebem RSI ou outra coisa. Tenho muitas dúvidas quanto a singularizar isto para pessoas em situação de pobreza, e parece-me que socialmente sempre configurará como discriminação. É mais um estigma em cima da pessoa.

Falta sobretudo pedagogia para compreender que o combate à pobreza favorece todos?
Falta. Somos um país ainda em que o reconhecimento da pobreza é comparativamente mais baixo ao de outros países. Isto tem uma história. Como chegámos muito tarde aos direitos sociais e ao estado de bem-estar, ainda hoje temos sob vigilância algumas situações que foram durante muito tempo preteridas nas nossas sociedades. Portugal, Itália, Grécia são países que menos reconhecem civicamente a pobreza que têm, exatamente porque nos habituámos a conviver com ela. Fomos educados a achar que é tão natural ser pobre como não ser. Não, não é, ser pobre resulta das condições de desenvolvimento da nossa sociedade. Não é natural.

“Ninguém gosta nem quer viver num país com pobreza. Só nos apercebemos disto quando temos os pobres a bater à nossa porta.”

Tivemos uma longa conversa, quando da elaboração da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza, sobre isso, e lá ficou plasmado o sexto eixo: considerar a pobreza como um desígnio nacional. Enquanto não o fizermos, vamos ter as pessoas que lidam com as finanças, que ligam com a cultura, a acharem que não é nada consigo, que a pobreza é algo das políticas sociais e, de preferência, algo para que as organizações não governamentais façam alguma coisa. A pobreza tem de ser um desígnio das políticas públicas que se fazem assessorar pela sociedade civil. Ninguém gosta nem quer viver num país com pobreza. Só nos apercebemos disto quando temos os pobres a bater à nossa porta.

Porque é que a pobreza é sempre atirada para essa espécie de anonimato?
Temos, neste momento, cerca de 22% de pessoas em situação de pobreza; uma em cada cinco. E eu sou incapaz de reconhecer essas pessoas? Se quiser enumerar, entre as pessoas que conheço, estes 22%, tenho dificuldade, o que significa que há muitas pessoas com quem eu privo que estão nesta situação e não dão conta disso. Se a pessoa está nessa situação, não tem de se envergonhar dela, porque não é sua responsabilidade individual. Claro que há condições individuais que prejudicam a possibilidade de sair da pobreza. Tem que ver com a construção social que fizemos, em que uns singraram e outros ficaram para trás. Há gente que está para trás desde os tempos dos trisavós e por aí fora. Há famílias tradicionalmente pobres e nós convivemos com isso. Colocar isto como desígnio nacional é dizer: a pobreza é com todos. Todos têm de ser responsabilizados, não tem de ser profissionalmente, mas enquanto cidadãos. Quando alguém vê uma pessoa em situação de sem-abrigo a ser apoiada e diz "estou a descontar para isto", está a fazer um mau entendimento do problema. Temos de querer que isso seja resolvido, temos de estar disponíveis para isso, para fazer com que as políticas públicas que têm de responder a isto funcionem.

Temos boas razões e estudos para sabermos a raiz de alguns problemas de pobreza. Se continuarmos a ter políticas laborais e económicas que favorecem a condição de pobreza, as políticas sociais estão sempre a correr atrás do prejuízo.

“Hoje em dia, uma pessoa chega a um lugar qualquer, diz que recebe o RSI e é olhada de imediato como subsidiodependente, preguiçosa, uma série de coisas.”

O RSI veio para dimunuir a pobreza. O que conseguiu até agora? Diminuiu a severidade da pobreza. Não retirou uma única pessoa da situação de pobreza, exceto quem entrou no mercado de trabalho. Com o subsídio em si, não. Há também ainda hoje muitas medidas de política que são mal entendidas pelas pessoas, o que se repercute na taxa de não utilização dessas políticas. Há pessoas que não acedem porque não têm a informação certa. De quem é a responsabilidade? É sempre das pessoas, nunca é dos serviços que não explicam... Hoje em dia, uma pessoa chega a um lugar qualquer, diz que recebe o RSI e é olhada de imediato como subsidiodependente, preguiçosa, uma série de coisas. Quando implementámos o RSI, nós sabíamos que isso ia acontecer. Aconteceu algo semelhante em França. Ainda há muita desconfiança em relação ao que se pode fazer no combate à pobreza.

Mais de 70% dos empregos perdidos em 2020 eram ocupados por jovens

Victor Ferreira, in Público online

Muitos jovens com contratos a prazo não tiveram protecção nos apoios durante a pandemia e estão a pagar o “ajustamento”. Não é um problema “deles”, é do país, avisa o Livro Branco, hoje apresentado.

