Ana Dias Cordeiro (texto) eRui Gaudêncio (fotografias), in Público onlline
Programa da GNR para proteger os idosos a viver sozinhos ou isolados tem também uma dimensão social. “Este bocadinho da nossa vida que acaba por ser pouco, para estas pessoas é imenso.”
Diamantino Santos Quelhas vive há 15 anos numa casinha branca à beira da estrada da Bela Vista em Vale Fetal, no concelho de Almada. Já sentado, dentro de casa, prepara-se para contar por que é uma das 105 pessoas acompanhadas pelas equipas da GNR no programa Idosos em Segurança. “Não me sinto sozinho, já estou habituado. Não gosto de incomodar ninguém.”
Di-lo com as lágrimas que lhe escapam dos olhos, como as que lhe rolaram pela face, sem aviso, assim que ao portão se viu diante do cabo da GNR, Hélio Cruz, quando este chegou pela manhã para o acompanhamento porta-a-porta do programa inserido nas funções da GNR de Prevenção Criminal e Policiamento Comunitário.
Na lista do haver, tem a casinha estreita e branca, que se abre para um pequeno quintal onde, assim que se mudou de Coimbra, para aqui morar, plantou uma nespereira, que viu crescer e que agora partilha o espaço com tralha e cadeiras velhas encostadas ao muro junto à estrada de onde acena, sempre que pode, aos conhecidos que passam. Muito alinhada está a roupa no estendal, com as peças de uso diário, um casaco leve e ainda um pijama.
A solidão e o isolamento são dois dos critérios para idosos estarem sinalizados, com registo no programa Apoio 65 – Idosos em Segurança, da Guarda Nacional Republicana (GNR). “Isto é social, não é policial, o que estamos a fazer”, diz Hélio Cruz, coordenador do programa no destacamento de Almada que abrange cinco postos territoriais da GNR (além de Charneca, também Costa da Caparica, Trafaria, Fernão Ferro e Paio Pires). O militar refere-se à sinalização, mas também à articulação que, por opção, podem fazer com os serviços sociais das juntas de freguesia, os centros de saúde, a Segurança Social e outras entidades, para suprir as necessidades dos mais vulneráveis.
“O que está escrito não é o principal, o principal é a intervenção.” Pessoalmente, diz, “isto foi uma missão que me foi atribuída, à qual me dedico de corpo e alma”.
Diamantino Quelhas recebe 370 euros de pensão de reforma e 150 euros por ano por ser antigo combatente. Mas paga 225 euros de renda e ainda o que há para pagar de água, luz e para a instituição particular de solidariedade social (IPSS) que lhe entrega a comida.
Até aos seus 65 anos, não faltava à confraternização anual dos antigos combatentes: esteve 28 meses e 19 dias, em Angola, Cabinda. Já estava então casado, desde os 19 anos, com a mulher e mãe dos dois filhos de quem está, há vários anos, divorciado. Sobre esses temas, pouco ou nada fala.
Ao seu colo, dormita “uma cachorrinha”, a Lassie. Foi-lhe oferecida num gesto de quem, por amizade, intuiu que a longa lista de perdas resultaria em demasiada solidão para tamanha fragilidade. “Foi um senhor que me perguntou se eu não queria mais nenhum quando o meu cão morreu. O dono do café também é muito meu amigo”, diz, antes de relatar, em síntese: “Arranjei um cachorrinho, ando aí a passeá-lo. Tinha um, mas ele morreu.”
Diamantino conta ainda com a amizade daqueles que, reformados como ele, se juntam no café, sempre que possível. “Somos todos vizinhos, somos todos amigos. Também é um cantinho. Não vou todos os dias mas gosto muito de ir.”
Todos os dias o filho liga para saber como está. Diamantino não telefona a ninguém. “Não tenho dinheiro no telemóvel”, diz, encolhendo os ombros, para logo depois iluminar a expressão num largo sorriso em sinal de orgulho. “Lá no café quando sentem muito a minha falta, telefonam-me.”
“Quando lá vou, tomo um café com um pastel de nata ou um queque, dou um bocadinho aqui à minha cachorrinha”, descreve assim aquela que parece ser a razão por que se levanta todos os dias. “É isso o meu pequeno-almoço.”
