19.12.22

Como Portugal está a fintar a crise energética

Miguel Prado, in Expresso

A Europa ainda não sabe como vai gerir os próximos invernos, consumado o divórcio do gás russo. Portugal não passou incólume, mas também não viveu o drama de outros parceiros europeus. As renováveis estão a revelar-se como um seguro contra a volatilidade de preço. E o país tem uma enxurrada de grandes projetos fotovoltaicos a nascer. Serão a chave para trancar futuras crises energéticas do lado de lá do nosso quintal?

O quotidiano de Nuno Santos Silva, 36 anos, é um trabalho repartido entre o ar puro do Alentejo e um pequeno escritório num contentor instalado no meio de uma central solar. Não é uma central qualquer. A Ourika foi a primeira fotovoltaica de larga escala a entrar em operação em Portugal sem qualquer subsidiação. Fruto de um investimento de €35 milhões, foi inaugurada em 2018, ocupando cerca de 100 hectares em Ourique. Pertence hoje à seguradora alemã Allianz, que nos últimos anos decidiu apostar em ativos de energias renováveis, uma fonte de rendimento de longo prazo com relativa previsibilidade: enquanto houver sol, há eletrões que rendem cifrões. E é Nuno quem diariamente se desloca à central, como supervisor da manutenção. O funcionário da Prosolia, a empresa luso-espanhola que desenvolveu este empreendimento, acompanha o empreendimento desde 2018. Antes vivia em Castro Verde e trabalhava na Somincor. É uma história, entre tantas outras, de uma geração de engenheiros a viver do impulso que as renováveis tiveram em Portugal nos últimos anos. Esta vaga de investimentos que promete continuar. E é uma peça-chave para a resiliência do país num quadro de profunda insegurança que a Europa vai vivendo no domínio energético.

Numa sexta-feira solarenga de novembro Nuno Santos Silva explica-nos que as centrais fotovoltaicas precisarão sempre de intervenção humana. “Temos vários tipos de manutenção corretiva e preventiva. O painel solar tem uma degradação que pode ser causada por sombras, com falhas de energia. E há ratos que roem cabos. Mas eles já cá estavam. Nós é que viemos para cá ocupar o seu espaço”, aponta. Ratos, coelhos, cobras e ovelhas são visitantes habituais de uma central que ocasionalmente também recebe visitas de estudo. A central Ourika só emprega três pessoas em permanência, mas as operações de manutenção ao longo do ano envolvem mais 30 a 40 pessoas, de diferentes empresas.

Esta corrida ao ouro, se assim se pode chamar à febre pelo licenciamento de grandes fotovoltaicas, está a gerar novas fontes de rendimento para quem tem terrenos disponíveis para arrendamentos de longo prazo com promotores fotovoltaicos, dispostos a pagar em torno de €1000 anuais por hectare. E Nuno Santos Silva assegura que não falta quem ande à procura de fazer negócio com os seus terrenos, para aí instalar parques solares. “Recebo uns 10 a 12 telefonemas por semana”, conta-nos o responsável da Prosolia em Ourique, que também acompanhou um outro projeto de larga escala, em Alcoutim, no Algarve, que permitiu ao proprietário de um restaurante local fazer centenas de refeições diárias para os trabalhadores da central e faturar mais em dois anos de construção do empreendimento do que em 20 anos de trabalho na Suíça.

Percorremos os caminhos que atravessam a central solar, passamos pelas ruínas de um antigo moinho e chegamos a um pequeno edifício junto ao transformador do empreendimento, uma enorme máquina que ainda leva a marca Efacec, uma referência na indústria nacional que vem enfrentando ao longo dos últimos anos profundas dificuldades. São 13h, a temperatura exterior é de 21 graus, a superfície dos módulos fotovoltaicos está a 39, mostram os ecrãs que Nuno Santos Silva vai monitorizando. Cada megawatt hora (MWh) a mais de eletricidade solar é um MWh a menos de eletricidade gerada a partir da queima de gás natural. E isso pode fazer alguma diferença numa Europa que luta para assegurar o aquecimento dos próximos invernos, livre de gás russo. A crise energética foi exacerbada pela guerra na Ucrânia. Mas começou bem antes da invasão.

