19.12.22

Vítimas da inflação: “Com sopa, fruta e pão ninguém morre”

Filipa Almeida Mendes (texto),Guillermo Vidal (fotografia) eAdriano Miranda (fotografia), in Público online

Com o aumento do custo de vida, os pedidos de apoio às instituições têm crescido. Do outro lado, cada vez mais pessoas se vêem obrigadas a pedir ajuda financeira pela primeira vez.

Um apoio financeiro para pagar as despesas de gás, luz e água “seria o ideal” para João (nome fictício), de 42 anos, conseguir “chegar ao final do mês pelo menos com o frigorífico abastecido”. O dinheiro nem sempre chega e, às vezes, é preciso “cortar” na comida, “principalmente à noite, em que a pessoa acaba por fazer umas refeições mais ligeiras”.

João é designer gráfico e reside em Carnide, Lisboa. Pela primeira vez, viu-se obrigado a pedir ajuda depois de o senhorio o ter informado que a renda mensal que paga pelo aluguer do T0 onde vive iria aumentar com a renovação do contrato, em Março, de 470 para 600 euros e confessa ter-se sentido “um bocadinho perdido”. Foi uma “surpresa”, diz, com um ligeiro sorriso no rosto, embora admita que este é “um preço aceitável dentro do mercado de Lisboa, que está muito caro”.

No início desta semana, dirigiu-se à sua junta de freguesia para solicitar apoio financeiro e aguarda agora uma resposta. “Com a conjuntura toda que estamos a viver e com os aumentos ao nível da energia, água e gás, prevê-se que 2023 seja um ano complicado. Auferindo um ordenado mínimo, começam a ser despesas incomportáveis”, explica, destacando ainda “um grande aumento [do preço] do cabaz mensal”.​

Antigamente, lembra, “bastava ter três televisões” para se pertencer à classe média. Hoje em dia, o panorama alterou-se e o facto de as pessoas “apresentarem um saldo negativo” no final do mês contribui para a perda desse “estatuto”, podendo ser “ainda mais difícil para um casal que tenha filhos” e outro tipo de despesas.

João já esteve “do outro lado” a ajudar os “mais necessitados”. Agora, é ele quem precisa de ajuda e salienta que é essencial “não ter vergonha de pedir, quando é preciso”, e não fazer “um tabu do assunto, porque é uma realidade” que se vive devido ao agravamento da inflação.

​Tirar “de um lado para pagar no outro”

Noelma Marques, de 37 anos, viu-se também, pela primeira vez, “numa situação destas”. “Não sou pessoa de pedir ajuda, tento fazer pelas minhas coisas. Nunca precisei e, neste momento, tive mesmo de recorrer.”

Em Março, mudou-se para casa dos pais, no Bairro Padre Cruz, em Carnide, depois de o seu marido ter tido um AVC e a sua vida ter dado “uma volta enorme”. “Ele está com baixa e sou só eu a trabalhar em part-time no Pingo Doce, pelo que tive de recorrer à ajuda de vários sítios”, conta.

Actualmente, vivem naquela casa nove pessoas. As paredes estão decoradas com enfeites de Natal e há uma árvore repleta de luzinhas coloridas, esbanjando espírito natalício.

“Os meus pais têm suportado tudo, porque eu não os consigo ajudar. Eles é que cuidam do meu filho, para eu poder ir trabalhar, e tomam conta do meu marido”, conta Noelma, destacando que “não podia parar de trabalhar”, porque o “pouco” que ganha ajuda a orientar-se e “mesmo assim não chega”. “Com isto dos aumentos pior ainda.”

Há um ano, Noelma e o marido compraram uma casa em Sintra e a prestação mensal aumentou agora 165€. A casa “era um investimento” para o seu filho no futuro. “Dada a situação por que estamos a passar, não sei até que ponto vou conseguir pagar [e manter a casa]”, sublinha.

