26.12.22

Combate à pobreza deve ser “desígnio nacional”


Fátima Ferrão, in Expresso

Apoio: portugueses são solidários em situações de crise, mas ainda pecam pela aceitação da pobreza como uma inevitabilidade. Nas IPSS, o saldo das receitas continua a ser negativo e faltam braços para trabalho de voluntariado

No Dia Internacional da Solidariedade Humana, que se comemorou esta terça-feira, dia 20, Manuel Costa e Oliveira terminou o dia com uma “extraordinária sensação de satisfação”. A manhã passada num Agrupamento de Escolas do concelho de Sintra a falar sobre solidariedade e a tarde vivida numa multinacional da região a recolher bens doados deixaram o provedor da Santa Casa da Misericórdia de Sintra (SCMS) verdadeiramente surpreendido. Entre as 400 crianças que trouxeram alimentos e brinquedos para doar e a dimensão da oferta reunida pelos colaboradores da empresa do sector automóvel, aconteceu “algo nunca visto”, confessa o responsável, que dedica já mais de duas décadas às causas sociais.

São dias como este que refletem a solidariedade de um concelho onde a Santa Casa da Misericórdia alimenta diariamente 1300 pessoas, apoia centenas de idosos em atividades que promovem o envelhecimento ativo, num centro de dia e em apoio domiciliário, e faz a gestão de um centro de apoio a sem-abrigo e de uma creche. Uma missão que apenas consegue cumprir com as ajudas que recebe. “Estamos dependentes do apoio dos cidadãos, das empresas e da autarquia, porque sozinhos não temos capacidade para ajudar”, explica o provedor, que, apesar de reconhecer que os portugueses são muito solidários, defende que “é preciso muito mais e de forma regular ao longo de todo o ano”. Em Sintra faltam essencialmente voluntários, um elemento crucial para que toda esta máquina de apoio funcione. A SCMS tem pouco mais de 80 funcio­nários, mas, como explica Manuel Costa e Oliveira, precisa diariamente de motoristas para a distribuição da alimentação e de todos os braços que possam ajudar na recolha, transporte e organização dos bens doados.

Solidários mas resignados

Carlos Farinha Rodrigues também conhece bem o retrato social de um país onde a pobreza ainda afeta mais de 20% da população, percentagem que se eleva se incluirmos a franja de portugueses em exclusão social. Na opi­nião do professor do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) e autor de vários estudos sobre a pobreza e a desigualdade em Portugal e sobre a eficácia das políticas sociais, os portugueses são solidários em situa­ções de crise profunda mas pecam pela aceitação das situações de pobreza. “É frequente ouvirmos dizer que houve e sempre haverá pobreza, mas isto não é verdade, porque a pobreza resulta das nossas ações enquanto sociedade e das políticas sociais”, diz.

No entanto, o professor sublinha que o combate à pobreza não se faz apenas de políticas sociais e que a intervenção do Estado não pode resumir-se à aplicação destas políticas. Este é um trabalho que, diz, “implica a conjugação de diferentes políticas públicas, como uma melhor educação, melhores serviços essenciais, melhor habitação e mais recursos económicos”.

Uma opinião partilhada por Susana Peralta, professora na Nova SBE: “Além das políticas de apoio ao rendimento, é preciso resolver problemas estruturais, que têm um impacto no médio/longo prazo.” Por exemplo, acrescenta, uma política de habitação consequente, que não existe em Portugal. “Isso é fundamental para vários aspetos da vida das pessoas, como a educação e a saúde mental.”

Na opinião de Susana Peralta, o principal papel nas políticas de combate à pobreza tem de ser do Estado, porque tem a capacidade de partilha de risco a esta dimensão. “Pelo menos, a parte do financiamento tem de ser pública.” Carlos Farinha Rodrigues acrescenta que para este combate é fundamental juntar todos os atores — Estado, cidadãos, autarquias, IPSS e empresas —, pois “a sociedade como um todo tem de assumir esta missão, e a solidariedade é o cimento que pode fazer do combate à pobreza um desígnio nacional”.

A SOLIDARIEDADE EM NÚMEROS

Alimentação

No Banco Alimentar são distribuídas, em média, 105 toneladas de alimentos por dia. Em 2021 foram 34.551, que chegaram regularmente a 400 mil pessoas.

Sem-abrigo

Em 2021, o CASA (Centro de Apoio ao Sem-Abrigo) tirou da rua 110 pessoas. Em todo o país foram apoiadas 6447 pessoas e distribuídas 600 mil refeições quentes.

Pobreza

1,8 milhões de portugueses vivem abaixo do limiar da pobreza, com rendimentos inferiores a €6653 por ano. Número que sobe para 2,3 milhões quando se junta a exclusão social.

Apoio social

A contribuição anual do Estado para as IPSS ronda os €1,9 mil milhões. Em 2022 foi atribuído um apoio extraordinário de €18 milhões para compensar a inflação.

5 IDEIAS PARA AJUDAR NO PRÓXIMO ANO

Banco Alimentar Os 40 mil voluntários atuais são poucos para dar resposta ao trabalho diário de entregar as mais de 100 toneladas de alimentos

Corpo Europeu de Solidariedade Destinado a jovens dos 18 aos 30 anos para voluntariado dentro e fora da UE

Centro de Apoio ao Sem-Abrigo (CASA) Distribuir refeições, conversar e ajudar a incluir, de norte a sul do país

Portugal Voluntário Plataforma que põe em contacto quem quer ajudar as instituições que precisam de ajuda

Agora Nós Programa de voluntariado dirigido a jovens que em simultâneo permite reforçar diferentes competências

Refletir sobre a solidariedade

Na semana em que se celebrou o Dia Internacional da Solidariedade Humana (20 de dezembro), o Expresso — com o apoio do BPI e da Fundação “la Caixa” — desafia a sociedade a pensar neste tema e a perceber como está o panorama do sector social e dos apoios aos segmentos mais desfavorecidos da população nesta altura de reflexão.

Textos originalmente publicados no Expresso de 23 de dezembro de 2022