O emprego dos jovens portugueses “continua a ser de baixa qualidade” e muito exposto às crises. Talvez, por isso, mais de 70% dos postos de trabalho que se perderam com a chegada da pandemia fossem ocupados por jovens. Dos 95.500 postos de trabalho que desapareceram em 2020, 68.200 pertenciam a trabalhadores com menos de 30 anos, muitos deles precários, mesmo quando têm qualificações de nível superior.

Quem o diz são a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Observatório do Emprego Jovem (OEJ) e a Fundação José Neves (FJN), que uniram esforços na recolha e análise de dados relativos à situação laboral dos mais novos e esta terça-feira apresentam o Livro Branco Mais e Melhores Empregos Para os Jovens.

É um relatório com 29 páginas recheadas de dados, de fontes diversas (Eurostat, OIT, Segurança Social, IEFP, Pordata, Quadros de Pessoal do MTSSS, FJN, entre outros). Muitos números já são conhecidos, mas organizados e estudados com o foco nas camadas mais jovens, e permitem um retrato que muitas vezes se esbate nas leituras macro da economia e do mercado laboral.

É notório o impacto negativo que a covid-19 teve na situação laboral dos sub-30. Com o Ano Europeu da Juventude (que se celebrou em 2022) a terminar, as notícias não são as melhores. No primeiro ano da pandemia, 49.200 jovens entre os 15 e os 24 anos perderam o emprego, mais 19 mil da faixa etária 25-29. No total, estes dois grupos representam 71,4% do emprego perdido em 2020.

Desengane-se quem acha que é um problema “deles”, alertam os autores deste relatório em quatro capítulos, que fecha com uma agenda de medidas “estratégicas” para atacar as fragilidades expostas por mais este diagnóstico. É também um problema “para o país”, já que “os défices de oportunidades de emprego e de trabalho de qualidade para os jovens comportam importantes custos sociais e económicos e limitam o potencial de desenvolvimento” da economia e da sociedade.

O aviso é repetido diversas vezes pelos autores deste trabalho, realizado com o patrocínio da Presidência da República e na sequência do 1.º Ciclo de Conferências “O Futuro Já Começou”, em Novembro de 2021, no Iscte, onde se discutiu o tema “O Futuro do Trabalho Visto pelos Jovens”. O problema das gerações conduz à “perda de muitos jovens qualificados para países que oferecem melhores salários e melhores condições de trabalho”.

É uma espécie de círculo vicioso: “Baixos salários limitam o poder de compra dos jovens e reduzem o nível de procura dirigida a empresas que actuam no mercado interno"; “o impacto na natalidade tem efeitos a médio-longo prazo no potencial de crescimento da população em idade activa, num contexto de acentuado envelhecimento demográfico”; apesar da falta de pessoas, o desemprego jovem é 2,5 vezes superior ao desemprego total; na pandemia, esse rácio subiu para 3,5 vezes.

Tudo acaba no retrato que se tira a partir dos Censos 2021 e de outras fontes: Portugal é o país da UE que envelhece mais rapidamente; que tem 182 idosos para cada 100 jovens; profundamente inclinado para o litoral e com 20% da população concentrada em 1% do território; que não rejuvenesce nem com um aumento de 37,5% de estrangeiros, porque os mais novos saem do país à procura de um salário digno e de um contrato fixo que não encontram no país deles, nem quando têm um diploma; em que o curso superior rende menos do que o secundário em 12 países da UE; e onde os jovens saem mais tarde de casa dos pais.
Prémio salarial da educação

Se olhássemos só para o que mudou no país, em termos de educação e formação, até à chegada da pandemia, Portugal só teria motivos para sorrir. A taxa de abandono escolar (18-24 anos) era má em 2010, de 28,3%, muito acima da média europeia (13,8%). Porém, nos últimos 12 anos, este valor caiu drasticamente, para 5,9%, quase metade da média europeia (9,7%).

Uma maior oferta no ensino profissional teve aqui um papel decisivo. Em 2020, 45% dos portugueses entre os 20 e os 34 anos tinham completado o secundário pela via profissionalizante. Em 2014, eram apenas 37%. Mas esse valor ainda está abaixo da média europeia (62%). “A atractividade continua a ser reduzida”, com uma “fraca reputação” e a percepção de que se trata de uma “alternativa” para os mais pobres, os que vêm de famílias com menos escolaridade e para profissões pouco qualificadas, aponta-se neste Livro Branco.

Como há mais jovens a concluir o secundário, também há mais a chegar ao ensino superior. Este ano, quase 50 mil entraram na primeira fase de colocações. O número de matriculados nunca foi tão alto (416 mil, segundo dados de Maio). O estudo Education at a Glance (OCDE), divulgado em Outubro, permitia concluir que um “diploma universitário foi a maior garantia de emprego durante a pandemia”. Mas a educação não faz milagres sozinha.

