19.12.22

"O RSI veio para diminuir a pobreza, mas até agora só diminuiu a severidade da pobreza. Não retirou uma única pessoa dessa situação"

Catarina Maldonado Vasconcelos, in Expresso

Fernanda Rodrigues, da Comissão Coordenadora da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza e da Cruz Vermelha Portuguesa no Porto, admite preocupação perante o período que o mundo enfrenta. Os mais pobres acabarão invariavelmente por sentir ainda com mais força o impacto da crise financeira, mas Portugal tem um problema cívico de reconhecimento da pobreza. “Fomos educados a achar que é tão natural ser pobre como não ser”, diagnostica, frisando, desde logo: “Não, não é”

Inclusão, assistência e ação social sempre fizeram parte das preocupações de Fernanda Rodrigues, antiga consultora da Comissão Europeia na equipa portuguesa de avaliação do Programa Pobreza II. Já não consegue recuar ao momento divisor de águas, aquele em que a consciência soprou como um apelo para o exercício profissional. “Em todas as trajetórias, juntam-se elementos de ordem pessoal e vão-se acrescentando outros de ordem educativa e de formação. Desde cedo eu tinha muito encanto pelo compromisso com coisas que via não resolvidas na sociedade.”

A investigadora lembra-se de integrar um grupo de jovens ativistas de uma igreja, o que deu "consistência" ao encanto "pelo compromisso com coisas que via não resolvidas na sociedade", e "o curso de Serviço Social veio quase como um caminho de continuidade". Já foi coordenadora do Plano Nacional de Acção para a Inclusão, entre 2006 e 2010. Em 2016, foi condecorada com a Medalha de Honra da Segurança Social pelo trabalho no sistema de segurança social.

O compromisso com a justiça social esteve sempre presente porque "a ideia de mudar a sociedade é encantatória", admite ao Expresso. Desde o antigo Instituto de Assistência à Família ao grande compromisso com a área de política pública, Fernanda Rodrigues acompanhou todas as mudanças na Segurança Social, em trabalhos na linha da frente e na investigação, e o longo processo que Portugal tem enfrentado, desde que, em 1987, aderiu ao Programa de Luta Contra a Pobreza. Dá aulas desde 1976, coordenou os dois últimos programas de ação para a inclusão e integra uma comissão coordenadora do programa de luta contra a pobreza. Garante que "não há nada de mal na designação como assistência social" e que mantém o "posicionamento cívico e político de que ninguém quer viver num país de desigualdade": uns denunciam-na, outros intervêm e há ainda os que fazem "de conta que não veem".

Em entrevista ao Expresso, a investigadora da Comissão Coordenadora da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza e da Cruz Vermelha Portuguesa no Porto vinca que "a pobreza não é um problema da sociedade civil, é um problema das políticas públicas". Fernanda Rodrigues lembra que a “impossibilidade de acesso à primeira habitação por parte dos jovens é uma condição determinante de pobreza” e deixa um alerta: “Portugal é dos países que menos reconhecem civicamente a pobreza que tem, exatamente porque nos habituámos a conviver com ela. Fomos educados a achar que é tão natural ser pobre como não ser.”

Este é um período que a está a preocupar…|

É um período de preocupação. Todos os períodos como este, que trazem agravamento das condições de vida da população, são preocupantes. Quando isto acontece para toda a gente, acontece mais incidentemente para pessoas que já estavam em situação de desvantagem. Não há nenhum mistério nisto. Todos nós estamos a perceber o que significa o abaixamento do nível de vida. Falamos da crise inflacionista. As restrições que já estão a acontecer do ponto de vista alimentar e nutricional, do uso da habitação - que é um bem tão essencial e tão organizador das nossas vidas -, no âmbito da saúde... Muitas pessoas acabam por preterir a saúde porque têm outras coisas a que dar sentido.






“A verdade é que ninguém nos dá garantias de quando a crise inflacionária vai terminar. Estamos a tentar passar por isto como se fosse absolutamente circunstancial, mas não sabemos.”