2020 não foi só o ano da pandemia; para Diamantino foi o ano em que “perdeu capacidade de fazer a sua alimentação”, explica o cabo Hélio. Em casa, almoça o que lhe traz diariamente o Centro Social e Paroquial de São José. “Um gajo come pouco, para dar para o jantar”, diz depois com uma risada.
O tom nunca é de queixa, mas mais horas de conversa dariam para mais incontáveis desamparos, como este: esteve com a água cortada porque recebeu uma dívida de mais de 2000 euros para pagar que era do anterior inquilino. “Durante um ano, ou mais, ia buscar água ao vizinho.” Em relação à dívida, foi esquecida, por se ter provado que o consumo não era de Diamantino.
"Andamos aqui desorientados"
Na visita da equipa de apoio aos idosos da GNR de Santiago do Cacém, a primeira coisa que Alice Serrão partilha é a grande aflição que a consome desde aquele dia em que, à saída do Intermarché, o casal foi convidado a fazer um rastreio aos ouvidos. A consulta gratuita, dentro de uma carrinha, resultaria na venda de um aparelho auditivo para o marido. É certo que este pouco conversa, não por o seu discurso não ser claríssimo, mas porque ouve muito mal.
A proposta pareceu honesta a Alice, até ao momento em que fez contas à prestação mensal de 98 euros que passariam a pagar para a compra de um aparelho que não tinham procurado. Com os juros de um plano de pagamento a 60 meses, a solução para o problema ficaria em mais de 5600 euros.
“Eu tive medo de me meter nisso e, no fim, caí na mesma. Eu bem perguntei à senhora quanto custava, mas ela não respondia, olhando só para o meu marido para lhe perguntar se ele estava a ouvir bem”, diz Alice de pé, ao lado do marido, sentado. “Eu já nem sequer tenho nome”, diz António Francisco Serrão. “Falta-me o melhor. Coitadinho”, diz sobre a perda do filho. Para qualquer um dos dois, é impossível viver desde que uma doença o levou, com 53 anos, no ano passado.
Choram sempre que falam dele, e falam muito dele porque todo e qualquer tema conduz a esse luto infinito: o estarem sozinhos e terem pouco dinheiro, as compras, a roupa de que é preciso tratar para ir ao médico, as consultas, a casa cujo telhado o filho ia arranjar, o carro, em que voltaram nesse dia, já às escuras, sem terem ligado os faróis, nem mesmo os mínimos. Costumam ir para as compras cedo, para o regresso ser feito com a luz do dia. Mas nesse dia, distraíram-se com o negócio que lhes foi proposto.
“A consulta foi muito bem dada. E o meu marido ouvia que era uma maravilha quando lhe puseram o aparelho. Mas a pessoa que vende isso tem que saber que estes aparelhos não são para quem não tem dinheiro. Ela aproveitou-se desta velharia que aqui está”, diz, contendo os nervos. Alice Serrão tem 81 anos e cuida do marido de 85 anos na aldeia de Giz onde vivem há uns anos desde que saíram de Galiza, lá junto à Lagoa de Santo André.
“Estamos acolhidos, os dois”, completa Alice, para dizer que enquanto o marido precisar dela, ela viverá. Ele trabalhou nos blocos e na limpeza das obras; ela na monda do arroz, antes de ganhar um problema na coluna. “Eu trabalhei tudo e mais alguma coisa. Reformei-me e ainda andei 12 anos na pesca na lagoa.”
Agora, com a parca pensão de reforma, há meses em que não sobra nada, diz Alice, ainda preocupada com o que o banco poderá retirar-lhe da primeira prestação do contrato que assinou por ser por débito directo. “O filhinho faltou, andamos aqui desorientados”, diz.
Ao telefone com uma representante da empresa que vendeu o aparelho, o guarda principal Luís Carapinha, que conhece bem o casal, certifica-se que nenhum valor será debitado. “Começamos a olhar para estas pessoas como se fossem da nossa família”, diz Alice, sobre essa ajuda que só ficará completa com uma confirmação que só virá na semana seguinte.
Sem um euro para um café
Hélio Cruz, ao lado da sua chefe, a tenente Patrícia Manso, é recebido com abraços quando entra pela casa de Maria Fernanda Graça, em Paio Pires, que lhe agradece “muito, muito” por a ter escolhido para contar a sua história. É para a senhora reformada um sinal de reconhecimento agora que recebe poucas visitas. Dos três filhos, diz, o que sofre de uma perturbação psiquiátrica e esteve intermitentemente acolhido em comunidades terapêuticas para tratar uma toxicodependência, “é o único que se importa”.
