Gustavo Corona, opinião, in Públido online
Ignoramos guerras, ignoramos fome, ignoramos crianças que morrem por doenças facilmente tratáveis, ignoramos mulheres que morrem no parto por falto de cuidados médicos, e tanto mais.
Deixem-me apresentar-vos a Patrícia. Médica, ginecologista/obstetra, espanhola, madrilena, com raízes alemãs, com 30 e poucos anos, baixa, loira, olhos bonitos, e com uma garra e uma energia contagiantes. Uma mulher-furacão. Dedicação ao trabalho como nunca vi, muito carinhosa com as doentes, muito rápida a pensar e a executar, com fantásticas mãos cirúrgicas. Surpreendente!
Rapidamente nos tornamos amigos, pois trabalhámos muitas vezes juntos até à exaustão, inspiramo-nos mutuamente, e partilhámos muitas histórias de vida e de morte no bloco operatório. Eu nunca trabalhei tanto na vida, como nesta missão, estive perto de colapsar em dois ou três momentos. Dormia quando podia e trabalhava quando a vida de alguém dependesse disso, o que era grande parte do tempo.
Eu e a Patrícia perdemos a conta à quantidade de vezes em que éramos chamados de madrugada, para a imensidão de patologias obstétricas urgentes que abundam naquela parte do mundo. Paquistão, província do Noroeste, a norte de Peshawar, montanhas rochosas na fronteira com o Afeganistão.
E esta era apenas mais uma noite. Eram duas ou três da manhã e toca o meu telefone. Acordo, pedrado de sono e era a Patrícia. “Estás pronto?”, diz ela a rir-se! “Sempre. Vamos lá embora!”, respondo eu, contagiado pelo seu bom humor. Ao sair da cama levo com um choque térmico que me acorda logo, estão para aí menos 10º C, numa casa sem aquecimento. Água na cara, visto o meu shalwar kameeze (túnica e calças largas), respiro fundo e vamos à luta.
Encontro-me com a Patrícia, e vamos juntos para o carro dos Médicos Sem Fronteiras. A Patrícia neste momento já tem a cara tapada com o véu, onde apenas os olhos ficam à vista, porque assim ditavam as regras. Se para mim não era fácil lá estar, para uma mulher estrangeira, era muito mais complicado. Trabalhar todo o dia de cara tapada é asfixiante. Mas vamo-nos a rir de coisas estúpidas na pequena viagem de uma “prisão” para a outra, casa-hospital.
A Patrícia, entretanto, diz-me que temos uma cesariana, urgente mas não emergente. O bebé está vivo, mas atravessado no útero. Mais uma cesariana. São tantas! Cerca de 60% a 70% das cirurgias em cenários de guerra são cesarianas.
E chegamos ao hospital, mudamos de comportamento, não há piadas porque as mulheres não podem rir, falamos bem afastados e nunca lado a lado, e vamos à nossa vida. A Patrícia entra na maternidade para, com as enfermeiras parteiras, confirmar o que se passa, enquanto eu vou pôr as “tropas” a funcionar no bloco operatório. Todos os enfermeiros do bloco e auxiliares estão ensonados e cansados, mas sou sempre recebido com sorrisos e propostas de “Xai!?”.
Entretanto, chega a Patrícia com a doente numa maca, com dores intensas das contracções do trabalho de parto, entre gritos e suspiros regularmente solta um “Alllaaaaahhhhh!”, que eu já nem estranho. A Patrícia confirma-me o diagnóstico e, para nós, é apenas mais uma de tantas, é o nosso trabalho.
A doente entra numa antecâmara do bloco operatório a tremer de frio e cheia de dores (aqui não há epidurais para analgesia), e está tudo pronto para avançarmos. Eu e a Patrícia já tínhamos perdido muitas mulheres por hemorragias do parto. Mas neste caso não. O bebé está vivo e a mãe também, medicamente falando está tudo bem. Falta um pequeno pormenor: o consentimento do marido que, entretanto, tinha sido chamado.
A rapariga tinha 23 anos e três filhos. Está sem burca, apenas de véu, uma vez que nos preparávamos para a operação. Olhos escuros, traços finos com personalidade e olhar assustado, vago, perdido no infinito, mãos e pés pintados de hena, com desenhos labirínticos. Não a acho particularmente bonita, mas gosto de olhar para ela, talvez pela curiosidade de assimilar os traços femininos, que estariam por debaixo de todas aquelas burcas. Os traços da cara são interessantes, bem vincados, com carácter, magra, sem edemas. Dou-lhe duas pancadinhas na mão tentando passar a mensagem que vai correr tudo bem, mas ela não me olha.
