26.12.22

Cáritas luta contra o assistencialismo, mas pedidos emergenciais não param de aumentar

Sara Almeida, in Expresso das Ilhas

As acções deste organismo passam quase despercebidas, fora dos holofotes. Mas a Cáritas, organização católica presente em Cabo Verde desde 1976, continua muito activa. Longe da ideia de esmola e do assistencialismo, as Cáritas visam hoje promover a autonomia das pessoas e suas comunidades. Contudo, as imensas dificuldades que nos últimos anos têm afligido a população, continuam a obrigar, amiúde, à entrega de alimentos e outras ajudas emergenciais, como a compra de medicamentos. A pobreza está a aumentar e os desafios são muitos…

Passam quase desapercebidos do olhar do público. As acções que promovem, fazem questão, são discretas.

“As Cáritas têm um princípio: o que a mão direita dá a mão esquerda não precisa de saber”, conta a Directora Executiva da Cáritas Diocesana de Santiago, Ronisse Tavares.

Sob este princípio, quando, por exemplo, se distribuem cestas básicas ou kits escolares para famílias necessitárias, não se difundem registos da entrega. Nem quando se leva a cabo os vários projectos que desenvolvem com vista a ajudar os vulneráveis. A questão da dignidade humana prevalece, a acção é feita sem alarido público.

“É triste e lamentável quando as pessoas passam fome, ir uma figura pública mostrar a entrega daquele aquele cesto de comida. É humilhante”, critica.

Projectos

A Cáritas Diocesana de Santiago trabalha essencialmente com projectos, numa ideia de que é através destes que se consegue melhorar de forma sustentável e prolongada no tempo a vida das comunidades e sua gente.

“A Cáritas tem um trabalho que luta contra o assistencialismo. O que trabalhamos é a questão de proporcionar autonomia às próprias famílias”, explica.

Tudo começa no terreno, onde as Cáritas paroquiais, mais próximas dos problemas locais, têm um papel activo. Ronisse Duarte descreve o processo: são realizadas visitas domiciliares, durante as quais é feito um diagnóstico que permite conhecer a situação das famílias”. Os problemas são identificados, é elaborado um projecto “de forma participativa”, e busca-se então financiamento, entre financiadores e parceiros nacionais e internacionais.

Estes projectos e programas, como referido, visam promover a auto-sustentabilidade das famílias, e o bem-estar da comunidade. Entre os vários projectos desenvolvidos Ronisse destaca, por exemplo, a reabilitação ou construção de cisternas, incluindo nas escolas, construção de casas de banho, construção de pocilgas e capoeiras ou a distribuição de plantas fruteiras e animais para criação. Promovem-se também formações e apoios vários que vão da segurança alimentar, às práticas agrícolas e pecuárias, passando por áreas como o corte e costura ou o serviço doméstico.


Porém, além de projectos mais estruturados, a necessidade das pessoas mais vulneráveis cria situações em que é preciso apoiar de forma emergencial e num âmbito mais local, por vezes em doações individuais. Assim, a Caritas também promove a distribuição de cestas básicas e vestuário, medicamentos, pagamento de propinas, materiais escolares, etc.

Não é o foco principal do trabalho da Cáritas Diocesana, mas…

Aumento da pobreza

Há nove anos que Ronisse Duarte trabalha na Cáritas Diocesana de Santiago, e da sua experiência nota um aumento da vulnerabilidade nas famílias cabo-verdianas. De 2013 a 2019 sentiu-se alguma melhoria, mas desde então a esta data, a “situação está muito complexa”. À seca juntou-se a pandemia, com um aumento de trabalho significativo na Cáritas, e agora acrescenta-se o aumento exponencial dos preços de bens essenciais e outros.

Os pedidos têm vindo, pois, a aumentar desde 2019 e houve, a par disso e em sentido inverso, uma redução dos financiamentos.

“Neste momento temos 7 projectos à espera de financiamento”, desabafa Ronisse Duarte.

E quanto aos pedidos emergenciais que chegam, nota-se por exemplo, um aumento da insegurança alimentar. “Não realizamos projectos para a cesta básica”, a nível individual, lembra a directora executiva. Porém, face às necessidades de certas famílias em concreto, é impossível ficar indiferente.

“Há situações em que não dá para recusar a cesta básica, porque encontramos pessoas que, de facto, não têm nada para comer. Não podemos ficar indiferentes, perante esta situação”, reforça.

Quando isso acontece, e o pedido é feito na Cáritas diocesana, o mesmo é direccionado para a Cáritas Paroquial da zona do requerente, que tem um trabalho de maior proximidade, para o devido apoio.

Entretanto, além de alimentos também têm aumentado os pedidos para apoio nas despesas de educação e saúde, destacadamente para a compra de medicamentos e consultas (há inclusive pedidos para tratamentos em Dakar, algo que foge ao escopo da organização).

Dinheiro na mão, é contra o princípio das Cáritas, mas em caso de necessidade comprovada a nível paroquial, procede-se, à compra do medicamento necessário ou ao pagamento na instituição de ensino.

Face ao aumento dos pedidos que chegam, Ronisse Duarte não hesita a responder, tal como até os números oficiais mostram, que de facto a pobreza tem estado a aumentar.

“A situação não está fácil. Há pessoas que não têm praticamente nada”, lamenta. “Pessoas que não têm trabalho, não têm nenhuma fonte de rendimento, que têm crianças, que têm idosos, que tem pessoas deficientes em casa… damos prioridade a essas pessoas”, conta.

