22.12.22

Drogas e álcool saem das ARS e voltam a concentrar-se num organismo único

Natália Faria, in Público online

Manuel Pizarro prepara-se para concentrar as competências em matéria do uso problemático de drogas, álcool e jogo num único organismo, semelhante ao antigo Instituto da Droga e da Toxicodependência.

Dez anos depois, o Governo prepara-se para voltar a mexer no modelo organizativo para a área dos comportamentos aditivos e das dependências. O objectivo passará por retirar o tratamento da dependência do álcool e das drogas da alçada das administrações regionais de saúde, para onde foi canalizado quando, em 2011, a pretexto da necessidade de poupança imposta pela “troika”, o Governo liderado por Pedro Passos Coelho decidiu extinguir o Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT), onde se concentravam até então todas as competências.

Ao que o PÚBLICO apurou, o novo organismo poder-se-á denominar Instituto das Adições (IA) e, além das drogas e do álcool, abrangerá também as dependências ligadas ao jogo e aos ecrãs, mas, por enquanto, nada está fechado. Não se trata de ressuscitar o IDT, mas apenas a filosofia que vigorou até então e que mantinha aglutinadas numa única organização todas as competências na área dos comportamentos aditivos – da definição de estratégias e políticas à sua operacionalização, passando pelo tratamento dos utentes e respectiva reinserção.

“Foi-nos pedida uma proposta para a concretização da criação de uma estrutura única”, confirmou João Goulão, o director-geral do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), o organismo que herdou do ex-IDT a responsabilidade pela elaboração de políticas e de normas de actuação na área, enquanto os profissionais, o tratamento, a redução de danos e a reinserção social dos utentes foram pulverizados pelas cinco ARS existentes no país. Em cada ARS foi criada uma Divisão de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (DICAD), ao mesmo tempo que os centros de respostas integradas (CRI) substituíram os antigos centros de atendimento a toxicodependentes.

O novo modelo nunca funcionou, segundo o vaticínio generalizado dos profissionais do sector. Desde logo porque a propalada integração dos CRI (onde os toxicodependentes são tratados em regime de ambulatório) na rede de cuidados primários de saúde nunca saiu do papel. Mas também porque o facto de o organismo que desenha as políticas não ter tutela nem competências sobre quem as aplica – as cinco ARS – criou uma "direcção bicéfala", ou, como caracterizou o próprio Goulão, uma “terra de ninguém”, que conduziram à degradação das respostas e à debandada de muitos profissionais.

Ao longo dos últimos anos, perante o que consideraram ser a ameaça de colapso do célebre “modelo português” que tornou o país num exemplo à escala mundial, os profissionais do sector reivindicaram repetidamente o regresso ao anterior modelo.

Em 2016, 625 profissionais da área enviaram uma carta ao então ministro da Saúde, Adalberto Campos, em que pediam a recriação de “um serviço nacional, vertical e especializado” para responder ao problema das drogas e do álcool. Naquele mesmo ano, 13 coordenadores da DICAD da região Norte demitiram-se em protesto contra a “situação de ingovernabilidade” em que se diziam.

E o actual ministro da Saúde, Manuel Pizarro, chegou a subscrever, em Dezembro de 2019, uma carta aberta em que três ex-ministros da saúde, cinco bastonários, médicos e professores universitários exortavam o Governo a criar de novo uma instituição com autonomia e meios para responder ao uso problemático de drogas. Pizarro sustentou então, em declarações ao PÚBLICO, que a solução seria “criar uma instituição do tipo IDT, com autonomia” e equiparou a extinção daquele organismo a “um erro que tarda em ser corrigido”.

Em Outubro de 2020, Pizarro foi ainda mais contundente num artigo publicado na revista Dependências: "É urgente reverter a extinção do IDT. É imperioso dar relevo à política de combate às drogas. Em nome dos dependentes e das suas famílias e em defesa das comunidades que o consumo de droga assusta e perturba, não me calarei até que isso aconteça", prometeu.

Mais recentemente, no dia 5, a secretária de Estado da Promoção da Saúde, Margarida Tavares, reconheceu, em declarações à mesma revista, a necessidade de uniformizar a "manta de retalhos" em que se transformou a resposta ao uso problemático de substâncias. E prometeu aumentar as comparticipações do estado às comunidades terapêuticas que são actualmente de um euro por hora, estando há 14 anos sem qualquer actualização.

Neste cenário de fundo, Emídio Abrantes, médico e porta-voz do chamado “Grupo de Aveiro” que dinamizou a recolha de assinaturas entre os que reivindicam o regresso ao modelo antigo, diz-se expectante. “O processo de verticalização está em curso e estamos ansiosos que avance, mas importa que este trabalho de reconstrução envolva todos os profissionais”, declarou, sustentando que a nova estrutura terá de ter assegurada uma “coexistência pacífica” com os centros de saúde, os hospitais e os cuidados de saúde mental. “É importante que haja esse ambiente solidário, de profunda cooperação, porque precisamos todos uns dos outros”, enfatizou.

Numa altura em que, na antecâmara de mais uma crise social e económica se teme pelo recrudescimento dos consumos problemáticos (a última análise à situação do país em matéria de droga dá conta de 115 mortes por overdose de drogas e álcool, num aumento de 45% face a 2020), Goulão aplaude de pé a receptividade ministerial para fazer mudanças. “A grande vantagem é termos uma estrutura que tenha a responsabilidade de pensar as políticas e que passará a poder executá-las directamente, aproveitando a massa crítica dos profissionais de primeira linha”, concluiu.