Francisco Mangas, opinião, in Público
As recentes palavras do Presidente da República foram um primeiro passo, mas falta um essencial pedido de desculpas.
O reconhecimento do Presidente da República aos portugueses de etnia cigana alistados como soldados durante a Guerra da Restauração foi um gesto importante, que ainda nenhum chefe de Estado ou primeiro-ministro do Portugal democrático tivera coragem de fazer com tamanha frontalidade. Marcelo não usou as habituais palavras vagas que, por vezes, vemos nestas situações. Foi mais além: apresenta os ciganos, tantas vezes ignorados pelos historiadores, como agentes construtores do nosso passado coletivo. Afirmação óbvia, mas transcendente num país que remete esta comunidade sistematicamente para os rodapés dos livros de História.
A escolha do 1.º de Dezembro, se significativa pela importância da efeméride na nossa memória coletiva, esconde nuances que não devem ser ignoradas. O reinado de D. João IV, o monarca “restaurador”, foi um período de perseguições sistemáticas aos ciganos portugueses. Um conjunto legislativo então publicado determinava a sua expulsão do Reino, com exceção dos “velhos” e de algumas mulheres e crianças que poderiam continuar em Portugal apenas desde que abandonassem as suas características étnicas e culturais distintivas (o modo de falar, de vestir, etc.). Enfim, desde que deixassem de ser ciganos. A própria condecoração de Jerónimo da Costa não foi pacífica (poderia um cigano ser merecedor de honrarias?) e, na verdade, revela muitos dos preconceitos que ainda hoje não foram exorcizados.
De forma sistemática, mulheres e homens ciganos foram condenados a trabalhos forçados ou deportados para diferentes espaços coloniais portugueses – até o mais frio dos historiadores se sensibiliza com os relatos de netos que perderem o rasto aos avós “degredados” ou das mães ciganas que, desesperadas, “renegavam Deus” ao saberem que os seus maridos estavam na antecâmara de algum navio que os levaria para um lugar distante (episódio passado na Tavira dos inícios do século XVIII, num grupo familiar encarcerado apenas “por ser cigano”). Logo em 1641, estavam as batalhas contra Espanha ainda no início, o conselho de guerra determinava a prisão de todos os ciganos que se encontrassem nos batalhões militares, “para se meterem nas Galés” em companhia de “mouros” escravizados, o que demonstra a violência deste “recrutamento” (o documento foi publicado pelo general Chaby, nos finais de oitocentos).
Esta política do poder régio iniciara-se no século XVI, poucas décadas após a chegada dos primeiros elementos desta minoria à península Ibérica, e continuou, sob diferentes formas e disfarces, até quase aos nossos dias. Não nos esquecemos do que escreveu José Gabriel Pereira Bastos a partir dos Regulamentos da GNR dos anos 80 do século XX, profundamente imbuídos de um espírito anticigano, para os quais se prescreve uma “especial vigilância”. Portugal tarda em reconhecer esta política segregacionista. As recentes palavras do Presidente da República foram um primeiro passo, mas falta um essencial pedido de desculpas.
Marcelo colocou o debate num ponto essencial da História de Portugal, ainda pouco disposta a trazer para primeiro plano as suas minorias. Estaremos prontos para o desafio?
Ao recordar o papel de ciganos como Jerónimo da Costa, Rebelo de Sousa retoma uma linha de pensamento que alguma historiografia gostou sempre de recuperar no que a esta minoria diz respeito, desde os trabalhos fundacionais de Adolfo Coelho, nos finais do século XIX. Não terá sido essa a intenção do Presidente, mas esta é uma visão profundamente redutora (e até reacionária) do passado deste grupo de portugueses: a de que o seu lugar no conjunto nacional foi “conquistado”, como se o “sangue derramado” nas batalhas contra o poder castelhano fosse penhor de alguma espécie de dívida histórica que eles tivessem perante o país. Pelo contrário, se o passado fosse uma folha de deve-haver, é nos “outros” portugueses que recairia um passivo de séculos em relação a estes seus concidadãos.
Estas considerações não pretendem menorizar o valor das palavras do Presidente da República. Algumas reações políticas e mediáticas que se lhes seguiram mostram que a subtil associação entre os valorosos soldados ciganos e uma data tão querida a setores conservadores da sociedade portuguesa como a “restauração da independência” tocou num elemento sensível. Marcelo colocou o debate num ponto essencial da História de Portugal, ainda pouco disposta a trazer para primeiro plano as suas minorias. Estaremos prontos para o desafio?