in o Observador
Maria José Feixeira faz parte dos 11,2% da população empregada que é pobre, uma vez que tem um rendimento monetário líquido inferior a 554 euros por mês.
Maria José integra os 11% da população empregada considerada pobre e cujos rendimentos são insuficientes para fazer face às despesas, o que obriga a pedir ajuda e a criar estratégias como alternar o pagamento da água e luz.
Fisioterapeuta de profissão, e com uma vida de trabalho que começou aos 9 anos, a vida desta mulher de 59 anos mudou radicalmente em 2020, quando a pandemia causada pela Covid-19 lhe tirou todas as fontes de rendimento, nomeadamente os caterings que fornecia para festas de casamento.
Vive com o marido numa aldeia perto da Malveira, freguesia do município de Mafra, numa casa pela qual paga 400 euros, quase metade dos cerca de 828 euros mensais que ela e o marido recebem – cerca de 300 euros que consegue quando tem trabalhos de fisioterapia e 528 euros de subsídio de desemprego que o marido ainda recebe, depois de a empresa onde trabalhava ter fechado na pandemia.
Quem nos tem ajudado nestes últimos dois anos tem sido a União Audiovisual com alimentação e não há comparação para aquilo que eles têm feito por nós. Eu fui pedir o Rendimento Mínimo [Rendimento Social de Inserção (RSI)], mas disseram que eu não tinha direito porque trabalhava a recibo verde”, contou à Lusa.
Da União Audiovisual (UA), uma associação de apoio aos profissionais do setor da cultura, criada em plena pandemia, Maria José Feixeira recebe atualmente um cartão com 90 euros para gastar em alimentação, que divide com o irmão e as duas sobrinhas, uma vez que também ele ficou desempregado.
“Nunca pensei chegar a esta altura e ter de olhar para a carteira a ver se há dinheiro para o outro dia. (…) Assim que acabar o fundo de desemprego do meu marido não sei, o dinheiro que eu ganho não chega”, lamentou.
Admitindo que já chorou muito, Maria José ironiza que isso só lhe trouxe olhos inchados e dores de cabeça e não lhe resolveu a situação.
Segundo os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE), relativos aos rendimentos de 2020, Maria José Feixeira faz parte dos 11,2% da população empregada que é pobre, uma vez que tem um rendimento monetário líquido inferior a 554 euros por mês.
Mas a fisioterapeuta lembra que há quem não tenha sequer fundo de desemprego ou apoio alimentar.
“Eu, nesse ponto, posso dizer que não sou pobre, que sou rica, porque eu sei que há muita gente que quer um prato de sopa e não tem”, apontou.
João Silva (nome fictício) também está “sempre a contar os trocos até ao fim”, numa gestão difícil em que ele é o único garante de um rendimento mensal numa família de seis pessoas, quatro das quais menores em idade escolar.
“Por exemplo, este mês paga-se a água e deixa-se a luz para trás, no mês que vem paga-se a luz e deixa-se a água para trás. Com muita frequência é isso que fazemos e eu ainda tenho a sorte de trabalhar em construção civil e de ir fazendo um trabalhito ou outro ao fim de semana”, explicou à Lusa, admitindo que se não fosse isso a família passaria fome.
Do trabalho numa instituição de solidariedade social, onde faz “um bocadinho de tudo”, recebe o salário mínimo nacional (705 euros ilíquidos), ao qual acresce mais “cento e qualquer coisa” euros de RSI e cerca de 40 euros mensais de abono de família por cada um dos filhos.
Um estudo da Universidade Nova SBE sobre a pobreza no trabalho refere que cerca de 54% destas pessoas recebem transferências sociais e que “se não existissem transferências sociais, a taxa de pobreza no trabalho seria de 19%”.
Diz também que a “correlação entre a evolução do salário mínimo e a redução da taxa de pobreza no trabalho é baixa”, já que em 2019 “a média dos rendimentos dos trabalhadores pobres era de 8.032 euros [anuais], o que sugere que muitos trabalhadores pobres recebem menos do que o salário mínimo”.
João e a família têm “a sorte” de viver numa habitação social e de receberem mensalmente um cabaz providenciado pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, em que “grande parte das vezes falha produtos”.
“Há meses em que umas vezes não há frango, há outros meses em que não há peixe, outros meses não há bolachas, outros não há legumes e o que não vem já não volta”, apontou, referindo que não há compensação no mês seguinte.
Por outro lado, lamentou que há 20 anos ganhasse mais do que aquilo que recebe hoje: “Passamos a vida a trabalhar e estamos a regredir em vez de evoluir”.
“Sinto uma grande tristeza, profunda, por não conseguir fazer metade daquilo que gostaria de fazer. Poder dar mais aos meus filhos”, lamentou, emocionado.
Para o administrador da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa para a Ação Social, uma das causas imediatas para este fenómeno está no custo da habitação, já que “uma parte significativa das pessoas despende mais de 40% do seu orçamento mensal” com a casa onde vive, quando esse valor deveria rondar os 30% a 40%.
Por outro lado, apontou Sérgio Cintra, associam-se à “fraca capacidade económica” do país dois fenómenos: o facto de as pessoas nem sempre terem as qualificações necessárias quando entram no mercado de trabalho e começarem com salários muito baixos, ao mesmo tempo que as subidas salariais não compensam os valores da inflação.
O custo de vida está muito elevado e em nenhum país os salários acompanharam o aumento da inflação. Na Grã-Bretanha, por exemplo, o número de pessoas que necessita de apoio alimentar está a bater recordes dos últimos 40 anos”, apontou, demonstrando que este está longe de ser um fenómeno dos países do sul da Europa.
Segundo o INE, o aumento da pobreza sentida em 2020 “afetou todos os grupos etários”, mas especialmente os adultos em idade ativa, com um aumento de 2,3 pontos percentuais.
“O risco de pobreza para a população empregada aumentou 1,6 pontos percentuais, atingindo uma taxa de 11,2% em 2020, o valor mais elevado dos últimos 10 anos”, refere o instituto de estatística.