"O prémio salarial da educação continua a existir de forma clara”, mostram os dados, porque quem tem mais formação ganha mais. Porém, o reverso da medalha é que essa vantagem salarial “tem vindo a diminuir, o que, por sua vez, pode reduzir os incentivos” à continuação de estudos.

A verdade é que, em 2021, 48% dos portugueses entre os 25 e 34 anos tinham já formação superior. É verdade que os empregadores se queixam da “falta das designadas soft skills", como “competências comportamentais e relacionais”, “falta de maturidade”, “de capacidade de comunicação e adaptação” e “desconhecimento da realidade do trabalho, mesmo entre diplomados”.

Mas as competências digitais básicas melhoram mais entre jovens do que no resto da população. Acresce o domínio de outras línguas: 60% falam pelo menos mais um idioma (40% na UE); e 7% estudam uma segunda língua (pior do que na UE, onde são cerca de 40% também).

“Em suma, os indicadores revelam avanços consideráveis ao nível da qualificação da geração mais jovem.” O problema vem a seguir: “Portugal tem evidenciado níveis de desemprego jovem superiores à média da União Europeia.” Este indicador diminuiu antes da crise pandémica, de 34,4% para 17,9%, mas aumentou muito rapidamente depois de 2020, chegando aos 23,4% em 2021.

São duas as razões principais: uso e abuso nos contratos a termo; e entrada mais difícil no mercado de trabalho quando a pandemia atirou a economia para um período de retracção e deixou o sistema de ensino meio suspenso.

Esta era uma mensagem que já tinha sido entregue ao país. Talvez com este detalhe nos números ela ganhe mais visibilidade no debate público – e prioridade na política pública.

Aí vai um exemplo: o documento usado pelo XXII Governo para apresentar ao país o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), que tinha 16,6 mil milhões de fundos comunitários para recuperar o país da pandemia, tem uma única menção a programas virados para jovens (o Impulso Jovens Steam, com 130 milhões de euros).

Eis a crua conclusão dos autores: ​"É sobretudo sobre os trabalhadores mais jovens que recaem os custos dos ajustamentos das empresas a choques externos, como quebras abruptas na procura ou disrupções nas cadeias de abastecimento. Como resultado, mais de 70% dos empregos perdidos entre 2019 e 2020 eram ocupados por jovens.”

Isto sucede porque há mais jovens entre a população “com relações contratuais atípicas”. Em 2021, 53,9% dos trabalhadores nos 15-24 anos tinham contrato a prazo. Na população total (15-64 anos), eram “apenas” 14,6%.

Os sectores da pandemia

Na crise da pandemia, os sectores mais afectados foram a hotelaria e a restauração, que são os que têm mais contratos a termo certo e empregam muita mão-de-obra jovem, salienta o documento. Por outro lado, apoios como o layoff simplificado “incentivaram a não despedir, mas não asseguraram a renovação dos contratos temporários”.

O cenário piora: ​"Portugal destaca-se no plano europeu como um dos países com maior quebra de emprego entre os jovens e um dos países em que os jovens transitaram em maior proporção para a inactividade do que para o desemprego, o que significa um maior afastamento dos jovens portugueses do mercado de trabalho, dificultando a sua reintegração.”

​A qualidade do emprego é outra dimensão preocupante. "O emprego temporário limita oportunidades e torna os jovens mais vulneráveis. (...) ​O peso destes vínculos entre os trabalhadores mais jovens é particularmente alarmante, em particular quando comparado com os restantes países europeus”, alertam os autores.

Em 2015, depois da troika, a faixa 25-29 anos representava 42,7% de contratos temporários em Portugal, face a 26% na União Europeia. Entre 2015-2019, registou-se uma diminuição, mas em 2020 o peso relativo destes contratos reduziu-se significativamente, não porque passassem para os quadros, mas porque não foram renovados. “​Os dados de 2020 reflectem assim uma destruição de emprego que retirou do mercado de trabalho muitos jovens com vínculos precários, devendo por isso ser lidos à luz deste contexto”, avisa o relatório.

​O problema também se coloca “quando o temporário se torna permanente e o contrato temporário permanece, não por opção, mas por falta de alternativa”. É essa realidade dos jovens portugueses, em percentagens que assustam. Tal como os baixos salários: 33,9% dos jovens até 25 anos e 25,8% dos jovens entre os 25 e 29 anos ganham o salário mínimo. Nos trabalhadores com 30 anos ou mais, são 23,7%. (Junho 2021)

A sobrequalificação “é outro motivo de insatisfação no trabalho”. Mas a frustração “resulta também da precariedade contratual mesmo em profissões altamente qualificadas”. Esta “baixa qualidade do emprego tem levado muitos jovens a emigrar e a expansão do trabalho remoto é uma ameaça acrescida”. Vimos o filme em 2014: 56.563 jovens entre os 15 e 29 anos saíram do país.

