Ana Dias Cordeiro, in Público
Menos crianças em instituições de acolhimento, mas por mais tempo. Relatório Casa é distribuído esta sexta-feira na Assembleia da República. Uma das tendências mais positivas no retrato anual que o Estado faz das crianças e jovens em acolhimento residencial por existir uma situação de perigo na família é a de que este universo tem vindo a diminuir de forma consistente nos últimos cinco anos.
Porém, essa evolução não encontra paralelo numa outra que poderia resultar daqui e ser igualmente positiva – a de um tempo mais curto para estes jovens viverem em lares de acolhimento, tanto mais que esta é uma medida pensada para ser transitória. Mas não é isso que acontece.
O Relatório Casa – Caracterização Anual da Situação de Acolhimento das Crianças e Jovens de 2021, que será distribuído nesta sexta-feira à Assembleia da República e a que o PÚBLICO teve acesso, mostra que, no ano em análise, 1439 jovens estavam há seis ou mais anos numa casa de acolhimento. Foram mais 293 do que no ano anterior e mais 204 do que em 2019. Isto sucede apesar de, no total, haver menos acolhimentos em residência generalista – os 6129 de 2019 passaram a 5787 em 2020 e desceram para 5401 em 2021.
O documento de 175 páginas, do Instituto da Segurança Social, traça o retrato concreto da realidade a 1 de Novembro de 2021 e junta a este acolhimento a que chama “generalista” (que inclui lares de infância e juventude, centros de acolhimento temporário e ainda de emergência) os apartamentos de autonomização (projecto para os mais velhos) ou o acolhimento residencial especializado para crianças com necessidades muito específicas.
No conjunto destes três modelos, em 2021, estavam 6369 crianças e jovens. Há cinco anos, em 2017, eram 7553; e, em 2016, eram ainda mais – 8175. Feitas as contas, nos últimos seis anos, o número de jovens em acolhimento reduziu-se em 22%.
A procura de soluções na família, por um lado, e uma maior aposta numa intervenção anterior ao agravamento das situações, por outro, explicam esta tendência positiva, resume Catarina Marcelino, presidente do Instituto da Segurança Social. Em contrapartida, para a duração mais longa do acolhimento de crianças e jovens nos lares de acolhimento generalista, não sobressai uma solução.
Pensar projectos de vida
“É, de facto, um número que nos leva a pensar que temos de aumentar e melhorar o trabalho que se faz nos projectos de vida destas crianças”, admite Catarina Marcelino, que o justifica, em parte, "com situações inerentes às próprias crianças, como por exemplo questões de saúde" susceptíveis de “implicar mais tempo em acolhimento”, e ainda com "a questão da adopção".
“As crianças que as pessoas que querem adoptar procuram não são coincidentes com as crianças que nós temos no sistema para serem adoptadas”, descreve. “As pessoas procuram bebés e crianças pequenas para adoptar. No sistema de acolhimento, temos muitas crianças com mais de três anos”, diz ao PÚBLICO.
Presentes em grande maioria, estão crianças e jovens entre os 12 e os 17 anos, de acordo com os dados de 2021 e também os de anos anteriores. Estas idades representam mais de metade dos acolhimentos (cerca de 53%). Os bebés até aos três anos representam entre 8% e 9% dos acolhimentos (nos últimos anos). Concretamente, em Novembro de 2021, estavam em acolhimento 549 bebés até aos três anos retirados aos pais por situação de perigo.
Menos crianças têm entrado no acolhimento, mas também menos crianças têm cessado esta medida de afastamento de uma família, o que também contribuirá para um prolongamento do tempo à guarda do Estado: foram 2648 em 2018 e sempre menos nos anos seguintes: de 2476 (em 2019), passaram a ser apenas 2359 (em 2020) e 2214 (em 2021).
Assim, o ano em análise neste relatório (2021) foi aquele que atingiu a mais alta proporção (27%) de jovens há mais tempo em instituição desde, pelo menos, 2016. Nesse ano, havia 22% dos jovens com mais de seis anos de vida em acolhimento. Neste conjunto, estão incluídos os jovens acolhidos por um período acima dos oito, nove e dez anos, ou até mais.
Um terço de uma vida
“É um dado preocupante, porque o acolhimento, seja ele qual for, tem de ser uma medida transitória”, avalia Maria Barbosa Ducharne, professora da Faculdade de Psicologia da Universidade do Porto. “Para um jovem de 18 anos, seis anos é um terço da vida. E nós sabemos que há crianças que ficam 18 anos em acolhimento. [Na investigação] temos encontrado isso, embora em poucos números”, acrescenta a docente e responsável do Grupo de Investigação e Intervenção em Acolhimento e Adopção.
“Eu diria que o acolhimento tem de investir na capacidade de encontrar respostas para a saída destes jovens. O que temos como saídas do acolhimento? Temos a adopção, a reintegração na família e as medidas de autonomização”, enumera a professora. “Seria importante pensar que temos de encaminhar estas crianças para outras famílias, e fazê-las sair do sistema de acolhimento o mais rapidamente possível.”
As medidas de autonomização são dirigidas a adolescentes. Por outro lado, sustenta, as crianças que ficam mais de seis anos fora da família são aquelas para as quais a retaguarda familiar não foi capaz de se reorganizar. “Uma família que não se reorganiza em seis anos não se vai reorganizar nunca. A adopção é uma medida exequível e que pode ter sucesso em qualquer idade. Uma adopção bem preparada, bem acompanhada, pode ser uma medida de sucesso para a saída do acolhimento.”
E conclui: "O menos grave em termos do impacto nas crianças são acolhimentos curtos de um ano, ou um ano e meio. O acolhimento para lá disso começa a ser uma forma de mau trato na vida destas crianças, por muito bom que seja o acolhimento. Seis anos é uma eternidade."
Menos crianças para adopção todos os anos desde 2016
São cada vez menos os processos de promoção e protecção de crianças à guarda do Estado que passam pela perspectiva de uma adopção. O relatório CASA 2021 mostra que apenas 502 crianças acolhidas tinham essa perspectiva no ano passado, o que representou uma ligeira descida relativamente aos 534 do ano anterior, mas uma queda acentuada em relação às 673 crianças em 2017 e às 830 nessa situação em 2016.
Mas, se uma coisa é a perspectiva e outra é a concretização, também aqui os dados mostram uma realidade aquém da concebida. Das 502 crianças e jovens para as quais foi definido o projecto de promoção e protecção de adopção, 347 aguardavam uma decisão do tribunal, enquanto apenas 155 (31%) viram confirmada pelos juízes a sua situação de adoptabilidade proposta pelas equipas técnicas.
Ou seja, mesmo para as crianças que já foram declaradas, pelo sistema de protecção, como podendo ser adoptadas – o que implica o corte com a família de origem –, não é certo que o venham a ser. Olhando apenas para as que saíram do acolhimento em 2021, houve 175 que foram colocadas numa família numa fase (que pode ser revertida) a que se chama de pré-adopção; um número muito abaixo das 259 nessa mesma situação em 2016.