2.12.22

Uma casa de banho para 70 pessoas: imigrantes viviam “em condições deploráveis”

Joana Gorjão Henriques e Mariana Oliveira, in Público

Entre os cidadãos resgatados, havia quem ganhasse entre 5 e 10 euros por semana e tivesse de mendigar, conta fonte ligada ao processo.

Mais de 70 pessoas a dormir num alojamento com uma única casa de banho, colchões nas próprias casas de banho, colchões amontoados em várias divisões; algumas pessoas a ganhar entre 5 e 10 euros por semana, que eram forçadas a mendigar para conseguirem sobreviver.

Esta é a descrição feita ao PÚBLICO por uma fonte próxima do processo sobre a situação dos trabalhadores imigrantes resgatados esta quarta-feira no Alentejo, em várias localidades – uma operação da Polícia Judiciária, no âmbito de um inquérito do Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa, que envolveu 400 operacionais.

Segundo o PÚBLICO apurou, quando era necessário, os membros da rede recorreriam à ameaça física e psicológica tanto dos trabalhadores que exploravam em Portugal, como das suas famílias, que se encontravam nos respectivos países de origem, fazendo os imigrantes viver num permanente clima de medo e terror. Por vezes, a intimidação era feita com armas de fogo e os mais contestatários eram forçados a mendigar para sobreviver.​

Fonte próxima do processo sublinhou que a prioridade foi realojar estes cidadãos, alegadas vítimas nepalesas, moldavas, timorenses, romenas e ucranianas, entre outras nacionalidades. Uma outra fonte adiantou, contudo, que a maior parte dos cerca de 200 imigrantes explorados optou por permanecer no Alentejo e continuar a trabalhar nas propriedades agrícolas onde já prestavam serviços. É que quem os explorava eram os intermediários, agora detidos, e não os empregadores finais.

Os imigrantes estavam nas mãos de uma rede em que a cúpula era uma estrutura familiar, de origem romena, que contava com cidadãos de outras nacionalidades, incluindo, pelo menos, meia dúzia de portugueses com posições menos importantes. Alguns são encarregados de explorações agrícolas que receberiam contrapartidas para, na selecção da mão-de-obra, dar preferência aos imigrantes explorados por esta rede, o que permitiria aos suspeitos receberem os montantes a que os trabalhadores teriam direito.

Deste rol, faz ainda parte uma solicitadora, com escritório em Cuba, que teria a função de criar as empresas de fachada usadas para formalizar os alegados serviços às explorações agrícolas e de falsificar documentos, quando tal era necessário.

Os líderes desta alegada associação criminosa seriam um casal romeno, na casa dos 30 anos, que chefiavam uma estrutura hierarquizada, em que os diversos elementos tinham tarefas bem distribuídas, ganhando consoante o nível de responsabilidades que assumiam. Uns eram responsáveis pela angariação das vítimas e pelo seu transporte para Portugal, outros controlavam os imigrantes nas explorações agrícolas, outros davam o nome para constituir as empresas usadas nos esquemas.

A investigação, aberta em Janeiro deste ano, apurou que os imigrantes pagavam para vir de transportes terrestres para Portugal. Uma das fontes referiu que os valores cobrados variavam – houve quem pagasse 700 euros e quem desembolsasse 2500 euros –, mas ainda não foi apurado se essa diferença tinha que ver com a nacionalidade ou com a rota.

A investigação não irá ouvir todas as vítimas. Para já, no âmbito dos mandados de busca – que, segundo a Polícia Judiciária, foram 65, além da detenção de 36 homens e mulheres –, foram apreendidos alguns documentos de identificação de trabalhadores que estavam nas mãos dos suspeitos, armas, ouro e milhares de euros em dinheiro. Os detidos serão apresentados esta quinta-feira à tarde no Tribunal Central de Instrução Criminal, em Lisboa, onde serão interrogados pelo juiz Carlos Alexandre, que lhes aplicará as respectivas medidas de coacção.

Em relação às alegadas vítimas, algumas tinham contrato de trabalho, mas o documento não corresponderia à realidade, acrescentou uma das fontes ouvidas pelo PÚBLICO.

Apoios a alojamento prioritário

Segundo o comunicado enviado pela PJ, os suspeitos têm entre 22 e 58 anos, são de nacionalidade estrangeira e portuguesa, e estão “fortemente indiciados pela prática de crimes de associação criminosa, de tráfico de pessoas, de branqueamento de capitais, de falsificação de documentos, entre outros”.

Em Beja, no parque urbano da cidade, foram instalados contentores para receber os imigrantes e montaram-se tendas da Polícia Judiciária.

Os imigrantes estão a ser apoiados por cinco equipas multissectoriais, compostas por elementos de áreas diferentes: além da PJ, a Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT), Instituto de Segurança Social, Alto Comissariado para as Migrações e equipa especialista em tráfico de seres humanos, geridas pela Associação de Planeamento Familiar (APF), disse ao PÚBLICO Manuel Albano, o relator nacional para o tráfico de seres humanos, responsável também pela APF.

O relator sublinhou ainda que “houve uma cooperação com todas as organizações de apoio social para garantir um conjunto de direitos a estas pessoas”. As entidades estão a “procurar as melhores soluções, nomeadamente a nível de apoio no alojamento, deslocação, comunicação e suporte”, disse Manuel Albano, que não especificou detalhes sobre os locais para onde vão ser encaminhadas as vítimas, pois tal poderia colocar em causa a investigação.

Esta não foi a primeira operação desta envergadura na qual participaram as equipas multidisciplinares, refere Manuel Albano, lembrando uma operação em 2018 com o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) no Alentejo em que foram encontradas cerca de 200 pessoas e, dessas, cerca de 30 identificadas como vítimas de tráfico.

No terreno, as organizações como Solidariedade Imigrante, em Beja, lembram que esta situação “não é novidade”: “Andamos a denunciar isto há anos, toda a gente no terreno sabe destas situações”, diz Alberto Matos. Isaurindo Oliveira, presidente da Cáritas de Beja, lembra o mesmo. “Dá-me ideia de que as pessoas andam distraídas. São problemas que existem todos os dias” e que são denunciados às autoridades, afirma.

A Cáritas já atendeu mais de mil pessoas este ano e por vezes – não sabe especificar em quantos casos – detectam “problemas associados” como “pessoas que são aldrabadas, com contratos que falham, e sujeitas a mecanismos para sacar dinheiro por tudo e mais alguma coisa”, diz. “Há um problema muito grande com a habitação – muitas pessoas vivem em situações miseráveis. Vamos entrar num período crítico, entre Janeiro e Abril, em que os contratos são interrompidos e as pessoas são confrontadas com dificuldades.” Muitas ficam sem abrigo, como a Cáritas já registou. Com Carlos Dias