Entrevista Em Alta Voz a Pedro Matos, coordenador de emergência na agência da ONU.
Engenheiro do território transformado em profissional humanitário com vasto percurso internacional. Pedro Matos trabalha frequentemente com o Programa Alimentar Mundial. Do Darfour ao Bangladesh, de Moçambique ao Mali, do Quénia à Ucrânia, este português - coordenador de emergência na agência da ONU que recebeu o Nobel da Paz faz esta sexta-feira um ano - é um profundo conhecedor do modo como o mundo pode alimentar mais gente. E bem necessário é. A pandemia e a guerra na Ucrânia fizeram aumentar de forma dramática as necessidades alimentares no planeta: "antes da pandemia, os 350 milhões de pessoas (em situação alimentar mais grave) eram 130 milhões". O grande salto da fome no mundo "foi com a contração da economia mundial". No total, assegura, Pedro Matos, "são 850 milhões de pessoas que ou já cortaram na sua capacidade de se alimentarem ou já não podem mesmo, de todo, alimentar-se".
Como vê o atual momento de emergência alimentar no mundo, face ao que tem estado a acontecer na Ucrânia desde 24 de fevereiro?
Com alguma preocupação, não só com a Ucrânia, mas também ainda com a Covid. O mundo estava a fazer grandes progressos no sentido dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, nomeadamente da fome-zero. Afastou-se, entretanto, muito da fome-zero, mas também de imensos outros Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, que regrediram várias décadas. Mas o da fome-zero regrediu consideravelmente. Neste momento, temos oito mil milhões de pessoas no mundo e 10%, 800 milhões, estão em insegurança alimentar, em menor ou maior grau. Desses 800 milhões, 50 milhões estão à beira da fome e em risco de morrerem nas próximas semanas ou meses.
No Programa Alimentar Mundial há uma escala que vai de um a cinco para classificar a situação alimentar das pessoas. Como é que se explica?
Um e dois é normal, significa que são pessoas que se conseguem alimentar, o três são pessoas que começam a não conseguir comprar tudo aquilo que costumavam ou a ter de saltar refeições. O quatro significa que as pessoas têm de vender bens, podem ser joias ou animais de criação, podem ter de começar a vender o corpo - a prostituição é um problema muito grave em várias regiões do mundo -, e o cinco são pessoas que já não têm nenhum mecanismo de segurança, sofrem de má nutrição severa e estão à beira de morrerem nas próximas semanas ou meses. E o mundo tem 50 milhões de pessoas nessa categoria cinco, tem 300 milhões de pessoas na categoria quatro, e mais 500 milhões na categoria três. No total, cerca de 850 milhões de pessoas já começaram a cortar na sua capacidade de se alimentarem ou já não conseguem de todo fazê-lo.
Em que países estão esses 50 milhões que já se encontram no nível cinco, ou seja, que já passam mesmo fome?
Estão muito espalhados e há alguns países que têm regiões muito más e outras que não são tão más, é quase um mosaico. Temos o Afeganistão numa situação muito dramática - estava muito dependente de ajuda internacional e com a tomada de poder dos talibãs muitos dos fluxos de ajuda foram cortados. Muito daquilo que era a garantia da segurança alimentar ficou afetado. O Iémen também continua numa situação terrível: mais de metade da população do país está nesta situação.
Mas aí há guerra...
Sim, aí há guerra, mas mesmo nas zonas onde não há, por exemplo, se uma zona tem um mau ano agrícola ou um período de insegurança que impedem as pessoas de plantarem, o facto de haver guerra - e há cerca de 30 frentes ativas -, impede que os mercados reabasteçam e façam trocas entre eles. Mesmo que a guerra não afete todas as partes de um país diretamente, afeta indiretamente a capacidade de os mercados escoarem. E além do Afeganistão e do Iémen, também a República Democrática do Congo está numa situação grave.
Sobretudo onde a guerra continua sistematicamente é onde há mais fome?
Sim, onde a guerra continua e, neste momento, também o Corno de África, pois toda a Somália, o leste da Etiópia e o leste do Quénia têm a maior seca desde os Anos 80 e do Live Aid e do We Are the World. Aí já temos cerca de 350 mil pessoas na categoria cinco.
