26.12.22

Maria ensina na escola onde aprendeu que ser surda não a impede de nada

Samuel Silva (texto),Paulo Pimenta (fotografia) e Teresa Miranda (vídeo), in Público online

A mais jovem professora da Escola João Araújo Correia, na Régua, quer “fazer a diferença” com crianças. Na Eugénio de Andrade, no Porto, surdos e ouvintes aprendem juntos desde o pré-escolar.

Os gorros natalícios com que os alunos cobriram a cabeça sobressaem no contraste com o fundo verde. Dinis opera a câmara, em frente da qual se põe Rafael. É o mais expressivo dos cinco rapazes desta turma da Escola João Araújo Correia, em Peso da Régua. Tem olhos muito claros e gestos muito vincados. Com as mãos, repete a frase: “Larga o jogo, vem aí o Ano Novo.”

A turma está a criar um material bilingue, em português e língua gestual portuguesa (LGP), sobre “isolamento social”, para ser divulgado na página da Internet onde este agrupamento reúne materiais didácticos para alunos surdos e ouvintes. “As mãos não são só para jogar, são para comunicar” é outra das mensagens do vídeo.

“Temos visto que os jovens estão muito focados nos jogos, especialmente depois da pandemia. A ideia foi falarmos um pouco disso e de como evitá-lo”, contextualiza Maria Oliveira. É a professora dos cinco rapazes que compõem esta turma. Alunos e docente são surdos e a LGP é a sua língua materna. A professora dá hoje aulas nas mesmas salas onde aprendeu.

O PÚBLICO conheceu Maria Oliveira em 2018. Foi um dos 44 alunos que responderam ao exame nacional de Português Língua Segunda (PL2), uma prova feita especificamente para alunos surdos, que nesse ano foi realizada pela primeira vez. Com as notas desse ano, entrou na licenciatura em Comunicação e Design Multimédia, do Politécnico de Coimbra, mas não gostou da experiência.

“Fiz uma pausa. Tive de pensar melhor e percebi que o queria mesmo era ser professora de LGP.” No ano seguinte, mudou de curso, e completou a licenciatura de ensino de Língua Gestual Portuguesa na Escola Superior de Educação de Coimbra. Agora, está a fazer o mestrado, que continua a ser a qualificação mínima obrigatória para entrar na carreira docente.

No entanto, no início deste ano, de modo a responder à escassez de docentes que tem afectado as escolas, o Ministério da Educação passou a permitir que pessoas que tivessem uma licenciatura no currículo fossem contratadas pelos agrupamentos, quando não houvesse um docente disponível. A Escola João de Araújo Correia abriu, logo em Setembro, um horário incompleto, de 11 horas lectivas, com essas condições, destinado à substituição de uma professora que está em licença de maternidade.

Maria Oliveira concorreu, “porque sim”. “Nunca pensei que iria entrar. Acabei agora o curso, há colegas com mais tempo de serviço, mas como tenho uma média da licenciatura de 18 valores, fui eu a escolhida.” Quando soube que ia ser professora na mesma escola onde foi aluna ficou “emocionada”.

“Mandaste-me uma mensagem”, acrescenta Joana Silva. É uma das intérpretes de LGP na escola de Peso da Régua. Conheceu Maria no 7.º ano e hoje acompanha as suas aulas. Trabalha naquela escola há dez anos e viveu de perto a melhoria das condições de trabalho com os alunos surdos. “Há uns anos, quando tudo corria bem, eu era colocada em Outubro”, recorda. Agora, pertence ao quadro da escola.
Faltam materiais

O agrupamento João Araújo Correia é a escola de referência para alunos surdos em todo o interior Norte. Alguns dos estudantes vêm diariamente de localidades como Tarouca, a 20 quilómetros, ou Chaves, que fica a quase 90. No entanto, não integra formalmente a rede de referência para a Educação Bilingue, criada pelo Ministério da Educação em 2008.

Esta rede foi criada pelo Decreto-lei n.º 3/2008, que mudou a forma como a escola encara os alunos com alguns tipos de deficiências, concentrando nestes estabelecimentos de ensino recursos humanos – como professores de LGP, intérpretes e terapeutas da fala – e físicos para dar respostas às necessidades educativas específicas. Há 17 escolas nessa lista que, na região norte, inclui apenas estabelecimentos de ensino localizados no Porto e em Braga.