“Com o meu ordenado, antes, pagava a renda, os seguros da casa e ainda ficava com um dinheirinho para poder pagar água e luz. Neste momento, no final do mês, o meu ordenado só vai para a renda”, lamenta. “Recebi um subsídio de Natal, mas fiquei sem dinheiro, porque foi tudo para despesas.”

Através dos seus pais, conseguiu apoio da junta de freguesia de Carnide, há cerca de meio ano. “Deram-nos um cheque para comprar alimentos e pagar despesas.”

Noelma explica que tira “de um lado para pagar no outro”. Para resolver a sua situação era essencial conseguir uma junta médica que atribuísse “o grau de incapacidade” ao seu marido e lhe permitisse “tratar de seguros” e baixar prestações, mas uma primeira consulta está com “uma demora de três anos”. “Com as rendas, a comida e tudo a aumentar, alguma coisa vai ficar para trás”, diz, enquanto uma lágrima lhe escorre pelo rosto.

Suportar as despesas nesta casa lotada “tem sido muito difícil”, mas a entreajuda sobrepõe-se. Os banhos vão-se reduzindo sempre que possível e a alimentação é feita com o contributo de todos. “Ninguém vai para a cama de barriga vazia. Se não se comer bifes, come-se sopa. Com sopa, fruta e pão ninguém morre”, diz a mãe de Noelma, Maria Albertina Galvão.

“Infelizmente, a gente não sabe o dia de amanhã”, salienta Noelma. No hipermercado onde trabalha, todos os dias ouve dizer que “cada vez está a haver um aumento maior em tudo”. “As pessoas já não procuram luxos.”

No seu caso, além de todos os apoios que vai recebendo, tem tentado vender bens que foi adquirindo ao longo do tempo e que vão “ajudando a pagar contas”. “Coisas que eu fui conquistando são coisas de que eu me vou desfazendo”, afirma. “Até agora, não fiquei a dever nada, mas já não posso falar pelo final do mês.”

João acredita que a actual situação deriva também “muito” da guerra na Ucrânia e da pandemia de covid-19. “Todos temos noção que 2023 vai ser um ano de desafios. Infelizmente, sabemos o dia de amanhã”, diz. Foi exactamente essa noção que o fez “antecipar-se e pedir ajuda”. “É bom que as pessoas estejam atentas ao que aí vem para se precaverem e não tenham vergonha de procurar as instituições, que também vão precisar de ajuda”, observaa.
Famílias estão mais frágeis

Susana Veiga, assistente social da Legião da Boa Vontade (LBV), destaca que a instituição tem vindo a registar um aumento dos pedidos de apoio, “principalmente de pessoas que estão com bastante vulnerabilidade a nível financeiro para fazer face a todas as despesas”. Passado o “boom da pandemia, as famílias acabaram por ficar mais frágeis ainda, porque os custos dos alimentos aumentaram”.

O perfil de quem procura ajuda tem-se também alterado. “Temos apoiado mais famílias que, embora estejam a trabalhar, o valor que recebem não é suficiente para colmatar as necessidades ou então em que um dos elementos do agregado está desempregado”, afirma Susana Veiga. A rede nacional Cáritas tinha já alertado, em Novembro, para “um aumento da procura por parte de famílias em situação de empregabilidade”.

Susana Veiga explica que as pessoas procuram “apoio mensal não só ao nível de alimentos, mas também de roupa, artigos de higiene e pontualmente de limpeza”. Actualmente, a LBV está a apoiar 250 famílias em Lisboa, 30 em Braga, 50 em Coimbra e até 270 famílias no Porto.

A ajuda que a LBV fornece depende também dos produtos que consegue arrecadar, contando com o apoio de várias empresas, hipermercados, colaboradores e benfeitores. “Fazemos aqui a triagem dos alimentos para que seja possível dar às nossas famílias um cabaz com a maior variedade possível.” No Natal, o cabaz “vai mais reforçado” e nas instalações da LBV as caixas de bolo-rei já estão preparadas para serem distribuídas.
"As famílias precisam deste apoio quase no imediato"Susana Veiga, assistente social da Legião da Boa Vontade

Susana Veiga acredita que a procura vai continuar a aumentar e concorda que “as instituições têm de ter capacidade de se adaptar”, porque, quando vão ao seu encontro, as “famílias precisam deste apoio quase no imediato”.

