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26.12.22

Maria ensina na escola onde aprendeu que ser surda não a impede de nada

Samuel Silva (texto),Paulo Pimenta (fotografia) e Teresa Miranda (vídeo), in Público online

A mais jovem professora da Escola João Araújo Correia, na Régua, quer “fazer a diferença” com crianças. Na Eugénio de Andrade, no Porto, surdos e ouvintes aprendem juntos desde o pré-escolar.

Os gorros natalícios com que os alunos cobriram a cabeça sobressaem no contraste com o fundo verde. Dinis opera a câmara, em frente da qual se põe Rafael. É o mais expressivo dos cinco rapazes desta turma da Escola João Araújo Correia, em Peso da Régua. Tem olhos muito claros e gestos muito vincados. Com as mãos, repete a frase: “Larga o jogo, vem aí o Ano Novo.”

A turma está a criar um material bilingue, em português e língua gestual portuguesa (LGP), sobre “isolamento social”, para ser divulgado na página da Internet onde este agrupamento reúne materiais didácticos para alunos surdos e ouvintes. “As mãos não são só para jogar, são para comunicar” é outra das mensagens do vídeo.

“Temos visto que os jovens estão muito focados nos jogos, especialmente depois da pandemia. A ideia foi falarmos um pouco disso e de como evitá-lo”, contextualiza Maria Oliveira. É a professora dos cinco rapazes que compõem esta turma. Alunos e docente são surdos e a LGP é a sua língua materna. A professora dá hoje aulas nas mesmas salas onde aprendeu.

O PÚBLICO conheceu Maria Oliveira em 2018. Foi um dos 44 alunos que responderam ao exame nacional de Português Língua Segunda (PL2), uma prova feita especificamente para alunos surdos, que nesse ano foi realizada pela primeira vez. Com as notas desse ano, entrou na licenciatura em Comunicação e Design Multimédia, do Politécnico de Coimbra, mas não gostou da experiência.

“Fiz uma pausa. Tive de pensar melhor e percebi que o queria mesmo era ser professora de LGP.” No ano seguinte, mudou de curso, e completou a licenciatura de ensino de Língua Gestual Portuguesa na Escola Superior de Educação de Coimbra. Agora, está a fazer o mestrado, que continua a ser a qualificação mínima obrigatória para entrar na carreira docente.

No entanto, no início deste ano, de modo a responder à escassez de docentes que tem afectado as escolas, o Ministério da Educação passou a permitir que pessoas que tivessem uma licenciatura no currículo fossem contratadas pelos agrupamentos, quando não houvesse um docente disponível. A Escola João de Araújo Correia abriu, logo em Setembro, um horário incompleto, de 11 horas lectivas, com essas condições, destinado à substituição de uma professora que está em licença de maternidade.

Maria Oliveira concorreu, “porque sim”. “Nunca pensei que iria entrar. Acabei agora o curso, há colegas com mais tempo de serviço, mas como tenho uma média da licenciatura de 18 valores, fui eu a escolhida.” Quando soube que ia ser professora na mesma escola onde foi aluna ficou “emocionada”.

“Mandaste-me uma mensagem”, acrescenta Joana Silva. É uma das intérpretes de LGP na escola de Peso da Régua. Conheceu Maria no 7.º ano e hoje acompanha as suas aulas. Trabalha naquela escola há dez anos e viveu de perto a melhoria das condições de trabalho com os alunos surdos. “Há uns anos, quando tudo corria bem, eu era colocada em Outubro”, recorda. Agora, pertence ao quadro da escola.
Faltam materiais

O agrupamento João Araújo Correia é a escola de referência para alunos surdos em todo o interior Norte. Alguns dos estudantes vêm diariamente de localidades como Tarouca, a 20 quilómetros, ou Chaves, que fica a quase 90. No entanto, não integra formalmente a rede de referência para a Educação Bilingue, criada pelo Ministério da Educação em 2008.

Esta rede foi criada pelo Decreto-lei n.º 3/2008, que mudou a forma como a escola encara os alunos com alguns tipos de deficiências, concentrando nestes estabelecimentos de ensino recursos humanos – como professores de LGP, intérpretes e terapeutas da fala – e físicos para dar respostas às necessidades educativas específicas. Há 17 escolas nessa lista que, na região norte, inclui apenas estabelecimentos de ensino localizados no Porto e em Braga.