Eram precisos dez Bob Geldof hoje...
Eram precisos dez Bob Geldof nesta altura, mas nessa época morreram muitas centenas de milhares de pessoas e, neste momento, estamos na mesma situação no Corno de África.
No Congo, a região dos grandes lagos é muito fértil e demograficamente é muito dinâmica, precisamente por ser planalto e de agricultura fácil. Isto significa que, muitas vezes, não é a escassez da natureza que faz o drama, é mesmo a ação humana...
É. E no caso do Leste do Congo têm a infelicidade de terem sido dotados de muitos recursos minerais, além dos recursos férteis da agricultura. O mundo tem mais do que comida suficiente para se alimentar. Isto é tipicamente um problema de onde é que essa comida existe e a que preço está disponível. Não é um problema de escassez de capacidade produtiva.
Nesta altura, o Programa Alimentar Mundial consegue alimentar a mesma quantidade de pessoas que alimentava o ano passado?
Os doadores têm continuado a aumentar as suas contribuições para o Programa Alimentar Mundial, mas as necessidades é que aumentaram a um ritmo muito maior. Antes da pandemia, os 350 milhões na categoria quatro e cinco, eram 130 milhões.
Estamos a falar de necessidades graves de alimentação que aumentaram de 130 milhões de pessoas para 350 milhões de pessoas.
O grande salto foi com a pandemia. No espaço de dois anos, com a grande retração da economia mundial, os países começaram a voltar-se para dentro e houve muito menos trocas comerciais, o que aumentou imenso os preços. Houve uma grande retração da economia mundial que deu o grande salto de 130 milhões para 270 milhões e a guerra na Ucrânia, nomeadamente pela falta de cereais ucranianos e russos e pela falta de fertilizantes russos, deu o novo salto para os 350 milhões. No entanto, achamos que ainda não vimos o pico desta curva que deve chegar algures em 2023.
É expectável que ainda aumente?
Sim.
Esta guerra entre a Ucrânia e a Rússia, além de todos os dramas associados, tem esta particularidade de serem os dois piores países do mundo para estar em guerra, na medida em que o conflito afeta seriamente a segurança alimentar mundial. A própria guerra e as sanções associadas têm um impacto global?
Sim, o impacto é global. O Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas comprava metade dos cereais à Ucrânia. porque eram os mais acessíveis e permitiam-nos esticar os nossos euros. Só ir buscar a outras fontes de cereais está a custar-nos mais 70 milhões de euros por mês. O problema é que todos os países para os quais a Ucrânia e a Rússia exportavam também têm de ir à procura de cereais nas mesmas fontes. Portanto, temos uma distorção da curva da oferta e da procura em que toda a gente está a tentar ir buscar cereais.
O Programa Alimentar Mundial está a tentar concorrer, para comprar a preços razoáveis, com os próprios mercados?
Sim, e isto é só o PAM, porque havia países que estavam quase 100% dependentes de cereais da Ucrânia e da Rússia.
O Líbano é um desses casos?
O Líbano, a Eritreia, a Tunísia, todos estes tinham mais de 50% das suas importações de cereais dependentes da Ucrânia e da Rússia.
Isso significa que mesmo em países onde não estejamos a falar de situações na escala quatro ou cinco, devido à debilidade de abastecimento, pode haver pessoas a entrar no nível três?
Sim. O que achamos, e porque esta é uma escala que vai piorando, é que vai haver mais pessoas a entrarem no total dos 800 milhões que englobam a escala três, quatro e cinco, vai haver mais pessoas a entrar nos 500 milhões do nível três, e muita gente a passar do nível três para o quatro. E naturalmente muitas pessoas que estão na escala quatro vão passar a estar na cinco, o que é muito grave, porque são pessoas que estão já em fome e estão à beira da morte.
Há pouco referiu os oito mil milhões de pessoas no mundo, número que a própria ONU oficializou há uns dias, mas também disse que não há falta de capacidade de produção de alimentos no mundo. O problema então é que até há países que produzem em excesso, que produzem muito mais até do que a sua população necessita, e como não há justiça na distribuição - seja pela natureza ou pela eficácia de governação -, o mercado global tem de funcionar, se não haverá sempre escassez algures no mundo?