O Serviço Nacional de Saúde deixa-nos muito bem vistos em todas as comparações internacionais, mas temos de cuidar do acesso em permanência. O acesso ao SNS é mais complicado para aqueles que têm dificuldades. Desde 2020 até agora, Portugal desceu cinco posições na comparação entre países da União Europeia. Isso é muito preocupante. Nós vínhamos a ter recentemente um trajeto de alguma melhoria. Assistir à demolição disso é fatal. Em primeiro lugar, para as pessoas, e, em segundo lugar, para aqueles que olham para a realidade com vontade de que ela seja outra.

A verdade é que ninguém nos dá garantias de quando isto vai terminar. Essa é outra incerteza. Estamos a tentar passar por isto como se fosse absolutamente circunstancial, mas não sabemos. Penso que terá repercussões, inclusivamente para a própria estratégia, que foi concebida há tão pouco tempo. Foi concebida já com muito pano de fundo relativamente ao agravamento, mas não com as tonalidades que ele vai ter.

Estamos a falar da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza, lançada no final do ano passado, que previa retirar 600 mil pessoas da situação de pobreza, entre as quais 170 mil crianças, e reduzir a taxa de pobreza monetária para 10%. Estes objetivos já não são realistas? Devem ser revistos?
Não se trata de rever os objetivos, mas de adequar os recursos a essa nova realidade. Eu continuo a achar que não temos qualquer razão para não considerar, por exemplo, que o combate à pobreza é um grande objetivo. Nesta estratégia, argumentou-se que não era possível interferir e alterar a situação de pobreza das crianças sem intervir nas famílias de que elas fazem parte. Não se pode considerar que por magia se retira as crianças da situação de pobreza. Houve esta perceção e este acordo; é um compromisso político. Não estou convencida de que esta prioridade se altere. Estou convencida de que vai ser preciso concretizá-la provavelmente com meios adicionais aos que são previstos. Em situações como esta, a primeira resposta é sempre esta: "Vamos responder como se isto fosse uma coisa para passar. Vamos fazer de conta que isto é uma circunstância, e, a par e passo, ver como isto se vai enraizando." Quando enraiza, estamos perante coisas consolidadas às quais é preciso responder de outra forma.


“A pobreza não é um problema da sociedade civil, é um problema das políticas públicas.”



Uma estratégia não resolve - e não vai resolver, de certeza -, mesmo no espaço a que se propõe, que são dez anos, o problema. A convicção necessária é de que a sua conceção correspondeu à prioridade para este tempo. Mas há muita coisa que se faz na luta contra a pobreza que, sendo de articulação com as políticas públicas, não é exclusivamente intervenção do Estado. Ainda assim, se há lugar em que o Estado tem de ter a primazia e um papel substantivo é na luta contra a pobreza. A sociedade civil, se fizer aquilo que tem feito - e bem -, é um grande apoio. Mas este não é um problema da sociedade civil, é um problema das políticas públicas.

As pessoas mais pobres são sempre mais afetadas em momentos como este, mas há também algumas franjas da sociedade a serem arrastadas para o limiar da pobreza.
Temos estes dois movimentos: os efeitos sentidos na pobreza já enraizada, mas também nas condições de empobrecimento de alguns grupos da população.

“A impossibilidade de acesso à primeira habitação por parte dos jovens é uma condição determinante de pobreza.”

Temos, por isso, perfis cada vez mais diversos da população pobre.

Sim, sobretudo de pessoas em risco de pobreza. No que diz respeito à habitação, lidamos com uma situação de dificuldade, quase impossibilidade de as pessoas ganharem autonomia. Sabe-se hoje, pelos estudos feitos, que a impossibilidade de acesso à primeira habitação por parte dos jovens é uma condição determinante de pobreza.

