Samuel Silva, in Público online
Entre os 50 mil que entraram este ano no concurso de acesso, poucos estão no primeiro escalão do abono de família. Quase 80% das candidaturas a bolsas já têm resultado.
Menos de 3% dos estudantes que entraram no ensino superior no último ano lectivo são muito pobres. Pelo terceiro ano consecutivo, o concurso nacional de acesso garantiu a colocação de 50 mil jovens. Mas pouco mais de 1400 alunos inscritos pela primeira vez nas universidades e politécnicos são beneficiários do 1.º escalão do abono de família, que dá resposta aos mais carenciados. Só dois deles entraram em instituições de ensino privadas.
No início deste ano lectivo, o Governo introduziu uma alteração às regras de processamento das candidaturas a bolsas de estudo, fazendo com que a atribuição do apoio fosse automática para os beneficiários dos três primeiros escalões do abono de família. Na sequência dessa mudança, as estatísticas publicadas pela Direcção-Geral do Ensino Superior (DGES) passaram a permitir perceber quantos estudantes estão em cada um dos três escalões.
Segundo os números mais recentes, publicados esta segunda-feira, 7132 alunos do 1.º ano tiveram a bolsa atribuída automaticamente por cumprirem estas condições. Destes, entraram este ano lectivo no ensino superior 1422 alunos provenientes de famílias incluídas no 1.º escalão do abono, que tem um limiar de rendimento fixado em 3102,40 euros anuais per capita.
Isto é, são menos de 1500 pessoas provenientes das famílias mais pobres entre as mais pobres a chegar ao ensino superior. Isto acontece num ano em que a procura volta a estar em alta: foram colocados, pelo terceiro ano consecutivo, cerca de 50 mil alunos no concurso de ingresso.
O número dos mais pobres que entram no ensino superior corresponde a menos de metade de todos os outros escalões de beneficiários de abono de família: há 2849 alunos com bolsa de estudo que estão enquadrados no 2.º escalão e 2861 beneficiários do 3.º nível de apoios. Há cerca de 200 mil beneficiários em cada um destes patamares das prestações sociais.
Os dados da DGES revelam também que o número de estudantes pobres que entram no ensino superior privado é residual. Dos 1422 alunos do 1.º escalão, apenas dois não entraram numa universidade ou politécnico público. Há mais dez estudantes colocados nas instituições particulares que estão no 2.º escalão do abono de família e seis do 3.º escalão.
A presidente da Federação Académica do Porto (FAP), Ana Gabriela Cabilhas, culpa algumas “ideias preconcebidas” que afectam muitas famílias de baixos recursos: “Não vêem o ensino superior como futuro”, um pensamento que é “muito condicionado por questões económicas”, prossegue.
Os obstáculos que as dificuldades económicas das famílias colocam aos percursos dos estudantes não são uma surpresa. Na semana passada, o PÚBLICO noticiava que o peso dos jovens carenciados entre os alunos que realizam os exames nacionais do secundário caiu praticamente para metade (de 29,6% para 15,3% dos inscritos) quando estas provas passaram a servir apenas para acesso ao ensino superior.
Em Maio, no seu Boletim Económico, o Banco de Portugal, com base em estatísticas europeias, mostrava que apenas um em cada dez filhos das famílias pobres e nas quais as qualificações dos pais não vão além do 9.º ano consegue concluir o ensino superior. Apenas a Itália apresenta piores resultados.
As bolsas de estudo “reduzem alguns obstáculos” no acesso dos mais pobres ao ensino superior, mas “todas as outras dificuldades que os alunos e as famílias têm de enfrentar vão-se acumulando e não se resolvem totalmente”, avalia Orlanda Tavares, investigadora da Universidade Lusófona, que se tem dedicado ao estudo da equidade no acesso ao ensino superior no âmbito do Edulog, think tank da Fundação Belmiro de Azevedo.