Sim. Por um lado, há essa questão do funcionamento do mercado e elevar as pessoas que estão em situação de pobreza para uma situação em que possam comprar a comida que existe nos mercados. Porque em muitos países, não é uma questão de disponibilidade de comida, é uma questão do preço da mesma. Há também um grande problema de comermos todos muita carne, porque muitos dos cereais que podiam estar a ser usados para alimentar pessoas, estão a ser utilizados para alimentar gado. Para produzir um quilo de bifes, precisamos de 50 quilos de trigo, portanto, muito deste trigo podia ser usado diretamente para alimentar as pessoas. Além de que a maior parte das pessoas do mundo que não tem dinheiro para comprar carne, poderia comer este trigo. Mesmo com a situação que temos hoje, podíamos alimentar toda a gente, e se todo o mundo fizesse um esforço para consumir um bocadinho menos de carne, a quantidade de cereais disponíveis para alimentar as pessoas seria mais do que suficiente. Não é um problema de capacidade produtiva do mundo, é um problema de onde é que a comida existe, onde está a ser usada, e se está a chegar a preços acessíveis às pessoas que mais precisam.
É uma questão de educação? A próxima geração será mais capaz de comer menos carne e contribuir para uma melhor distribuição de recursos no mundo?
Penso que sim. Penso que muitos de nós ainda estamos com a cabeça na geração em que comer carne era um luxo e, agora, que demos o salto para podermos comer carne, ainda não nos apercebemos de que, lá porque podemos, não temos de comer. E eu também sou culpado disso, tenho tido mais cuidado e tentado reduzir o meu consumo de carne, especialmente de vaca que tem uma pegada muito grande no clima e na quantidade de cereais necessários para produzir carne de vaca.
Dizer isso a populações que estão a passar fome é mais difícil?
Claro. E que aspiram a poder comer mais carne do que comem e com toda a legitimidade. Mas também não é por aí que se vai resolver o problema da insegurança alimentar mundial, é mais uma escolha individual, que ajuda a não tirarmos tantos cereais do consumo direto. O problema principal é não conseguirmos fazer o mercado funcionar e as pessoas, em várias zonas do mundo, não terem rendimentos para conseguirem comprar a comida que está disponível nos seus mercados.
A forma de funcionamento da assistência alimentar através do PAM foi mudando ao longo dos anos. Atualmente, já não distribuem tantos alimentos, usam também dinheiro entregue às pessoas necessitadas. A que se deveu essa mudança de paradigma?
Foi uma mudança principalmente nossa. Tínhamos muito a perspetiva de "sabe-se lá o que as pessoas fazem com o dinheiro", uma ideia muito paternalista, porque até ao Estado, que nos dá Abono de Família, não aceitamos que nos diga onde é que devemos usar esse dinheiro. E, de facto, as evidências e os dados mostram que as pessoas que realmente precisam, gastam bem o seu dinheiro. Portanto, esta mudança de mentalidade de que o dinheiro não vai ser mal gasto, foi uma mudança de mentalidade do mundo humanitário e também dos países doadores que fazem este desenvolvimento. Demorou cerca de dez anos até haver evidência científica suficiente para demonstrar que o dinheiro é uma ótima forma de ajudar as pessoas.
Agora distribuem menos alimentos e mais dinheiro?
Sim. O PAM alimenta cerca de 120 milhões de pessoas todos os dias e um terço dessas pessoas já recebem a ajuda através de transferências monetárias. Ou seja, damos transferências monetárias às pessoas para que depois possam ir comprar o que mais precisam.
Como é que isso funciona?