COMO COMEÇOU A CRISE

Quando, em fevereiro deste ano, a Rússia invadiu a Ucrânia, o contrato de referência de gás natural na Europa, o holandês TTF (sigla para Title Transfer Facility), rondava os €90 por MWh. A cotação disparou com a guerra, e em agosto chegou a quase €350 por MWh. Desde então, o preço do gás aliviou. Mas a verdade é que bem antes do início da guerra já o preço do gás tinha iniciado uma escalada. Transacionado a menos de €20 até maio de 2021, o gás natural viu a cotação subir a partir do verão, atingindo um pico de mais de €130 por MWh a 22 de dezembro de 2021.

Esta subida teve consequências nefastas. Contagiou os preços grossistas da eletricidade (já que boa parte dela é produzida em centrais alimentadas a gás) e penalizou uma longa lista de indústrias fortemente dependentes do gás. Também atingiu muitas famílias, mas com efeitos mitigados por algumas medidas adotadas pelo Governo ao longo do último ano.

Numa análise publicada em janeiro deste ano, o investigador Mike Fulwood, do Oxford Institute for Energy Studies, lembra que na primavera de 2021 a Europa ainda tinha reservas de gás natural ligeiramente acima do habitual no período pré-pandemia. Mas no verão a produção europeia de gás baixou e as importações da Rússia também. Isso levou o Velho Continente a importar mais da Argélia, Irão e Azerbaijão. Só que não era só a Europa à procura de gás: China, Japão e Coreia do Sul, à procura de acautelar o inverno seguinte, e países como Brasil e Chile, a braços com uma quebra da produção hídrica, também estavam fortemente importadores de gás, impulsionando o seu preço. A análise de Mike Fulwood nota ainda que os dados disponíveis indiciam que no final de 2021 a Gazprom estava a reter volumes de gás por razões geopolíticas (pressionando a Comissão Europeia a aprovar o gasoduto Nord Stream 2) ou para manter os preços elevados. “A crise energética agudizou-se na Europa depois de a Rússia ter invadido a Ucrânia, mas já estava em formação há algum tempo, devido ao subinvestimento em projetos de petróleo e gás devido às preocupações climáticas. A pandemia de covid-19, com níveis de investimento e de atividade mais baixos, acelerou o declínio, e a invasão russa da Ucrânia amplificou o choque do lado da oferta”, afirma ao Expresso o presidente executivo da Galp, Andy Brown.

Quase metade da produção elétrica em Portugal ainda tem um sistema de preços garantidos. Abrange energia eólica, solar e outras fontes limpas


Ainda hoje, quando nos preparamos para entrar em 2023, “o mercado do gás todo ele está curto”, frisa Nuno Ribeiro da Silva. O professor do ISEG acredita que “há condições para 2023 ser menos penalizador do que tem sido este ano” e não vê razão para “estamos a pôr um sinal de alarme para o inverno de 2023/2024”. Mas a situação da Europa é ainda frágil. “Houve realmente uma reação bastante empenhada que permitiu à Europa ter um reforço de stocks, o que é um ponto positivo”, contextualiza o especialista, ressalvando, contudo, que o facto de as reservas europeias de gás estarem hoje a mais de 90% não é uma garantia de que tudo correrá bem no próximo ano, até porque em alguns países a capacidade de armazenamento cobre o consumo de apenas um mês. Com tanques momentaneamente cheios, e sem capacidade de receber mais gás nos poucos terminais existentes, a cotação da energia transportada pelos navios metaneiros baixou. “Esta situação vai alterar-se quando for necessário encher outra vez o armazenamento”, alerta Jorge Vasconcelos, antigo presidente da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos e fundador da consultora New Energy Solutions.

De resto, o aperto não ocorreu só no gás natural. Os combustíveis rodoviários também encareceram com a retoma da procura depois da forte contração da pandemia. A guerra na Ucrânia acentuou as incertezas. O gasóleo passou a ser mais caro que a gasolina. Isso deveu-se ao facto de a Europa, que é em termos líquidos importadora de gasóleo, se ter visto obrigada a encontrar outras fontes de fornecimento para reduzir a sua dependência da Rússia. E com uma capacidade de refinação menor do que era há uns anos, a Europa viu subir as cotações das matérias-primas. As margens de refinação alcançaram patamares inéditos. E contribuíram, juntamente com preços elevados do crude, que a generalidade das petrolíferas obtivesse, sobretudo no primeiro semestre, lucros muito maiores que os dos anos anteriores. E com isso a Comissão Europeia lançou o chamado windfall tax (imposto sobre os lucros excessivos, ou inesperados, ou caídos do céu, da indústria dos combustíveis fósseis). Entre as empresas alvo desse novo imposto, temporário, está a Galp, cujo lucro ascendeu a €608 milhões até setembro, mais 86% do que no ano passado. A maior parcela desses ganhos vem da exploração e produção de petróleo (sobretudo no Brasil).

