19.12.22

Como uma reportagem sobre pobreza mobilizou os leitores para realizar um sonho de uma família

Sónia Calheiros, opinião, in Visão 

Depois de dar o seu testemunho sobre como se vive com um salário baixo, numa grande reportagem da VISÃO sobre pobreza extrema, e graças ao altruísmo de três leitores, António Grega e a sua família numerosa foram, pela primeira vez, ver os animais no Jardim Zoológico. Crónica da jornalista, uma das autoras da reportagem, que os acompanhouEm que estarão todos a pensar?”, questionei-me antes de sair de casa. Não tardaria em saber a resposta, quando me encontrei com o António, a Cátia e os sete filhos à porta do Jardim Zoológico de Lisboa. O sábado não tinha acordado soalheiro, mas, rapidamente, a chuva fez uma pausa, permitindo que o passeio fosse apenas abençoado, em vez de molhado.

Em setembro, quando conheci António Grega, 41 anos, espantei-me com a sua serenidade, com a ausência de qualquer nível de fúria ou maledicência ao contar-me os pormenores da sua vida quotidiana. Foi-me apresentado através da Cáritas Diocesana de Setúbal como o caso de uma família pobre, que eu tanto procurava para a grande reportagem Vidas de Trabalho Sem Saírem da Miséria, entretanto publicada na edição n.º 1549 da VISÃO, a 10 de novembro.

Procurava casos de pessoas em situação vulnerável, das mais carenciadas da sociedade portuguesa, famílias de homens e mulheres que trabalham, mas por receberem um salário tão precário, não conseguem ultrapassar o patamar mais baixo da sobrevivência.

A numerosa família Grega faz parte dos 2,3 milhões de pessoas que, em Portugal, vivem com o rendimento mensal abaixo do limiar de risco de pobreza, fixado em €554,41 (€6 653/ano). António é um dos 500 mil pobres que trabalham.

O arranque da reportagem, centrado nesta família de Setúbal, sensibilizou muitos dos nossos leitores. Saber que nem todos podem ir almoçar a um restaurante de fast food, com o preço da comida mais em conta, ou que ainda há sonhos por realizar, como ir, pela primeira vez, ao Jardim Zoológico, e consigo levar os filhos, é difícil de encaixar.

A generosidade de três leitores – primeiro o Rui, depois a Berta e, por fim, a Inês (preferem manter o anonimato e a discrição) – chegou em forma de e-mail. Todos estavam dispostos a oferecer as entradas para o Zoo, a rondar os duzentos euros para os nove, e ainda foi acrescentado o almoço cheio de hambúrgueres gulosos (com sobremesas oferecidas pelo McDonald’s) e os bilhetes de comboio de ida e volta. Só assim António, Cátia e as sete crianças entre os 4 e os 14 anos, conseguiram passar um sábado cheio de alegria e diversão.

Tiveram sorte. Já dentro do Zoo, ainda chegaram a tempo de ver o primeiro espetáculo dos golfinhos e, de seguida, uma surpresa. Do farol da baía saía o simpático Pai Natal com os seus gritos carismáticos “Oh, Oh, Oh, Oh!” e a sineta a tocar a repique. Seguiram-se muitas palmas e gargalhadas desassombradas do público do anfiteatro; reconfortantes para quem observa.

António estava entusiasmado, queria muito ver as girafas. E não se ensaiou nada em posar para a fotografia junto dela. Entre os filhos, o mais velho só perguntava pelos macacos e uma das meninas de 13 anos ansiava pelo encontro, frente a frente, com a chita. Os caminhos do parque foram-nos levando a descobrir as araras, os pelicanos, os tucanos, os elefantes, os hipopótamos e muito, muito mais.

Afinal, na viagem de comboio, os mais novos vinham a pensar nos animais que mais queriam ver. Tão simples, quanto isso. Mas na cabeça dos adultos havia outras preocupações.

O Rendimento Social de Inserção (RSI), atribuído a Cátia por estar desempregada, costumava ser €467, mas recentemente foi reduzido para 233 euros. Uma conta impercetível para o casal que tem tido uma verdadeira batalha com os técnicos da Segurança Social para perceberem como se fazem os cálculos.

Se Cátia continua desempregada, António continua a trabalhar, sem o salário ter sido aumentado, e os filhos continuam a ser menores de idade, porque desce para metade o valor deste apoio estatal para as pessoas em situação mais vulnerável? É esta a dúvida que lhes assombra os dias.