E alguns minutos depois chega o marido. Nos seus 50 anos, estatura baixa, mas ar altivo, cara alongada, barba grisalha comprida, chapéu “à Talibã”, e coberto com uma manta traçada pelos ombros. Os Pashtun dão-se ao respeito, transparecem aquele ar de “antes quebrar do que torcer”. Eu admiro-os pelo carácter forte.
Chamo Gohar Ali, enfermeiro-chefe do bloco, para servir de tradutor, e assumo o papel da Patrícia, de falar com o marido, pois eles raramente ouvem uma mulher, principalmente estrangeira e “infiel”. Resumidamente, em inglês, digo: “A sua mulher vai ter de ser operada porque o bebé está atravessado”, e ouço um “não”.
“Doutor, ele diz ‘não’”, confirma Gohar Ali. Levei um soco no estômago, mas não caí, sabia que esta luta era minha. Repito-me, e disseco os motivos: “O bebé vai morrer, o seu filho vai morrer, e a sua mulher vai morrer se não a operarmos, temos de a operar, será que compreendeu?” A resposta é: “Doutor, ele percebeu bem, e diz, ‘não’.”
Eu olho-o nos olhos, e ele não tem expressão, não vacila, não hesita, não abana, não pestaneja. Dirijo o meu olhar para a Patrícia, que a metros de distância ouve a conversa em silêncio, tem os olhos lavados em lágrimas, a única parte da sua cara que o véu me permite ver. Vejo o fim do mundo nos seus olhos húmidos, de quem sabe que com as suas mãozinhas, em 15 minutos facilmente resolvia esta questão, como já resolveu tantas outras.
Sofro em silêncio, e como sempre mantenho-me calmo nas situações em que o meu corpo liberta mais adrenalina, e depois de dois socos frontais, brutais, que me esmagam o cérebro e quase não me deixam respirar, vou buscar as minhas últimas forças para tentar ganhar esta luta que jamais podia dar como perdida. “Gohar, pede-lhe por favor, pede-lhe para nos deixar salvar a vida a esta mulher e ao seu filho, pede-lhe por favor, que nos deixe fazer com que as três crianças que ele tem em casa não fiquem sem mãe, pede-lhe por favor!” Gohar Ali responde: “Doutor, ele diz ‘não’, diz que não aceita que uma mulher sua seja tocada por dentro, e diz que pode comprar outra mulher.”
E perdi por KO, uma luta que nunca pensei que existisse, e que jamais pensei poder perder, mas é o que está na lei e nós temos ordens para nunca discutir política, religião, leis ou costumes... E ela, ali à minha frente com um bebé na barriga, dois corações batentes com o tempo contado, e uma morte que será num sofrimento atroz, sem eu poder fazer nada.
Tem 23 anos, ouviu toda a conversa e nunca disse nada. Tremia e sofria com as contracções e na maca em que entrou, saiu para morrer não sei onde e não sei como. E três crianças ficaram órfãs de mãe. Foi certamente uma morte com dores lancinantes, durante horas, até que o útero rebentasse. Eu já vi muita coisa, ainda assim, não consigo imaginar.
Eu e Patrícia voltámos os dois para casa, em silêncio, sem dizer uma palavra, na ânsia de quem quer esquecer. Não havia nada a dizer. Dois jovens médicos, cheios de força, afogados em lágrimas e frustração. Deitei-me na cama e chorei desalmadamente até adormecer. No dia a seguir a luta continuava.
Esta é apenas uma história, contada tal e qual como aconteceu, que representa algo que não é a regra, mas que acontece muitas e muitas vezes naquele e em muitos lugares deste mundo.
Aquela mulher morreu por ignorância de um homem, de uma cultura, de um povo. E não há ninguém que leia estas palavras e não fique revoltado com esta ignorância assassina.
Mas eu pergunto: quantas pessoas morrem pela nossa ignorância? Quer por aquilo que efectivamente ignoramos, quer por aquilo que sabemos, mas decidimos ignorar? Ignoramos guerras, ignoramos fome, ignoramos crianças que morrem por doenças facilmente tratáveis, ignoramos mulheres que morrem no parto por falto de cuidados médicos, e tanto mais.
É fácil apontar o dedo a este homem ignorante que matou a sua mulher, protegido pela lei, que outrora também fora assim em Portugal. Mas quantas pessoas morrem pela nossa ignorância? Quantas?
As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel da Mota a favor da Médicos Sem Fronteiras