Nesta nova realidade de pobreza, insere-se uma grande variedade de pessoas e de territórios. As grandes zonas urbanas são muito atrativas de vários pontos de vista - como do ponto de vista cultural, por exemplo -, mas deixaram de responder às necessidades das pessoas, como, por exemplo, de alojamento. Não é muito habitual que hoje quem quer usufruir das coisas que se passam no Porto e é um jovem à procura de casa consiga fixar-se na cidade, a não ser que tenha suportes de outra natureza. Ou então estamos a incentivar os jovens e a dizer-lhes: "Tentem viver com outros." Isto é muito preocupante.

Nós só temos inventariadas na cidade do Porto as pessoas que pedem habitação social. Há uma espécie de autocondicionamento. As pessoas pedem habitação social porque estão numa determinada situação que lhes permite pensar nessa possibilidade. Mas há muitos jovens, muitas pessoas, que nem sequer pensam em concorrer à habitação social, por formação e trajeto de vida. Nós hoje estamos longe de saber qual é efetivamente a procura que a habitação tem na cidade do Porto, a não ser que recorramos aos privados que o sabem. A área da habitação é muito preocupante; é uma área em que vamos acumulando problemas.

A precariedade do trabalho é hoje uma condicionante imensa. Nós fazíamos parte de uma geração que tinha o seu salário e contava com ele. Muitos jovens vivem em situação de precariedade, sabendo que hoje têm trabalho - e até pode ser minimamente remunerado, mas também não é o caso -, mas desconhecendo se amanhã também será assim. Esta incerteza é também uma fonte imensa de precarização da vida. "Que garantias posso eu dar, numa relação, com o contrato que estabeleço?"

Há vários parâmetros para definir pobreza. Hoje é impossível também deixar de lado a pobreza energética e o peso das alterações climáticas. Esses parâmetros devem ser equacionados na definição de pobreza?
A própria estratégia toca nesse tema. Nós continuamos a falar da pobreza energética com um certo sentimento de vergonha. Chegámos às questões climáticas um bocadinho mais tarde do que outros. Isso não é problema nenhum, pode até ter uma vantagem, que é sabermos recuperar aquelas que têm sido as melhores práticas.
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“Uma das consequências que vai ter a inflação é que as pensões, mesmo sendo atualizadas, nunca vão ser atualizadas tendo em conta o que está a acontecer realmente."

Ainda hoje a situação de desconforto habitacional - desconforto no sentido básico do termo, não é no sentido supérfluo - significa falar sobre o aquecimento e sobre a mobilidade dentro das habitações. Algumas pessoas não conseguem fazer o seu fim de vida em casa porque não têm condições internas de mobilidade no seu próprio espaço. Muitas vezes, há coisas que se podem fazer e há programas destinados a isso. Não podemos estar a assistir a um envelhecimento tão rápido da população sem querer interferir na qualidade desse envelhecimento. Temos de cuidar do envelhecimento de várias maneiras. Do ponto de vista das pensões, por exemplo. Provavelmente uma das consequências que vai ter a inflação é que as pensões, mesmo sendo atualizadas, nunca vão ser atualizadas tendo em conta o que está a acontecer realmente, mas através de uma percentagem calculada em média. Podemos assistir a um desgaste ainda maior das pensões, e, mais uma vez, das mínimas. As pessoas que recebem o RSI [rendimento social de inserção] também vão ter uma condição de maior empobrecimento. Aquilo que recebem do RSI vai chegar para menos do que chegava até agora, o que significa que ficam numa situação de acrescida precariedade.

"Há salários que são fontes de empobrecimento."

Dizia que a resposta à crise inflacionista tem seguido uma abordagem circunstancial. Essa não é a abordagem correta?
Nas questões da pobreza, há sempre dois andamentos. Temos um nível de pobreza consolidada, que exige medidas adequadas e que não são fáceis de implementar, reconheço. A interferência na pobreza da política de salários que temos não é um assunto que se resolva amanhã, mas tem de se resolver, porque há salários que são fontes de empobrecimento. Por outro lado, temos a pobreza que acontece no dia-a-dia: uma perda de uma casa, um acidente, situações que têm de ter uma resposta imediata. Eu não posso dizer a uma pessoa que fica sem habitação: "Olhe, estamos a desenvolver um programa de habitação ótimo. Se tiver calma, daqui a três anos terá uma casa." Cada um dos andamentos não tem de prejudicar o outro. Não podemos deixar de nos preocupar com o que acontece quotidianamente só porque temos um ótimo plano a longo prazo. Um dos grandes problemas das políticas públicas é andarem zangadas umas com as outras. Dificilmente conversam entre si. A conversa tem de ser interministerial e depois intersetorial. Tudo isto tem de fazer sentido.