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​As perspectivas salariais “também pesam”. “Os salários de países próximos são significativamente mais elevados do que os oferecidos aos jovens em Portugal”, mostram os dados. Em paridade de poder de compra, um português com menos de 30 anos ganha por mês 55% da média da UE, 33% da média salarial na Suíça, e 47% da Alemanha – alguns dos principais destinos de emigração de portugueses.

"Este diferencial salarial tem vindo a agravar-se": em 2010, um jovem português nas mesmas condições ganhava um pouco melhor – 68% da média da UE, 41% da média suíça e 60% da média alemã. A culpa? “Em parte, a estagnação salarial em Portugal.”

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Acontece ainda que “sectores pouco intensivos em conhecimento ou tecnologia absorvem muita mão-de-obra jovem, apesar de oferecerem condições pouco atractivas”. É exemplo disso “a maior concentração de jovens no comércio, na indústria transformadora, na hotelaria e restauração e no sector administrativo”. São ainda sectores “nos quais a contratação temporária tem vindo a aumentar entre os jovens”.

A presença de jovens graduados em profissões menos qualificadas tem outro efeito potencial negativo: pode resultar na exclusão de não-graduados.

Em resumo


Ideias-chave retiradas do Livro Branco: Mais e Melhores Empregos Para os JovensA nível individual, há uma ampla evidência de que a entrada no mercado de trabalho em situações de ciclo económico desfavorável resulta em efeitos negativos prolongados que se vão esbatendo apenas no longo prazo (“efeito cicatriz”).
Episódios de desemprego ou de um emprego de baixa qualidade têm inúmeras repercussões, desde logo no mercado de trabalho, com um menor investimento do empregador na formação, menor segurança no emprego, menor oportunidade de progressão na carreira e perdas salariais.
Carreiras profissionais mais instáveis resultam também em menor protecção social, quer no curto prazo, em situação de desemprego, quer nos médio e longo prazos, como no apoio à maternidade e na velhice.
Por sua vez, estas repercussões estendem-se a outras dimensões da vida dos jovens, como a sua saúde mental, a possibilidade de constituir família, a compra de casa e a emancipação financeira dos jovens em relação aos seus pais. No contexto europeu, os jovens portugueses estão entre os que mais tarde saem de casa dos pais (em média aos 30 anos)
O emprego dos jovens continua a ser de baixa qualidade e particularmente afectado pelas crises económicas. Desde 2015, o desemprego jovem é mais de 2,5 vezes superior ao desemprego total. A crise pandémica agravou a situação, levando ao aumento deste rácio para 3,5.
A prevalência de relações contratuais flexíveis explica o acentuado agravamento do desemprego jovem no contexto da crise pandémica. Embora, até 2019, tenha havido uma diminuição da contratação não permanente entre os jovens, nesse ano a percentagem de trabalhadores com menos de 25 anos com contratos a termo certo era de 56%, enquanto na população total era de 18%
A proporção de jovens com contratos temporários involuntários em Portugal é muito superior à média europeia.
Além do emprego temporário, os jovens auferem salários baixos comparativamente à média europeia, e sem progressão salarial na última década.
Os mais escolarizados, os graduados do ensino superior, tendem a estar sobrequalificados no emprego e, como tal, sujeitos a uma erosão das competências adquiridas.
Os sectores que mais têm crescido, em mão-de-obra e contratação de jovens, são pouco intensivos em conhecimento ou tecnologia, recorrem fortemente ao emprego temporário e oferecem salários mais baixos. Por outro lado, alguns serviços intensivos em conhecimento, como as consultorias e programação informática, também têm vindo a crescer, oferecendo salários mais elevados.
Estudos disponíveis mostram que um em cada cinco jovens não consegue encontrar emprego; a transição da escola para o mercado de trabalho é marcada pela precariedade e rotação involuntária de emprego; os salários não são atractivos e incentivam cada vez menos o prolongamento do ciclo de educação-formação; e o desajustamento entre a formação adquirida e a requerida é cada vez maior. A frágil situação no mercado de trabalho compromete a vida pessoal, adia a independência e a formação de família, e provoca frustração e doenças mentais.
o sistema produtivo não acompanhou suficientemente a evolução da oferta de qualificações e competências - os empregos oferecidos tendem a ser de fraca qualidade, num tecido empresarial de micro e pequenas empresas cuja competitividade assenta muitas vezes na contenção dos custos salariais