Temos vários modelos consoante os locais. Por exemplo, num modelo de muita inflação, não nos permite que demos dinheiro livre, porque se dermos 50 quilos de comida a uma família e passarmos a dar o equivalente a esses 50 quilos em dinheiro, num contexto de muita inflação, dois ou três meses depois o mesmo dinheiro já só compra 35 quilos. Há uma série de contextos em que não se pode fazer isto. E o que fazemos é negociar com os lojistas preços fixos, isto é, o PAM é que faz esta fixação de preços com os lojistas e depois damos vouchers às pessoas. Os vouchers equivalem a quilos ou a dinheiro, mas garantimos que esse dinheiro compra a mesma quantidade que receberiam se lhes entregássemos em géneros. Temos uma panóplia de soluções de transferências monetárias que fechamos ou abrimos mais, consoante o mercado esteja mais ou menos preparado para as pessoas receberem dinheiro.
Os resultados dessa mudança têm sido positivos?
Muito positivos. Não só nas famílias que têm muito mais dignidade, porque a ideia de ir com um cartão do PAM comprar a uma loja - numa experiência muito mais parecida com a que teriam se não estivessem naquela situação -, é uma experiência muito mais digna. Mas também permite que aquela família se adapte às suas circunstâncias individuais. Isto é, damos cinco itens iguais a toda a gente, cereais, lentilhas, sal, óleo e açúcar, independentemente de, se calhar, uma família não precisar tanto de uma coisa ou necessitar mais de outra. Portanto, isto permite que as famílias escolham qual é o uso que vão dar ao seu dinheiro. Além disso, o efeito multiplicador na economia que detetámos e investigámos, é enorme. Por exemplo, no Uganda, detetámos que por cada euro que damos às pessoas, tem um efeito multiplicador de quase três euros na economia local.
Quanto é que custa alimentar uma família através do PAM?
Em muitos países onde trabalho, nomeadamente no corno de África, à volta de 15 euros por pessoa e por mês, já com os nossos custos todos incluídos. Portanto, é meio euro por dia e já inclui salários e tudo mais. Com 15 euros por mês estamos a ajudar a alimentar uma pessoa durante um mês.
Na relação que têm com as famílias, seguem aquela estratégia de privilegiarem a mulher ou isso depende muito da cultura do país onde estão?
Temos um princípio de privilegiar as mulheres, não tanto porque tomem melhores opções, mas porque foram arredadas do poder de decisão dessas opções. Fazemos uma espécie de discriminação positiva para as trazer para dentro do processo de decisão. Quando as pessoas precisam muito, tomam as decisões corretas. Tradicionalmente, deixamos é metade da população do mundo de fora do poder de decisão e, portanto, muitas das nossas organizações fazem discriminação positiva para reequilibrar essa dinâmica.
Quando falamos em Direitos Humanos, e amanhã é o dia que os celebra, falamos em várias frentes, sendo uma delas o direito a comer. No entanto, o PAM acaba por também promover os direitos das mulheres de forma indireta?
Sim, não só das mulheres como de outros grupos vulneráveis. Por exemplo, se formos a um campo de refugiados em que 90% é de uma etnia e 10% de outras etnias e há claramente uma dinâmica desigual dentro do campo, procuramos reequilibrar ou dar voz aos grupos que não estariam representados. Coisas simples, como qual é o espaçamento que fazemos para criar centros de distribuição de comida, acaba por definir quantas horas é que as pessoas vão ter de andar. Isto é, se as pessoas estiverem a fazer fila para recolher comida e no fim do dia tiverem de caminhar duas ou três horas com a comida ou dinheiro que levam para casa, as mulheres, as crianças e as pessoas mais velhas, estão muito mais sujeitas a serem assaltadas. Portanto, uma decisão tão simples como qual é o espaçamento que fazemos entre centros de distribuição, pode ter um impacto enorme na proteção dos grupos mais vulneráveis dentro de uma comunidade.
Como é que se relacionam com essas comunidades?
Também dependemos muito de funcionários locais que fazem essa ponte com as comunidades. Em quase todos os países em que temos cerca de 90% de funcionários do país que estão a ajudar a sua própria população. Isto é importante, não só por causa da língua e da afinidade cultural, mas também por uma questão de justiça. Ou seja, muitos destes países já fizeram imensos avanços na educação e há muita gente que já pode fazer o trabalho que há 30 anos só podia ser feito por um estrangeiro. E muitos destes países já produzem gente qualificada o suficiente para fazermos esta nacionalização no sentido dos funcionários. Em alguns casos, os gestores intermédios ou chefes de unidade já são funcionários locais.