Quase 80% já têm resultado
Os dados que a DGES divulga permitem perceber que o processo de atribuição de bolsas de estudo no ensino superior está a decorrer, este ano, de forma mais célere do que o habitual. No momento em que as aulas vão parar para as férias de Natal, quase 80% dos que se candidataram a um apoio do Estado conhecem o resultado da candidatura.
Foram submetidos até ao momento 104.061 pedidos de bolsas de estudo – batendo o máximo histórico de candidatos, como já tinha sido noticiado pelo PÚBLICO em Outubro –, sendo já conhecidos os resultados de 82.200 candidaturas.
O número de candidatos a bolsa que já conhecem o resultado é ainda mais elevado (82%) nas instituições de ensino superior públicas. Nas privadas, o processo está mais demorado e só 62,1% já sabem se têm ou não direito a apoio para estudar neste ano lectivo.
A resposta às candidaturas a bolsas de estudo “está mais célere nesta fase”, avalia o administrador dos Serviços de Acção Social da Universidade de Coimbra, Nuno Correia. No caso da mais antiga universidade nacional, o número de processos despachados aumentou dez pontos percentuais face ao mesmo período do ano anterior. O cenário é semelhante na generalidade das instituições públicas, confirmou o PÚBLICO junto dos serviços de universidades e politécnicos.
A “grande simplificação”, continua o mesmo responsável, “prende-se com o alargamento dos candidatos do 1.º ano que podem beneficiar da atribuição automática” de bolsa, na sequência das alterações introduzidas pelo Governo no arranque deste ano lectivo.
Os números da DGES apontam no mesmo sentido. Cerca de metade das candidaturas que já têm uma resposta (41.154) correspondem a atribuições automáticas. Além dos 7132 alunos que recebem bolsa por estarem nos três primeiros escalões do abono de família, há ainda 34.022 renovações de apoios a estudantes que já beneficiaram deles no ano passado e mantêm os critérios de atribuição.
Para os alunos, o novo modelo veio trazer “mais segurança e previsibilidade”. “Isso é importante, sobretudo neste momento de grandes dificuldades para as famílias”, valoriza a presidente da FAP, Ana Gabriela Cabilhas.
Estes automatismos “resolvem uma parte do problema”, afirma, por seu turno, o presidente da Federação Académica de Lisboa, João Machado, mas “não resolvem o problema todo”. “O que tem de vir rápido é o dinheiro. E, em alguns casos, isso não acontece”, queixa-se.
O PÚBLICO questionou, desde a semana passada, o MCTES sobre quantos estudantes estão efectivamente a receber bolsa de estudo neste momento e qual o valor médio dos apoios já atribuídos. Não foi obtida uma resposta até ao momento.
O que os dados da DGES mostram é que, dos mais de 82 mil estudantes já com resultado no processo de candidatura a bolsa, 63 mil têm direito a apoio. Se tudo tiver corrido como as regras estabelecem, já devem estar a receber a bolsa, que, anunciou o Governo, terá uma majoração de 10% neste ano lectivo, para fazer face ao aumento do custo de vida.
Houve ainda 17.444 alunos que viram a sua candidatura ser indeferida – a diferença para o total prende-se com os processos ainda em reapreciação depois de uma primeira decisão. Quase metade (46) dos pedidos rejeitados deve-se ao facto de as famílias terem um rendimento acima do patamar definido para os apoios. São quase 6000 pessoas nessa situação, apesar de o limiar de elegibilidade ter sido alargado no início deste ano lectivo. Há ainda 3500 candidatos que viram o pedido rejeitado por não terem cumprido o critério de aproveitamento escolar no ano anterior.
Quanto aos processos que ainda não têm resultado, 7814 aguardam informação necessária à análise técnica – sobre os rendimentos do agregado familiar ou o aproveitamento escolar dos estudantes, por exemplo – e outros 14.064 estão em processamento na instituição de ensino superior.