Apesar da melhoria de condições, o trabalho dos professores de Língua Gestual ainda é “muito duro”. “O ministério não nos faculta materiais, somos nós que temos de os criar”, queixa-se Maria Oliveira. Quase todos os recursos que usa na sala de aula foram desenvolvidos por si ou enquanto professora ou enquanto aluna. “Há muitos materiais que fiz com a Filipa e o Diogo, que eram meus colegas, e que continuam aqui. Isso também me ajudou a tornar a profissional que sou hoje”, recorda com um sorriso.
Todos os dias a chamada é bilingue, vocalizando os nomes civis de cada um e usando o respectivo nome gestual 

Maria dá aulas de LGP e Cidadania a turmas do 7.º e 8.º anos e faz algumas horas da semana no pré-escolar no mesmo agrupamento. “Adoro”, atira, em referência ao trabalho com crianças. “Eu sei o quanto as crianças surdas sofrem por às vezes os pais não terem sensibilidade e acessibilidade atempadamente e é muito importante nós estarmos nessa fase com elas. Nós podemos fazer a diferença.”
556 surdos

A Direcção-Geral dos Estabelecimentos Escolares contabiliza 556 alunos surdos nas escolas nacionais. A grande maioria (428) são utilizadores de LGP. Há, no entanto, cada vez mais alunos que não optam por ter Língua Gestual, porque fizeram implantes cocleares que lhes permitem aprender em ambiente oralista. Nesses casos, beneficiam do apoio de terapeutas da fala e de professores de Educação Especial.

O Ministério da Educação está a preparar as aprendizagens essenciais para a LGP, disciplina curricular para os alunos surdos que a têm como a sua língua materna, e também para o Português Língua Segunda, o Português aprendido pelos alunos surdos. As duas disciplinas têm grupos de recrutamento de docentes próprios e são ministradas nas escolas de referência.

É o caso do agrupamento de escolas Eugénio de Andrade, em Paranhos, no Porto. Integra a rede de referência para a Educação Bilingue desde 2008, mas o trabalho com surdos remonta a 1979, fruto de uma parceria com o Instituto de Surdos Araújo Porto, uma instituição criada na cidade em 1893 e ligada actualmente à Santa Casa da Misericórdia.

A classificação como escola de referência permite ter recursos humanos reforçados para trabalhar com alunos surdos: são sete professores de LGP, oito intérpretes e nove terapeutas da fala. O agrupamento tem 83 alunos surdos, do pré-escolar ao 9.º ano. Alguns estão integrados no currículo geral e outros em turmas bilingues, com currículo adaptado. Nesses casos, as turmas são mais pequenas, podendo ter no máximo dez alunos.

É o caso do 8.º S, que encontramos na aula de Educação Tecnológica. Na sala há sete alunos, acompanhados por quatro adultos: dois professores de Educação Especial, especializados na área da surdez, uma intérprete e a professora titular da disciplina. “Fazemos uma articulação entre todos”, garante Ângela Saraiva, responsável pela disciplina.

É professora há 18 anos e integra a Equipa Multidisciplinar de Apoio à Educação Inclusiva. A turma é pequena, mas tem “muitas especificidades”, pelo que precisa realmente de todos aqueles profissionais. Os sete alunos são todos surdos, mas alguns têm medidas adicionais, devido a outras deficiências. “O grande desafio aqui é efectivamente fazer uma análise dos alunos e procurar encontrar as estratégias que vão ao encontro dos diferentes grupos.”

No quadro de ardósia, o sumário das lições n.º 9 e 10 explica aquilo em que os alunos estão a trabalhar: “Representação gráfica rigorosa da estrutura de uma ponte.” Anaísa, uma das alunas, não está com meias palavras: “Odeio esta disciplina.” “Gosto de aprender, gosto de estudar”, clarifica. Mas prefere Geografia ou Físico-Química. E também LGP.

Anaísa é surda, mas tem capacidade para oralizar. Prefere, no entanto, expressar-se na sua língua primeira. “Eu prefiro estar junto dos surdos, posso comunicar melhor.” Conhece muitos dos amigos que tem na escola desde a infância, quando entrou no pré-escolar na Escola Augusto Lessa, a EB 1 do agrupamento, situada a poucos metros da escola-sede. “Com os ouvintes é diferente. Há algumas coisas que eu não percebo, porque eles falam rápido”, acrescenta.
Amor em dactilologia

Houve um dia em que, na escola onde Miguel Sousa estudava, entregaram aos alunos uma folha com o alfabeto da LGP. “Eu aprendi aquilo e já falava alguma coisa, sempre letra a letra”, conta. Chama-se “dactilologia” ao acto de dizer uma palavra em Língua Gestual caracter a caracter. Quando conheceu Diana Silva, era assim que comunicavam. “Ela é que começou depois a ensinar-me outros gestos.”