Apesar da melhoria de condições, o trabalho dos professores de Língua Gestual ainda é “muito duro”. “O ministério não nos faculta materiais, somos nós que temos de os criar”, queixa-se Maria Oliveira. Quase todos os recursos que usa na sala de aula foram desenvolvidos por si ou enquanto professora ou enquanto aluna. “Há muitos materiais que fiz com a Filipa e o Diogo, que eram meus colegas, e que continuam aqui. Isso também me ajudou a tornar a profissional que sou hoje”, recorda com um sorriso.
Todos os dias a chamada é bilingue, vocalizando os nomes civis de cada um e usando o respectivo nome gestual 

Maria dá aulas de LGP e Cidadania a turmas do 7.º e 8.º anos e faz algumas horas da semana no pré-escolar no mesmo agrupamento. “Adoro”, atira, em referência ao trabalho com crianças. “Eu sei o quanto as crianças surdas sofrem por às vezes os pais não terem sensibilidade e acessibilidade atempadamente e é muito importante nós estarmos nessa fase com elas. Nós podemos fazer a diferença.”
556 surdos

A Direcção-Geral dos Estabelecimentos Escolares contabiliza 556 alunos surdos nas escolas nacionais. A grande maioria (428) são utilizadores de LGP. Há, no entanto, cada vez mais alunos que não optam por ter Língua Gestual, porque fizeram implantes cocleares que lhes permitem aprender em ambiente oralista. Nesses casos, beneficiam do apoio de terapeutas da fala e de professores de Educação Especial.

O Ministério da Educação está a preparar as aprendizagens essenciais para a LGP, disciplina curricular para os alunos surdos que a têm como a sua língua materna, e também para o Português Língua Segunda, o Português aprendido pelos alunos surdos. As duas disciplinas têm grupos de recrutamento de docentes próprios e são ministradas nas escolas de referência.

É o caso do agrupamento de escolas Eugénio de Andrade, em Paranhos, no Porto. Integra a rede de referência para a Educação Bilingue desde 2008, mas o trabalho com surdos remonta a 1979, fruto de uma parceria com o Instituto de Surdos Araújo Porto, uma instituição criada na cidade em 1893 e ligada actualmente à Santa Casa da Misericórdia.

A classificação como escola de referência permite ter recursos humanos reforçados para trabalhar com alunos surdos: são sete professores de LGP, oito intérpretes e nove terapeutas da fala. O agrupamento tem 83 alunos surdos, do pré-escolar ao 9.º ano. Alguns estão integrados no currículo geral e outros em turmas bilingues, com currículo adaptado. Nesses casos, as turmas são mais pequenas, podendo ter no máximo dez alunos.

É o caso do 8.º S, que encontramos na aula de Educação Tecnológica. Na sala há sete alunos, acompanhados por quatro adultos: dois professores de Educação Especial, especializados na área da surdez, uma intérprete e a professora titular da disciplina. “Fazemos uma articulação entre todos”, garante Ângela Saraiva, responsável pela disciplina.

É professora há 18 anos e integra a Equipa Multidisciplinar de Apoio à Educação Inclusiva. A turma é pequena, mas tem “muitas especificidades”, pelo que precisa realmente de todos aqueles profissionais. Os sete alunos são todos surdos, mas alguns têm medidas adicionais, devido a outras deficiências. “O grande desafio aqui é efectivamente fazer uma análise dos alunos e procurar encontrar as estratégias que vão ao encontro dos diferentes grupos.”

No quadro de ardósia, o sumário das lições n.º 9 e 10 explica aquilo em que os alunos estão a trabalhar: “Representação gráfica rigorosa da estrutura de uma ponte.” Anaísa, uma das alunas, não está com meias palavras: “Odeio esta disciplina.” “Gosto de aprender, gosto de estudar”, clarifica. Mas prefere Geografia ou Físico-Química. E também LGP.

Anaísa é surda, mas tem capacidade para oralizar. Prefere, no entanto, expressar-se na sua língua primeira. “Eu prefiro estar junto dos surdos, posso comunicar melhor.” Conhece muitos dos amigos que tem na escola desde a infância, quando entrou no pré-escolar na Escola Augusto Lessa, a EB 1 do agrupamento, situada a poucos metros da escola-sede. “Com os ouvintes é diferente. Há algumas coisas que eu não percebo, porque eles falam rápido”, acrescenta.
Amor em dactilologia

Houve um dia em que, na escola onde Miguel Sousa estudava, entregaram aos alunos uma folha com o alfabeto da LGP. “Eu aprendi aquilo e já falava alguma coisa, sempre letra a letra”, conta. Chama-se “dactilologia” ao acto de dizer uma palavra em Língua Gestual caracter a caracter. Quando conheceu Diana Silva, era assim que comunicavam. “Ela é que começou depois a ensinar-me outros gestos.”

Miguel é ouvinte, Diana é surda. Namoraram, casaram e, há três anos, tiveram um filho, Gustavo. No início deste ano, a criança entrou no pré-escolar no agrupamento Eugénio de Andrade. “Foi bom ter surdos aqui. Deu-me mais confiança. Se fosse noutra escola, seria mais difícil para mim”, confessa a mãe. Já conhecia esta escola. Também estudou aqui, desde 1999, quando entrou no 5.º ano, até ter ido para o ensino superior – é licenciada em Serviço Social.