Falta chegar aos gestores de topo? Passa sempre aquela ideia de que, apesar de haver gente qualificada a nível local, as chefias têm sempre de ser de fora.
Isso é a prática habitual, mas é principalmente para garantirmos que as operações do PAM são semelhantes em todo o lado. Temos operações em mais de 80 países, portanto, boa parte da garantia de que todas as operações do PAM funcionam da mesma forma e de que as regras são implementadas, é fazendo as pessoas responsáveis por implementar essas regras, internacionais.
Também há opções de funcionários relacionadas com a necessidade de independência em relação aos poderes políticos e locais, partindo do princípio de que há mais garantias se forem pessoas de fora?
Nalguns postos, como finanças e recursos humanos, há uma preocupação sobre a afinidade que é criada ao longo dos anos e de as pessoas ficarem no mesmo lugar. Portanto, essas posições muitas vezes são internacionais, para garantirmos que as regras que temos são implementadas da mesma forma em todos os países.
Até que ponto a engenharia do território e a experiência na Agência Espacial Europeia ajudaram ao trabalho que faz como profissional humanitário no PAM?
A engenharia ajuda com a visão de resolver problemas, ou seja, por muito grandes ou complexos que sejam, a ideia é parti-los em vários problemas pequenos que são resolvidos e depois voltar a montar a coisa de forma coerente. Relativamente ao território, curiosamente, acabou por ser útil quando, por exemplo, estou a trabalhar em campos de refugiados e tenho de negociar com o ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados) o planeamento de um campo e onde vamos colocar os vários mecanismos, a Engenharia do Território e o Urbanismo deram-me muitas ferramentas nesse sentido. A parte da Agência Espacial Europeia é muito útil pela capacidade que as imagens de satélite têm de nos darem perspetiva e informação que não temos ao nível do terreno. Por exemplo, a seguir ao Furacão Idai, em Moçambique, quando finalmente conseguimos fazer levantar uma avioneta, ela não voava alto o suficiente para ver a extensão de todo aquele mar interior que foi criado.
Já estava em Moçambique quando em 2019 aconteceu o Furacão Idai?
Já estava em Moçambique e já estava na Beira. Vimos o furacão chegar e fomos para a Gorongosa para responder ao Idai e no dia seguinte ao furacão estávamos na Beira.
As imagens de satélite permitiram perceber mais depressa a dimensão enorme daquilo que estava a acontecer?
Sim, porque houve dez mil postos de eletricidade e telecomunicações que foram abaixo, portanto, aquela que seria normalmente a nossa forma de receber informação e perceber o problema desapareceu. Tivemos um black-out durante quase dez dias e, três dias depois do Idai bater, quando conseguimos voltar a pôr aviões no ar e tentámos ter uma ideia da dimensão da tragédia, descobrimos que os aviões não voavam alto o suficiente. O Idai acabou por criar um mar interior de 30 quilómetros por 130 quilómetros que não era visível do espaço aéreo, só era visível do espaço. Portanto, basicamente, criou um mar interno do tamanho do Luxemburgo e estando a ver de avião, o mar ia para lá da curvatura da terra. As imagens de satélite permitiram-nos perceber onde estava o limite das cheias, para onde tínhamos de enviar equipas para cada uma das margens desse lago, e depois sobrepor isso com toda a informação que o governo moçambicano já tinha de clínicas e escolas, para perceber quantos serviços básicos tinham sido afetados e o que tínhamos de repor.
Atualmente, critica-se muito a ONU pelas chamadas bizantinices no Conselho de Segurança e pelos vetos sucessivos, o que dá uma ideia de inoperância, mas na verdade, as agências no terreno não param de funcionar. Quando avalia as Nações Unidas, mesmo com todos os seus defeitos, é uma organização que não tem alternativa?
Tem, mas praticamos a arte do possível, não a arte do ideal. Até porque mesmo a arte do ideal só seria ideal para um dos lados, a arte do possível é aquela em que ninguém fica muito contente, mas também ninguém fica muito afetado.