Miguel é ouvinte, Diana é surda. Namoraram, casaram e, há três anos, tiveram um filho, Gustavo. No início deste ano, a criança entrou no pré-escolar no agrupamento Eugénio de Andrade. “Foi bom ter surdos aqui. Deu-me mais confiança. Se fosse noutra escola, seria mais difícil para mim”, confessa a mãe. Já conhecia esta escola. Também estudou aqui, desde 1999, quando entrou no 5.º ano, até ter ido para o ensino superior – é licenciada em Serviço Social.

A escola do Porto tem uma longa experiência no trabalho com alunos surdos, mas Diana Silva nota diferenças positivas face ao tempo em que foi aluna. “Agora há professores de LGP e há intérpretes.” O primeiro intérprete da escola chegou, quando Diana já frequentava o 9.º ano. Antes de ter essa ajuda “era tudo mais difícil”. “O currículo também melhorou bastante face ao tempo em que andei aqui”, avalia.

A integração dos surdos é hoje outra, realça ainda. Naquela altura, as turmas “estavam completamente separadas”. Os estudantes “ouvintes ficavam de um lado, o bloco D era para os surdos. E não se juntavam”. Hoje, as duas comunidades convivem e desde cedo. Um projecto-piloto do agrupamento Eugénio de Andrade, pensado para ter a duração de três anos, juntou crianças surdas e ouvintes, em ambiente bilingue. A ideia é que os “alunos aprendam a comunicar naturalmente em língua gestual” e “socializem desde pequenos”, sintetiza a directora adjunta, Sónia Cruzeiro.

É nesta turma que está Gustavo, filho de Diana Silva e Miguel Sousa. É uma de oito crianças ouvintes na sala do pré-escolar. Alguns deles, tal como Gustavo, são filhos de surdos, comummente designado por “CODA”, acrónimo da designação inglesa Child of Deaf Adults. O termo deu título ao filme CODA – No Ritmo do Coração, vencedor do Óscar de Melhor Filme no ano passado.

Na mesma turma há sete colegas surdos. Com as 15 crianças trabalham uma intérprete e um docente de LGP, uma educadora de Ensino Especial e dois terapeutas da fala. “Isto é um luxo”, diz Teresa, a educadora titular da turma, a propósito dos recursos humanos reunidos para este projecto-piloto. Apesar do pioneirismo do cruzamento de crianças surdas e ouvintes em ambiente bilingue, o dia-a-dia da turma é “a vida normal de jardim-de-infância”. “Eles pegam-se uns com os outros, chateiam-se”, continua a educadora.

A turma passa bastante tempo fora da escola, em diferentes actividades. A cada duas semanas, por exemplo, vão à horta na Quinta do Covelo, não muito longe do estabelecimento de ensino. No dia da visita do PÚBLICO, as crianças tinham ido semear ervilhas. De galochas calçadas e capa para a chuva com o logótipo do município do Porto, sacodem a chuva e alguma terra antes de entrarem na sala, no rés-do-chão da escola. “A não ser que chova muito, vamos na mesma. A rotina é muito importante para eles.” A chamada das 15 crianças da turma, por exemplo, é feita todos os dias por um aluno diferente. E todos os dias a chamada é bilingue, vocalizando os nomes civis de cada um e usando a LGP e o respectivo nome gestual.

Diana e Miguel quiseram integrar Gustavo nesta turma onde há crianças surdas para o ajudar “a ter mais contacto com a mãe”, conta o pai. “Em casa não quero obrigá-lo a aprender LGP. Aqui, a aprendizagem é mais natural”, acrescenta a mãe. Quatro meses depois de ter chegado à escola, a criança já se expressa em língua gestual. Em casa, refere-se aos colegas de turma pelo seu nome gestual.

“E como é o teu nome?”, pergunta o pai. Gustavo atravessa a sala de aulas e vai até à cartolina onde estão os nomes de todos os alunos. Retira o quadrado colado com velcro onde está o seu nome gestual e apresenta-o: o polegar direito a passar horizontalmente sobre a sobrancelha direita. O gesto faz referência a um arranhão que tinha feito nessa zona da face, quando era mais pequeno. Os nomes gestuais fazem sempre referência a uma particularidade de cada pessoa e são atribuídos pela própria comunidade surda a cada um dos seus membros.

Tal como os pais desejavam, Gustavo é bilingue. Com o pai, os tios e os avós, que são ouvintes, oraliza. Quando fala com a mãe, só usa língua gestual. “Ele chega a casa e já faz gestos que nós nunca lhe tínhamos ensinado”, valoriza Diana Silva. Às vezes, ainda é “preciso tentar perceber”, como acontece com qualquer outra criança de três anos que está a aprender a expressar-se. “Porque ele não faz o gesto perfeito, mas já ajuda muito para que possamos comunicar.”