UM NOVO CONTEXTO TAMBÉM PARA AS EMPRESAS DE ENERGIA

“Na Galp, tivemos de encontrar rapidamente novas opções de aprovisionamento para alguns dos produtos que alimentam a nossa refinaria, e tivemos que reconfigurar completamente a nossa rede de hedgings financeiros para um mundo de intensa volatilidade. Tivemos igualmente de adotar medidas de apoio aos nossos clientes nestes tempos difíceis”, sublinha o presidente-executivo da empresa. “Esta crise veio confirmar que a nova ordem mundial que se tem vindo a construir exige precisamente o tipo de investimentos com os quais a Galp está comprometida, nas energias renováveis, no hidrogénio, na cadeia de valor das baterias de lítio e na inovação, continuando ao mesmo tempo a desenvolver os projetos tradicionais de petróleo e gás que ainda são essenciais para manter o mundo em movimento”, nota Andy Brown.

Na concorrente EDP, a crise energética também teve o seu impacto. O presidente-executivo da EDP, Miguel Stilwell de Andrade, diz ao Expresso que a gestão da empresa se confrontou com desafios “a diversos níveis. Tornou-se ainda mais crítico assegurar a disponibilidade dos nossos ativos, seja de geração ou distribuição, para garantir a segurança do abastecimento, numa altura em que algumas fontes energéticas estão limitadas”, aponta. Os impactos nas cadeias de abastecimento obrigaram a uma “gestão atenta” do plano de investimento, e a escalada de preços levou a empresa a procurar “mitigar esses impactos nos clientes”, ao mesmo tempo que tentava lidar com a “incerteza regulatória”. Segundo Stilwell, a EDP também reforçou os sistemas de cibersegurança.

E também para pequenos comercializadores de energia esta crise foi um desafio. Pedro Morais Leitão lidera, a partir de Viseu, a Luzboa, um fornecedor de eletricidade com cerca de 5 mil clientes. “Quando começou a crise energética começámos a sentir ansiedade numa faixa de consumo. Perdemos imensos clientes, quer na tarifa fixa, quer na tarifa indexada [aos preços grossistas], porque se gerou um pânico generalizado sobre o preço de mercado”, recorda o gestor. E Pedro Morais Leitão lamenta que o custo do mecanismo ibérico não esteja a ser cobrado aos consumidores do mercado regulado, porque "isso está a viciar o mercado e a fazer com que o custo do ajuste por kWh não diminua mais rapidamente". Este mecanismo foi criado por Portugal e Espanha para reduzir o efeito de contágio das cotações do gás natural no preço grossista da eletricidade, diminuindo os ganhos de diversos produtores de eletricidade estavam a ter à boleia da escalada do gás, mesmo sem recorrerem ao gás (como é o caso das hidroelétricas). Esse mecanismo contempla uma compensação às centrais a gás, mas é suportada pelos consumidores de eletricidade, mas não todos: os clientes com tarifas reguladas não foram chamados a pagar o ajuste, ficando numa posição de vantagem face às faturas praticadas no mercado liberalizado. Este mecanismo é uma parte da explicação de como a Península Ibérica conseguiu, no curto prazo, amenizar o disparo dos preços da eletricidade, evitando um impacto tão dramático da crise energética no consumidor final como o que se verificou noutros países do centro e norte da Europa. Para a Luzboa, a gestão da crise começou logo em outubro do ano passado. “Renegociámos contratos, porque estávamos a comprar eletricidade mais cara do que a que estávamos a vender”, explica Pedro Morais Leitão. O gestor admite que houve casos de atrasos de pagamento. “Tivemos que fazer muito esforço de tesouraria, mas fomos sempre solidários com os nossos clientes”, assegura o fundador da empresa.