É preferível haver uma organização internacional com estas deficiências do que não haver nenhuma?
Sim, é. A ONU foi fundada em 1945, mas tem as suas origens na fracassada Liga das Nações, criada logo a seguir à Primeira Guerra Mundial, quando os países sentiram necessidade de se organizarem e terem uma conversa que permitisse resolver diplomaticamente questões que durante centenas ou milhares de anos só se resolveram com guerras. E por muito que nos pareça que o mundo está terrível, com a ONU os conflitos têm-se tornado menores e mais localizados, em comparação com a Segunda Guerra Mundial. E há muita desescalada de hostilidades no Conselho de Segurança, apesar de parecer que não.
Vemos, por exemplo, que, na luta contra a poliomielite, os funcionários da OMS são às vezes atacados por grupos fundamentalistas nos países em que estão a atuar. Mesmo com todos estes riscos, há uma organização que insiste em financiar e enviar pessoas e os resultados vão acontecendo. Sente que as populações olham para vocês como uns seres estranhos que aparecem ali e ajudam, ou têm noção de que há uma organização e uma solidariedade internacional que vem em seu socorro?
Creio que a maior parte das agências das Nações Unidas estão no terreno há muitos anos e, por isso, somos um nome tão familiar como o Ministério da Saúde ou da Educação do próprio país. A maior parte das pessoas habituaram-se a ver-nos como parte da arquitetura local. Há aqui dois níveis: um deles, é a parte diplomática entre Estados que é feita a nível de Nova Iorque, e as agências das Nações Unidas têm os seus próprios países-membros e os conselhos executivos. Ou seja, os próprios países definem a sua política para esse setor dentro da agência e muitas vezes há mais consenso a nível das agências especializadas do que em Nova Iorque. As agências conseguem fazer muito mais trabalho do que se as pessoas apenas seguissem o trabalho do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Creio que se consegue fazer muita coisa e também houve uma evolução ao longo dos anos em que, cada vez mais, o trabalho das Nações Unidas não é definido por fora, mas sim pelos países. Isto é, cada vez mais os países dizem o que querem, de forma muito balizada com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável para 2030. Há cada vez menos imposição de fora e cada vez mais uma ideia daquilo que os países querem e onde precisam de ajuda até conseguirem tomar conta da parte que ainda não conseguem.
Quando falamos de insegurança alimentar, pensamos muito no tal grupo de países de zonas semidesérticas, como em África e algumas partes da Ásia, mas não pensamos nos países de sucesso. Um exemplo de país de sucesso, nas últimas décadas, é a China com grandes crescimentos económicos e a caminho de ser a maior economia mundial. Mas a China tem uma relação entre área cultivável e população que é das piores do mundo, portanto, historicamente, tem um equilíbrio alimentar muito precário. Nos últimos anos tem mostrado uma estratégia de arrendamento de terras em África, de compra de multinacionais de fertilizantes e de grandes fábricas de produção de carne enlatada. Isto significa que qualquer governo, mesmo num país que é uma potência económica como a China, tem de ter a preocupação alimentar como prioridade?
Sem dúvida. A China tem feito avanços tremendos e os objetivos do milénio foram muito atingidos devido à China, por ter conseguido tirar quase metade da sua população da pobreza. Isso foi sem dúvida um enorme sucesso e contribuiu em grande parte para cumprir esses objetivos. Esse esforço que a China faz é legítimo: nem todos os países do mundo são autossuficientes em termos de alimentação e à medida que entram no setor terciário e serviços, muitas vezes são cada vez menos autossuficientes. Mas o importante numa economia globalizada é que o bolo dê para todos, isto é, que a segurança alimentar de um país não vá retirar a segurança alimentar a outro. Mas a procura de segurança alimentar, dentro ou fora, é uma aspiração legítima dos países.
Qual é a maior ameaça à segurança alimentar atualmente: conflitos como o que vemos na Ucrânia ou as alterações climáticas?