Os outros dois, mais novos, passam pouco, e quase não telefonam. O filho mais novo deixou-lhe um computador que não usava mas que Maria Fernanda nunca ligou nem sabe como funciona. “O que eu não gosto é de ver que tem a despensa vazia”, diz-lhe o cabo Hélio Cruz, depois de inspeccionar a cozinha. A ele, Maria Fernanda liga, mas com parcimónia. “Sei que tenho ali uma voz amiga. Às vezes sinto-me tão em baixo, moralmente em baixo. Tento não telefonar. Sei que está ocupado, e que vou provavelmente incomodar.” Não incomoda, sorri o militar. "É que eu preciso de falar, de ouvir uma voz. Não digo que seja aquele abraço…”
FotoMaria Fernanda vive sozinha em Paio Pires Rui Gaudêncio
Os fins de mês são apertados, e nesta segunda-feira é dia 28. Maria Fernanda aguarda a pensão de reforma e o subsídio de Natal para ganhar um avanço, sobretudo nos medicamentos, que já não toma há três meses. Conta os dias até esse 10 de Dezembro. Vive sem a medicação, contudo imprescindível para as dores e a garantia de uma prevenção para os acidentes cardiovasculares, depois da trombose que a levou a um internamento de 17 dias no Garcia de Orta, em Almada.
Começou depois a ser acompanhada, a ir para o centro de dia da Associação dos Pensionistas e Idosos de Paio Pires. “Fazemos desenhos, pintamos, fizemos para o São Martinho trabalhos manuais com folhas do Outono. Agora estamos a fazer tricô e trabalhos manuais para o Natal.”
As suas amigas só se aventuram com o jogo de cartas UNO quando Maria Fernanda está presente porque é aquela com as ideias mais claras e uma das mais novas, embora seja a que anda com maior dificuldade e quase já nem possa participar nos passeios. “Eu não saio. Para quê? Não tenho dinheiro nem para tomar um café. Não consigo andar. O que vou fazer para o meio da rua, sem ninguém? É uma vergonha estar ao pé das pessoas e não ter um euro para tomar um café.”
Os temas sucedem-se num fio de conversa que parecem surgir como uma lufada de ar para aligeirar “as dores e as mágoas”, diz Maria Fernanda. Ligados ou não, os assuntos sobrepõem-se uns aos outros: a solidão está ligada ao sentimento de abandono, e este fá-la valorizar a atenção do filho doente que, no entanto, foi aquele que, pela doença e a toxicodependência, a maltratou e lhe roubou todo o ouro e dinheiro que tinha em casa para comprar droga. Foram anos em que se esqueceu de si mesma. “Aqui a Dona Fernanda estava a ir-se embora aos bocadinhos. Era pele e osso”, diz Hélio Cruz.
“O meu filho nunca me bateu, mas chegou a ameaçar que me batia, que me matava e se matava. Ele ofendia-me, eu sentia-me maltratada. Eu cheguei a ganhar medo, mas não fiz queixa. Ele é o meu filho”, continua sem qualquer sinal de mágoa na voz. “Mágoas” tem, diz a reformada de 74 anos, sobretudo às segundas-feiras, quando fica calada, por nada ter para contar, no reencontro no centro de dia em que as amigas relatam com entusiasmo os programas de fim-de-semana com a família. “Vão almoçar com a filha, com o filho, com os netos. Vão sempre a algum lado. Vão passear. Custa-me muito, nessas alturas, ouvir e não ter nada para dizer.”
“Eu é que cuido da minha mulher”
Longe de tudo, Silvestre Maria Francisco não se sente sozinho. Aos 81 anos, é quem cuida da mulher com problemas de saúde. Os dois vivem no monte de Fetais dos Fogos, em Santiago do Cacém, onde, diz, não tem receio de ser assaltado.
“Poucas são as pessoas que passam por aqui. As que eu vejo passar são pessoas que eu conheço”, diz. Os fados que ouve “dia e noite na rádio, e desde que haja pilhas” enchem-lhe as medidas. Os animais fazem companhia. “Tenho os porcos a engordar ali daquele lado. E o patrão [dono dos terrenos] sempre que mata um porco, traz-me carne e linguiça.” E depois há os cães, o grande e aquele, mais pequeno, que dá o sinal quando se aproxima alguém.