Um outro lado importante também da Cáritas é a difusão de informação. Assim, principalmente, ao nível das Cáritas Paroquiais, é feito um trabalho informativo junto às pessoas para estas poderem aceder aos apoios disponibilizados pelo próprio Estado. Por exemplo, as famílias são informadas de que devem integrar o cadastro único “para que possam ter acesso a direitos básicos”, ou como proceder ao “pedido de pensão social.”. Também é feita sensibilização quanto a outras questões com que se deparam no terreno como a falta de registo das crianças, entre outras.

Lembrando a tempestade René

Além da seca, pandemia e guerra, os últimos anos trouxeram também outros infortúnios que obrigam a um reforço de intervenções. Um caso destacado por Ronisse Duarte foi das chuvas torrenciais de 2020. A 8 de Setembro desse ano, a tempestade René “passou” por Cabo Verde e destruiu várias moradias e meios de subsistência, principalmente na Praia (onde inclusive faleceu um bebé nas enxurradas). A Caritas Cabo-verdiana implementou um projecto de intervenção de Urgência, juntamente com a Cáritas Diocesana de Santiago e Paroquiais, realizaram um trabalho intensivo, de apoio às famílias afectadas.

“Através da visita que realizamos na comunidade junto com as Caritas Paroquial locais, conseguimos identificar os problemas, fizemos um projecto de intervenção de urgência”

Depois, com o financiamento do CRS (Catholic Relief Services), foram apoiadas cerca de 600 famílias da Praia, Santa Catarina e São Vicente “com colchões, kits de cozinha, kits de quartos, lençóis, fogão, cesta básica num período de praticamente 3 meses…”, lembra.

Voluntariado envelhecido

Na verdade, um pouco por todo Cabo Verde há várias associações comunitárias e ONGs que vão fazendo também trabalho de apoio aos mais vulneráveis. São imensas e muitas vezes o seu trabalho tem, de facto, impacto na vida das comunidades.

A relação com entre essas entidades e a Cáritas, garante Ronisse Duarte é boa e concertada. Nas comunidades onde decorrem projectos da Cáritas, inclusive, é feita uma parceria para evitar a “questão da duplicação” de esforços. O mesmo acontece, diz, como o poder local.

Entretanto, sendo a Cáritas um organismo que funciona também com base no voluntariado, os voluntários são a sua grande força. Na diocese de Santiago há cerca de 900 voluntários, mas há também um problema: é um corpo de voluntários envelhecido e verifica-se que há necessidade na angariação de voluntários mais jovens. Mesmo no seio da Igreja Católica, os mais novos preferem outras entidades, como os escuteiros, onde podem também realizar o seu voluntariado. Outros, eventualmente, estão em outras organizações, como essas associações comunitárias, imbuídos de valores e de um espírito solidário diferentes.

Mas, “até hoje Cáritas é forte”, garante.

O envelhecimento do corpo de voluntários teve, por exemplo, bastante impacto durante a pandemia. Na altura, sabendo-se dos riscos para a população idosa, muitos voluntários ficaram com medo de sair à rua.

“Mas mesmo assim a Caritas não parou, continuou a trabalhar e muito. No confinamento o trabalho aumentou. Por exemplo, a nível nacional conseguiu-se apoiar praticamente 4 mil pessoas com cestas básicas”, refere.

Natal

E, no meio de muitas crises e tempestades, hei-nos chegados ao Natal de 2022. Se há época em que o sentimento de solidariedade é projectado, será certamente no Natal. E na Cáritas?

Por vários locais de Cabo Verde, as Cáritas paroquiais estão a organizar actividades natalícias e distribuição de dádivas às famílias vulneráveis. A Cáritas Diocesana de Santiago também costumava organizar uma actividade comemorativa, mas este ano tal não foi possível. “É tanta coisa”. Contudo, continua a apoiar as paroquiais nessas suas actividades e festas locais.

Entre os apoios para este Natal 2022, a directora executiva destaca o que foi dado para comemoração da data por parte do embaixador da Ordem de Malta, e que servirá especificamente para as comemorações da Paróquia de São José.

“As Cáritas paroquiais estão mais próximas da comunidade, mesmo que não se consiga fazer uma actividade junta, mobilizamos recursos e entregamos-mos para estas realizarem as actividades”, conta Ronisse Duarte.

A nível de ofertas a título individual, nesta época as pessoas estão mais sensibilizadas para a doação. Embora a Cáritas receba pequenos contributos durante todo o ano, no Natal isso é mais sentido, principalmente a nível das Cáritas paroquiais.

Enfim, o Natal não passa em branco, mas o trabalho da Cáritas é todos os dias, sempre que a comunidade precisar.

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Cáritas em Cabo Verde

A Cáritas é o organismo Oficial da Igreja Católica para promover a Caridade Cristã, a justiça social e a solidariedade humana um organismo oficial da Igreja Católica, presente em 162 países e 200 territórios organizados, que promove a dignidade da pessoa humana, apoiando, para o efeito, os mais vulneráveis, independentemente da sua religião, nacionalidade, ou cor política.

“É um pilar da Igreja Católica que tem uma acção direccionada para acção social e faz intervenção a nível das comunidades”, explica a Directora Executiva da Cáritas Diocesana de Santiago, Ronisse Duarte.

Foi instituída em Cabo Verde em 1976 e desde então nunca mais parou a sua actividade. No país, é constituída pela Cáritas Cabo-verdiana, que faz a ligação com a Cáritas Internacional, e duas Cáritas diocesanas (Mindelo e Santiago) que as integram 41 Cáritas Paroquiais existentes a nível nacional.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1099 de 21 de Dezembro de 2022.
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