Ana Sofia Ferreira, jurista da associação de defesa de consumidores Deco, indica ao Expresso que este ano até novembro a Deco recebeu 3264 pedidos de apoio e aconselhamento especificamente relacionados com temas de energia, em especial com situações de faturas mais elevadas e questões sobre o mercado regulado. Em 2021, no mesmo período, a Deco tinha registado 2283 pedidos do género. “Verificámos efetivamente um aumento”, afirma a jurista, ressalvando, contudo, que são residuais os episódios que chegam à associação de famílias que não conseguem pagar a conta da luz ou do gás e que são confrontadas com avisos de corte. A mesma responsável concede que Portugal está aparentemente a resistir melhor à crise energética do que outros Estados-membros. “Na Europa há países onde os consumidores estão a sentir esta crise de forma mais acentuada. Então nos mercados com tarifas dinâmicas [que variam dia a dia ou hora a hora] os clientes estão a sentir um impacto brutal, e a mudança para tarifas reguladas não é tão fácil”, afirma. Ana Sofia Ferreira nota ainda que em Portugal “os aumentos [dos preços da energia] são controlados, mas a taxa de esforço é maior”. É que a subida das faturas de eletricidade e gás vem juntar-se ao aumento da prestação da casa e à inflação generalizada dos mais diversos produtos. “Temos famílias em Portugal, incluindo na classe média, em que a margem de manobra na gestão do orçamento familiar é já muito baixa. Há países na Europa que estão pior do que nós, mas as famílias portuguesas estão já muito pressionadas”, constata a jurista da Deco.


Uma das bandeiras do Governo na gestão da crise energética foi a reabertura do mercado regulado do gás natural, permitindo a 1,3 milhões de consumidores fugir aos aumentos de preços anunciados pelos principais fornecedores do mercado liberalizado. No gás de botija vigorou um regime de preços máximos até ao final de outubro. Para as famílias de menores rendimentos foi concedido um prolongamento de quatro meses do apoio mensal de €10 na compra de gás de botija. Na eletricidade o regulador da energia propôs para as tarifas reguladas de 2023 um aumento dos preços finais para clientes domésticos de 1,1% e o maior comercializador do mercado livre, a EDP, anunciou uma atualização de cerca de 3%. Se somados aos que já ocorreram ao longo de 2022, serão aumentos muito aquém dos praticados pelas elétricas pela Europa fora. O que explica isso?

UM MILAGRE NACIONAL?

Dados do Eurostat analisados pela ERSE — Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) indicam que no primeiro semestre deste ano o preço médio da eletricidade na União Europeia para clientes domésticos era 12% superior ao preço médio em Portugal, enquanto o preço médio europeu para clientes industriais era 35% superior ao nacional. As famílias espanholas pagavam mais 38% pela eletricidade que as portuguesas, e as indústrias do país vizinho gastavam mais 48% que as portuguesas. No que toca às famílias, Portugal regista preços ligeiramente acima dos franceses, mas muito abaixo dos praticados em Espanha, Itália e Alemanha, por exemplo.

Os preços médios da eletricidade em Portugal, segundo o Eurostat, baixaram entre 2018 e a primeira metade de 2021, e a partir daí tiveram uma subida, mas bem mais ligeira do que a observada pela média europeia. Em 2023 os preços aos clientes finais em Portugal permanecerão controlados. “Com o decréscimo das tarifas de acesso à rede acreditamos que os nossos clientes poderão ter em janeiro uma agradável surpresa”, admite Pedro Morais Leitão, da Luzboa. De facto, a proposta tarifária da ERSE para 2023 contempla uma queda muito acentuada das tarifas de acesso à rede, que permitirá mitigar a maior parte do acréscimo do custo da eletricidade no mercado grossista.

Este aparente “milagre nacional”, no que respeita à contenção dos preços da eletricidade em clima de crise energética, é em boa medida explicado pelo desenho do nosso mercado. Quase metade da produção elétrica em Portugal ainda tem um sistema de preços garantidos (produção em regime especial, ou PRE), que estão muito abaixo do preço grossista que o regulador da energia projeta para 2023. A referida PRE abrange sobretudo energia eólica, mas também alguma energia solar e outras fontes limpas. “Em vez de um sobrecusto das renováveis, como existiu no passado, temos agora um sobreganho que contribui para uma redução das tarifas e constitui um seguro contra subidas mais expressivas do preço da energia”, nota Miguel Stilwell de Andrade. “Comparando Portugal com outros países, vemos que ao nível da regulação e do impacto dos subsídios a regulação em Portugal foi mais previdente que noutros países”, acrescenta Jorge Vasconcelos. Se no passado as renováveis do regime especial tinham preços garantidos que saíam mais caros do que os ditos “preços de mercado”, em 2021 e 2022 saíram mais baratas que o “mercado”, e tudo indica que em 2023 também mantenham essa vantagem. Quanto aos anos seguintes, há algumas nuvens no horizonte, mas o sol poderá dissipá-las.