Silvestre Francisco foi agricultor “quando havia de tudo – trigo, cevada, tremoço, tremocinho”. “Fui tirador de cortiça, trabalhei na construção civil. Depois acabei com tudo. Vim para esta zona. Com a minha idade, vou para onde?”, interroga-se, olhando em volta como quem vê tudo o que precisa.
“Não sinto nada que me apoquente. Não me sinto isolado”, diz Silvestre Francisco. Não tem água e não tinham luz quando vieram para aqui, diz até com um sorriso despreocupado. Pode beber a água do furo. E esta tarde, por exemplo, a sua mulher foi a casa da filha para tomar o banho. “Estamos há 30 anos juntos, há 20 anos aqui. Eu é que faço tudo, cuido dela, faço a comidinha.”
“Oxalá fosse só a mim”
Todos os anos, a Operação Censos Sénior da GNR contabiliza os idosos sinalizados que vivem sozinhos ou isolados. Fá-lo por critérios de segurança, podendo a intervenção vir a ter uma natureza social. Este ano, a Operação Censos Sénior contabilizou 44.511 pessoas, um pouco mais dos 44.484 do ano passado. Em 2020, estavam sinalizados 42.439 e no ano anterior eram 41.868. São números relativos ao continente de idosos que podem ser sinalizados pela comunidade, vizinhos ou entidades como os centros de saúde, entre outros. Também ficam sinalizados quando são vítimas de crimes, como furto, violência doméstica, negligência ou burla.
Foi por uma situação de burla que a equipa do Policiamento Comunitário de Santiago do Cacém chegou a Deixa-o-Resto. Esta é a aldeia onde Custódia Francisca guarda a casa emblemática para várias gerações de homens que tiveram no seu marido, o senhor Ventura, o seu barbeiro de eleição.
Agora viúva, sem filhos, Custódia faz por não passar muito tempo sozinha. Convive com vizinhos e tem uma amiga que, todas as noites, a acompanha nos programas de televisão, que se seguem ao jantar. Visita a irmã. Gosta de ler, especialmente à noite quando não lhe largam pensamentos sobre aquilo com que já estará conformada, diz estóica. “Eu estive quase dois meses sem cabeça para ligar a televisão. Estive à beira de um esgotamento. Mas tenho sido forte. A minha irmã diz-me sempre ‘esquece’.”
A conversa vai avançada, sem uma queixa, quando Custódia relata enfim aquilo que ainda hoje não percebe como aconteceu.
Bateram-lhe à porta e dois homens que se fizeram passar por médicos. Custódia não desconfiou. A porta ficou aberta. Quando virou costas, viu que o carro já tinha arrancado. Levaram os 20 mil euros que tinha guardado para comprar o terreno da casa. “Uma pessoa está tão tranquila. Se eu tivesse sabido, eu tinha fechado a porta.”
“Oxalá fosse só a mim.” Não é, e para isso esta equipa de cinco militares que têm sinalizadas 696 pessoas idosas sozinhas, embora nem todas a precisar de acompanhamento, organiza acções de sensibilização em lares e centros de dia.
As pessoas sentem vergonha de serem burladas, explicam o guarda principal Luís Carapinha, a cabo Mónica Madruga e o guarda principal Rui Pinto.
“As pessoas que passaram por isso dizem que lhes deram um cheirinho” e assim ficaram desorientadas. Mas é sobretudo a conversa, que as leva a acreditar, acrescentam. Os burlões entram pelas casas dos idosos com artimanhas diversas: podem pedir as notas para trocar, dizendo que as que têm guardadas vão perder validade; ou vir com a promessa de benzer o ouro para prevenir uma doença ou uma qualquer desgraça na família.
Sozinhas, mais facilmente as pessoas acreditam. A missão do programa da GNR Idosos em Segurança é garantir a segurança e o bem-estar das pessoas. Mas não fica por aí. “Temos que ter sensibilidade. Ficar algum tempo a conversar quando estamos perante pessoas vulneráveis. Este bocadinho, que na nossa vida acaba por ser pouco, para estas pessoas é imenso.”