Por falar em articulação, o que vê a falhar em termos de políticas locais e o que é que é falha do Estado central?
Durante muito tempo, as autarquias estiveram afastadas de um conjunto de competências que sempre foram mais reivindicadas pelo Estado central. O Estado acabou por estar responsabilizado por tarefas que melhor seriam representadas por entidades a nível local vinculadas às políticas públicas. Podem dizer que é ideologia, mas não é. Responsabilizar as políticas públicas é um ato cívico, é saber por que é que eu sou contribuinte, por que é que eu me disponibilizo, e outros para mim, relativamente a uma solidariedade nacional.

“Em muitos momentos tivemos a faca e o queijo na mão e cortámos a mão, em vez de cortarmos o queijo. É preciso aproveitar a oportunidade.”

Estamos, neste momento, a atravessar um período muito interessante desse ponto de vista, com a descentralização de algumas competências do Estado central para o poder local. Este pode ser um caminho de diálogo, em primeiro lugar, porque as políticas centrais tendencialmente têm um perfil homogeneizador da realidade, têm de falar para todos. Mas depois, na sua aplicação local, elas devem ter de conviver com a diversidade. É uma oportunidade ótima para enriquecer as políticas nacionais, e não as desmerece. Toma-as como referencial de partida e depois tenta, em cada um dos locais, uma aplicação que seja consentânea com as características de cada local e com os próprios recursos. Há locais que têm recursos do ponto de vista da solidariedade que são ótimos para articulação com estas políticas. Se não se fizer acontecer, o que vamos ter a nível local é mini políticas nacionais. Em muitos momentos tivemos a faca e o queijo na mão e cortámos a mão, em vez de cortarmos o queijo. É preciso aproveitar a oportunidade.

Outro tema que lhe é caro é o ensino superior. Muitos jovens frequentam o ensino superior, alguns com acesso a bolsas, mas continuam, depois disso, a serem pobres. A esperança de quebrar esse ciclo de pobreza muitas vezes não se concretiza. O que falha no modelo social de ensino?
Só temos em Portugal algumas áreas de preferência: os atletas de alta competição, as pessoas que vêm das ilhas... Mas depois temos dificuldade em acomodar outros públicos. Está aberta outra via interessante: que a entrada no ensino superior se faça pela via profissionalizante. Quem entra nessas condições frequentemente entra com armas desiguais. Não basta dizer "temos a porta aberta, todos podem entrar". Essa é uma falsa noção de igualdade e de acessibilidade. Para se entrar, é preciso ter as condições de entrada. Depois da entrada, é preciso ter condições para ficar. É um trabalho que deveria ser feito. As universidades têm serviços sociais, mas muitas vezes estão muito mais associados à atribuição das bolsas do que à atenção aos percursos de alguns alunos que precisariam de um suplemento de vantagem para os igualar. Há muito trabalho a fazer no ensino superior, para eliminarmos a ideia - que vai sendo esbatida - de que muitos são chamados mas poucos são escolhidos.

Mas temos melhorado muito. Há hoje famílias analfabetas que têm jovens no ensino superior. Fizemos um longo percurso num período relativamente escasso. Temos de saber o que isto significa do ponto de vista do uso pleno das instituições. Há um desenho que diz "serviço público" e "entrada livre", mas tem a porta de um tamanho menor do que o dos cidadãos. Ninguém entra naquela porta. Não chega dizer "a porta está aberta".

Hoje temos uma geração tão qualificada e tão preterida em tantas coisas, designadamente no trabalho. Muitas vezes, o que os jovens têm à sua espera não é proporcional à expectativa e às competências que criaram.