SOL PARA TODOS?

Não é só pelo efeito de preço garantido que a incorporação de renováveis na rede elétrica beneficiou, nos últimos dois anos, os consumidores de energia. Há também um efeito de volume: quanto mais eletricidade renovável é injetada na rede, menor é a necessidade de satisfazer o consumo a partir de centrais alimentadas a gás natural (ou a partir de hidroelétricas com armazenamento, que, embora sejam também renováveis, tendem a cobrar preços similares aos das centrais a gás).

Em Portugal a potência fotovoltaica está a crescer de forma pronunciada. Os agentes do setor estão cientes de que esta nova capacidade é apenas parte da equação: o sol só brilha de dia, e à noite o país continuará a precisar de outras fontes, como a hídrica e a eólica e, como solução transitória de backup, as centrais a gás. Em setembro Portugal tinha já 2,4 gigawatts (GW) fotovoltaicos, mais do dobro dos 1,1 GW de final de 2020. E do total instalado no país 757 megawatts (MW), ou 0,75 GW, correspondem a unidades de produção para autoconsumo (UPAC). O negócio do autoconsumo está a avançar em paralelo com o das grandes fotovoltaicas, com o benefício comum de reduzir a necessidade de o sistema elétrico recorrer a centrais termoelétricas. Isso diminui a exposição do país a energia importada e à volatilidade de preços associados a disputas exógenas. O reverso da medalha é que a aposta na energia solar está ancorada numa outra dependência externa perniciosa: a China detém quase 75% da capacidade mundial de fabrico de módulos fotovoltaicos (e a Europa somente 2,8%), e a quota chinesa é ainda maior no que concerne aos componentes desses painéis, segundo dados da Agência Internacional de Energia. Uma dependência que se estende às matérias-primas usadas no fabrico de baterias ou de turbinas eólicas. “É um problema, porque passamos a estar na mão de um fornecedor, que neste momento é um parceiro fiável… mas e se não for?”, alertava há dias o diretor-geral de Energia e Geologia, João Bernardo, numa conferência da Associação Portuguesa de Energia.

Apesar disso, os projetos fotovoltaicos vão sendo construídos. Bom, nem todos. A mesma empresa que inaugurou em 2017 a primeira central solar não subsidiada do país tem em mãos um complicado processo de licenciamento para o que poderá ser a maior fotovoltaica do país, a instalar em Santiago do Cacém. O projeto chama-se THSiS — The Happy Sun is Shining, e a luso-espanhola Prosolia viu a gigante Iberdrola juntar-se ao investimento. Se for em frente, será a primeira central solar com mais de 1 GW de potência. A primeira consulta pública começou em fevereiro de 2021. No final do ano o projeto foi reformulado, para acomodar objeções levantadas pela Agência Portuguesa do Ambiente. Os promotores tiveram, por exemplo, de incluir cortinas arbóreas para que os painéis não fiquem visíveis a partir das habitações que circundam o terreno, ainda que várias dessas moradias tenham elas próprias painéis solares, como o Expresso constatou numa visita ao terreno. Pela sua dimensão, trata-se de um projeto inédito em Portugal. Terá uma área vedada de 1245 hectares, que hoje pertencem a um único proprietário, que aí explora um extenso eucaliptal. O dono desta extensa área já acordou arrendar os terrenos, trocando as receitas da venda da madeira de um milhão de eucaliptos pelas rendas da instalação de 2 milhões de painéis fotovoltaicos.


Quanto mais eletricidade renovável é injetada na rede, menor é a necessidade de satisfazer o consumo a partir de centrais alimentadas a gás natural


Enquanto tenta licenciar a gigacentral de Santiago do Cacém, a mesma Prosolia vem avançando com outros negócios, no segmento do autoconsumo. Um dos mais recentes foi uma instalação fotovoltaica com 3,2 megawatts na fábrica que a Renova tem em Torres Novas. Os painéis solares para já apenas cobrem 4% do consumo global da fábrica. É um primeiro passo, explicou João Andrade Tavares, administrador e acionista da empresa, durante uma visita do Expresso à fabricante de papel higiénico e guardanapos. A energia representa um terço dos custos da Renova (o pessoal pesa 20% na estrutura de custos e o resto são encargos com matérias-primas). Todos os meses a empresa gasta mais de €1 milhão com eletricidade e perto disso com gás natural. A ideia de avançar para o autoconsumo surgiu há cerca de cinco anos, mas a concretização tardou. “Demorou mais tempo do que eu gostaria, mas faz imenso sentido fazer isto e muito mais”, refere o engenheiro, revelando que a Renova já identificou projetos potenciais para instalar até 30 MW de capacidade fotovoltaica. Isso criaria uma potência excedentária face às necessidades da fábrica, mas permitiria, por exemplo, produzir hidrogénio verde para incorporar no gás natural usado no processo industrial da Renova.