“A vida está muito cara”

Lurdes Ferreira, de 63 anos, é uma das pessoas que a LBV ajuda mensalmente. Está desempregada há mais de uma década e vive há sete anos no Bairro do Regado, no Porto, cujos prédios, brancos e acinzentados, condizem com o dia que está chuvoso e igualmente pálido. No bloco 12, Lurdes abre a porta do prédio onde vive e começa a subir os andares até chegar ao seu apartamento. “Custa-me muito subir estas escadas”, confessa, ofegante.

A sua casa é pequenina, mas está impecavelmente decorada com naperões brancos, plantas e quadros que Lurdes foi arranjando. A vizinha do lado deu-lhe a cómoda e a mesa-de-cabeceira que estão no quarto, assim como um microondas. “Esse sofá também me deram. Aquele quadro encontrei na rua”, conta.

Lurdes recebe cerca de 143€ de rendimento mínimo e paga 11,40€ de renda, mais as contas da luz e da água. Vale-lhe a ajuda da LBV, que todos os meses lhe fornece as mercearias. “Dão-me arroz, massa, uns queijinhos, iogurtes, leite, carne, fruta, hortaliça, feijão e, na altura do Natal, também dão uns chocolatinhos e uns doces.”

Além disso, é “muito poupada”: “Quando eu tomo banho, meto a água num balde e ponho só um fio de água quando lavo as mãos e a cara. Só acendo a luz para ir à casa de banho e cozinhar à noite.”

O dinheiro que lhe sobra serve para comprar, “de vez em quando, leite, ovos ou uma coxa de frango”, assim como produtos de limpeza, mas o aumento dos preços não ajuda. “A vida está muito cara.” O que resta serve ainda para comprar comida para as duas gatas, pretas com manchas brancas, que resgatou da rua. “As minhas meninas são a minha companhia”, confessa, enquanto uma delas dorme no seu colo.
“Deus toca sempre no coração de alguém para me ajudar. Mas nem toda a gente tem tido a mesma sorte"Lurdes Ferreira

A ajuda vem de vários sítios. A sua vizinha, por exemplo, “põe sempre um saco de batatas à porta” e deu-lhe autorização “para ir lá tirar quando quiser”. “Até tive necessidade de umas botas e uns ténis e a LBV também me deu”, afirma, enquanto suspira. A cada dois meses, Lurdes recebe também cerca de 40€ da Segurança Social para ajudar com a medicação.

“Deus toca sempre no coração de alguém para me ajudar”, diz Lurdes. “Mas nem toda a gente tem tido a mesma sorte. O mundo está um caos, porque vê-se muita gente necessitada.”
Deixar contas para o mês a seguir

Voltando a Lisboa, Rita Vale de Almeida, assistente social da junta de freguesia de Carnide, admite que, nos últimos meses, tem assistido a um “aumento significativo dos pedidos de apoio”. Desde Setembro, faz “uma média de 50 atendimentos por mês”.

A junta distribui um cabaz mensal de alimentos (cedidos pelo Banco Alimentar de Lisboa e por alguns hipermercados da zona) a cerca de 60 agregados familiares e, embora “a esse nível não tenha aumentado muito — até porque os critérios são rigorosos, porque não podem ter um banco alimentar sem fim” —, observa-se um acréscimo no número de pessoas que lá se dirigem para pedir outros tipos de apoio. “As pessoas gastam mais no supermercado e evitam pagar aquelas coisas que podem deixar para o mês a seguir.”