As duas coisas. Diria que a sociedade globalizada que construímos, de preços muito baixos em que conseguimos ter um cheeseburger por um euro, só é possível com uma sociedade altamente ligada em todo o mundo. Ou seja, em que diferentes partes desse cheeseburger são produzidas em diferentes partes do mundo e depois trazidas muito eficientemente para um só sítio. Isso significa que qualquer alteração, como a que está a acontecer na Ucrânia, tem um efeito em todo o lado. Não sei se isso era óbvio há uns anos, penso que era inevitável. Por um lado, penso que é intencional, porque é aquela ideia de que, se o mundo estiver mais ligado economicamente, é menos provável que se vá para guerra. Isto é, se o custo económico da guerra for muito grande, se calhar há menos países a querer ir para a guerra, embora agora pareça que nem sempre é esse o caso. Mas parece-me que esta é a arquitetura de um mundo globalizado, o que significa que havia conflitos do outro lado do mundo que durante quase todo o século XX não tinham impacto na segurança alimentar da maior parte dos países, mas agora têm. Isso é verdade, mas por outro lado, as alterações climáticas espremem os recursos existentes de uma forma muito clara. Reduzem a quantidade de espaço disponível para produção e vão provocar que centenas de milhões de pessoas tenham de se deslocar para outros sítios, onde os recursos já são limitados. Sem dúvida, as duas coisas juntas vão ter um efeito multiplicador muito dramático.
Onde é que foi e como é que foi viver na Ucrânia alguns meses este ano, já em guerra?
Foi muito interessante. Estive lá de março a maio e, de facto, ver um país todo focado numa causa que é a de proteger-se e apoiar as pessoas que estão a fugir da guerra ou a focar-se naquela que é a estratégia do seu país neste conflito, foi bastante impressionante. Estive a montar as operações de distribuição de dinheiro aos deslocados que vinham das frentes de combate, que vinham da zona central da Ucrânia, a zona que está entre Kiev e Odessa. Foi impressionante ver a solidariedade dos ucranianos, não só em relação ao foco daquilo que tinham de fazer pela sua parte neste conflito, mas também para com as pessoas que estavam fugidas da guerra. E a maior parte delas eram russófonas porque quase toda a guerra está a acontecer na parte russófona da Ucrânia, as pessoas que fogem falam russo. Esta solidariedade com pessoas que, visto de fora, podiam ser consideradas "do outro lado" foi muito impressionante. Em qualquer aldeia onde fosse, todas as famílias estavam a alojar uma outra família, tinham posto os miúdos nas aulas virtuais da covid para colocarem as Escolas Primárias como centros de acolhimento de deslocados, e havia uma sensação de desígnio da aldeia de que era isto que tinham de fazer para ajudar as pessoas que tinham sofrido mais do que elas. E foi também bonito ver isso nos países à volta, alguns que não esperaríamos, como a Hungria e a Polónia, que tiveram uma atitude muito diferente da que tiveram no último fluxo de refugiados, mesmo quando os números pareciam estar a tornar-se insustentáveis, com dois milhões na Hungria e cinco milhões na Polónia. Reconciliou-me um pouco com a Europa e com a nossa capacidade de sermos mais solidários para com as pessoas que precisam de ajuda.
Este 10 de dezembro é o dia da Declaração Universal dos Direitos Humanos, é o dia da entrega do Nobel da Paz de 2022 a cidadãos e organizações ucranianas. O Nobel da Paz de há dois anos foi para o PAM. Tem impacto?
Esse impacto é importante. Acho que a maior parte das pessoas não sabia que o PAM existia ou pensavam que só dávamos comida às pessoas que precisavam. Isto deu-nos palco para nos focarmos mais nas causas da segurança alimentar, com os conflitos e com as alterações climáticas, que faz com que muitos milhões de pessoas migrem ou se tornem refugiadas, ou que muitos milhões de pessoas percam a capacidade de se alimentarem. Isto permite-nos pôr o foco nas causas que fazem com que tenhamos de vir alimentar 120 milhões de pessoas. Ou seja, se pudermos intervir nas causas, mais tarde vamos deixar de ser precisos quando houver um conflito ou desastre natural e esse era um palco que não tínhamos antes do Prémio Nobel.