João Tavares diz-nos que a Renova beneficiou até hoje de ter 80% do seu consumo elétrico coberto por um contrato de preço fixo, mas esse contrato está a acabar, e no início do novo ano a empresa ficará totalmente exposta ao preço de mercado (exceto nos volumes produzidos pelos painéis solares). “Nos últimos meses tenho tido mais preocupação. Os custos dos nossos produtos dependem disto. Não vivo atormentado com o preço da energia, mas é um ponto importante que é preciso ter em conta”, refere o gestor. Que tem uma outra preocupação: o licenciamento de projetos de autoconsumo. Pedro Pereira da Silva, diretor-geral da Prosolia em Portugal, acompanha-o. “A capacidade da Direção-Geral de Energia e Geologia não acompanha as necessidades das fábricas. O crescimento de pedidos [de ligação de projetos] tem sido exponencial, tal como é exponencial o stresse dos industriais em ter as coisas prontas”, aponta. Este é, aliás, um sentimento dominante no setor da energia. Miguel Stilwell de Andrade, presidente executivo da EDP, avisa que “processos lentos e burocráticos vão continuar a colocar em causa decisões de investimento que podem acelerar a transição e mitigar a volatilidade de preços”. Pedro Morais Leitão, da Luzboa, corrobora que “o mercado do autoconsumo está muito dinâmico” e nota que a sua empresa já compra os excedentes de autoconsumo de quase 2 mil instalações, que vão desde clientes residenciais com 1 kilowatt instalado a empresas com centrais de 1 megawatt na cobertura da fábrica. “Vai continuar a haver uma procura muito grande de soluções de autoconsumo solar”, vaticina. “Estamos realmente a investir no nosso futuro e na independência energética”, acrescenta o gestor. E há uma outra ferramenta para enfrentar o choque de crises como a que a Europa está a viver: a eficiência energética. Ana Sofia Ferreira, da Deco, defende que o Governo vá mais longe em iniciativas como o Vale Eficiência e Edifícios Mais Sustentáveis. Essas duas linhas de apoio a despesas com eficiência energética nas habitações excluem arrendatários, por exemplo. Algo que precisa de ser corrigido, para incentivar quem não tem casa própria a investir e a conseguir reduzir o consumo, sustenta a jurista da Deco.

E haverá pontos positivos na crise energética do último ano e meio? “A perceção de que temos que acelerar as energias alternativas, não só pela urgência inerente às questões climáticas, mas também para que a Europa desenvolva uma independência energética mais forte”, aponta Andy Brown. O CEO da Galp lembra os “objetivos ambiciosos” do pacote RepowerEU, apresentado pela Comissão Europeia. Mas o gestor realça que esta transição não será indolor. Será inevitável pagarmos mais pela energia que consumimos. “Infelizmente, isso é algo a que todos teremos de nos habituar. Temos que mudar completamente o sistema energético, a forma como a energia é produzida (através de renováveis) e a forma como é consumida nos transportes e na indústria. Isto requer um investimento maciço”, frisa Andy Brown. Miguel Stilwell de Andrade concorda. “Esta crise veio tornar ainda mais evidente que a transição energética é fundamental e tem de ser acelerada”, aponta o gestor.

Numa Europa que ainda não sabe o preço a pagar para assegurar os próximos invernos, Portugal parece estar mais preparado para acelerar a incorporação de renováveis na produção elétrica. Mas a eletricidade representa para já apenas um quarto do consumo de energia final no país. Há um longo caminho a percorrer para reduzir a dependência do exterior e a exposição à volatilidade dos mercados internacionais. Mais de 44% do consumo de energia final ainda são produtos do petróleo. E 11% gás natural. A eletrificação de parte desses consumos será um contributo para aumentar a autonomia energética do país. E a produção de combustíveis sintéticos ou gases renováveis, como o hidrogénio verde, será outra via. Para que aconteça precisará de elevados volumes de fontes limpas. Incluindo grandes centrais fotovoltaicas. Portugal já tem o seu lugar ao sol para driblar novas crises energéticas.