A maioria dos que recebem já usufrui de apoios e habita nos bairros sociais da Horta Nova e Padre Cruz, nomeadamente “idosos, pessoas sozinhas e que ficaram de repente sem trabalho ou mais isoladas”. Mas também “aparece um caso ou outro que teve uma situação emergente na vida”, além de “muitas pessoas vindas da Ucrânia que estão sem chão”.

A Junta de Freguesia de Carnide trabalha em parceria com outras instituições, nomeadamente com a Santa Casa da Misericórdia, até mesmo para evitar que haja apoios duplicados. Neste momento, tem à disposição o Fundo de Emergência Social, um apoio financeiro para medicamentos, rendas, contas, alimentação, entre outros. Há cerca de dois meses, recebeu também um novo “apoio extraordinário e de transição” da câmara municipal ligado à parte alimentar “para apoiar as pessoas que, nesta fase, estão a sentir alguma dificuldade, dado o problema da inflação”. Este novo apoio está ainda em fase inicial e “não vai passar só pelo Banco Alimentar”, havendo a possibilidade de serem atribuídas “refeições confeccionadas ou recorrer a parceiros da freguesia”.
"O mundo está um caos porque vê-se muita gente necessitada"Lurdes Ferreira
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“As conservas e o arroz acabaram-se lá em casa”

Foi a Junta de Freguesia de Carnide que também valeu a Sérgio Cristino, de 48 anos, que reside no Bairro Padre Cruz. Era trabalhador independente, mas em Março deste ano cessou a actividade e foi então que o pesadelo começou. Tinha uma dívida à Segurança Social há cerca de cinco meses, “porque o dinheiro não chegava”, e suspenderam-lhe o subsídio de cessação de actividade, tendo estado oito meses sem qualquer tipo de rendimento.

Quando tal aconteceu, Sérgio começou “a disparar em todas as direcções”, para pedir ajuda financeira, e viu-se obrigado a pedir apoio alimentar pela primeira vez. “Nunca mais vinha subsídio nenhum e as conservas e o arroz acabaram-se lá em casa”, explica.

A junta de freguesia entrou em contacto com uma assistente social da Santa Casa da Misericórdia, que encaminhou Sérgio para o centro de dia no cimo do Bairro Padre Cruz, todos os dias à hora de almoço, para receber uma refeição. “Era uma ajuda que eu agradecia muito, mas [a obrigação de estar lá a determinadas horas] ia-me prender, porque eu precisava de procurar trabalho e resolver estas situações e tinha de me dirigir a montes de lugares”, afirma. E prossegue: “Se fosse chamado para algo do centro de emprego, ia falhar e ficar sem refeição.”

Durante este período difícil da sua vida, Sérgio teve “ajudas de amigos que têm outro apoio alimentar”. “Por incrível que pareça, às vezes, as pessoas que estão a passar pior do que nós são aquelas que nos ajudam.” Entretanto, também foi arranjando “alguns trabalhos e uns trocos aqui e ali para ir conseguindo sobreviver” e pediu dinheiro emprestado. Em Novembro, quando voltou a receber finalmente o subsídio de cessação de actividade, “o dinheiro desapareceu logo”, porque teve de pagar as dívidas.

Sorrindo de nervoso, Sérgio admite que um sentimento de revolta se apoderou de si e critica toda a burocracia e a forma como algumas instituições o trataram — “ajuda todos podemos precisar”. Além disso, destaca a demora em reavaliarem o seu caso, mesmo depois de ter conseguido pagar a dívida à Segurança Social por volta de Maio. Neste momento, a sua situação está mais estabilizada e a sua “luta agora é outra: arranjar um emprego”.
"Às vezes, as pessoas que estão a passar pior do que nós são aquelas que nos ajudam"Sérgio Cristino
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Mas a vida tem sido difícil para muitos. “Acho que há gente a precisar e que tem vergonha de pedir; gente que pede e, se calhar, não tem a ajuda d que precisa; gente que tem ajuda e que a desperdiça; e gente que precisa de ajuda e não sabe como pedir”, afirma Sérgio. A conclusão é uma: “Estamos todos no mesmo barco.”