A escola do Porto tem uma longa experiência no trabalho com alunos surdos, mas Diana Silva nota diferenças positivas face ao tempo em que foi aluna. “Agora há professores de LGP e há intérpretes.” O primeiro intérprete da escola chegou, quando Diana já frequentava o 9.º ano. Antes de ter essa ajuda “era tudo mais difícil”. “O currículo também melhorou bastante face ao tempo em que andei aqui”, avalia.

A integração dos surdos é hoje outra, realça ainda. Naquela altura, as turmas “estavam completamente separadas”. Os estudantes “ouvintes ficavam de um lado, o bloco D era para os surdos. E não se juntavam”. Hoje, as duas comunidades convivem e desde cedo. Um projecto-piloto do agrupamento Eugénio de Andrade, pensado para ter a duração de três anos, juntou crianças surdas e ouvintes, em ambiente bilingue. A ideia é que os “alunos aprendam a comunicar naturalmente em língua gestual” e “socializem desde pequenos”, sintetiza a directora adjunta, Sónia Cruzeiro.

É nesta turma que está Gustavo, filho de Diana Silva e Miguel Sousa. É uma de oito crianças ouvintes na sala do pré-escolar. Alguns deles, tal como Gustavo, são filhos de surdos, comummente designado por “CODA”, acrónimo da designação inglesa Child of Deaf Adults. O termo deu título ao filme CODA – No Ritmo do Coração, vencedor do Óscar de Melhor Filme no ano passado.

Na mesma turma há sete colegas surdos. Com as 15 crianças trabalham uma intérprete e um docente de LGP, uma educadora de Ensino Especial e dois terapeutas da fala. “Isto é um luxo”, diz Teresa, a educadora titular da turma, a propósito dos recursos humanos reunidos para este projecto-piloto. Apesar do pioneirismo do cruzamento de crianças surdas e ouvintes em ambiente bilingue, o dia-a-dia da turma é “a vida normal de jardim-de-infância”. “Eles pegam-se uns com os outros, chateiam-se”, continua a educadora.

A turma passa bastante tempo fora da escola, em diferentes actividades. A cada duas semanas, por exemplo, vão à horta na Quinta do Covelo, não muito longe do estabelecimento de ensino. No dia da visita do PÚBLICO, as crianças tinham ido semear ervilhas. De galochas calçadas e capa para a chuva com o logótipo do município do Porto, sacodem a chuva e alguma terra antes de entrarem na sala, no rés-do-chão da escola. “A não ser que chova muito, vamos na mesma. A rotina é muito importante para eles.” A chamada das 15 crianças da turma, por exemplo, é feita todos os dias por um aluno diferente. E todos os dias a chamada é bilingue, vocalizando os nomes civis de cada um e usando a LGP e o respectivo nome gestual.

Diana e Miguel quiseram integrar Gustavo nesta turma onde há crianças surdas para o ajudar “a ter mais contacto com a mãe”, conta o pai. “Em casa não quero obrigá-lo a aprender LGP. Aqui, a aprendizagem é mais natural”, acrescenta a mãe. Quatro meses depois de ter chegado à escola, a criança já se expressa em língua gestual. Em casa, refere-se aos colegas de turma pelo seu nome gestual.

“E como é o teu nome?”, pergunta o pai. Gustavo atravessa a sala de aulas e vai até à cartolina onde estão os nomes de todos os alunos. Retira o quadrado colado com velcro onde está o seu nome gestual e apresenta-o: o polegar direito a passar horizontalmente sobre a sobrancelha direita. O gesto faz referência a um arranhão que tinha feito nessa zona da face, quando era mais pequeno. Os nomes gestuais fazem sempre referência a uma particularidade de cada pessoa e são atribuídos pela própria comunidade surda a cada um dos seus membros.

Tal como os pais desejavam, Gustavo é bilingue. Com o pai, os tios e os avós, que são ouvintes, oraliza. Quando fala com a mãe, só usa língua gestual. “Ele chega a casa e já faz gestos que nós nunca lhe tínhamos ensinado”, valoriza Diana Silva. Às vezes, ainda é “preciso tentar perceber”, como acontece com qualquer outra criança de três anos que está a aprender a expressar-se. “Porque ele não faz o gesto perfeito, mas já ajuda muito para que possamos comunicar.”

22.11.21

“Os surdos podem fazer tudo o que os ouvintes fazem”

Ana Cristina Pereira (Texto) e Paulo Pimenta (Fotos), in Público on-line

Carlos Alberto Silva e Alexandra Perry perderam a audição em bebés. Ele é administrativo e ela professora de Língua Gestual Portuguesa. Criaram dois filhos e têm os seus hobbies.

Quem entra na Fundação Nuno Silveira, em Gondomar, dá logo com Carlos Alberto Silva. Está na secretaria, com o nariz enfiado no computador, a fazer encomendas, a verificar pagamentos, a processar salários.

É o mais antigo funcionário da organização. Quando foi contratado, faz agora 25 anos, ainda se chamava Associação de Apoio ao Deficiente Nuno Silveira e ainda não dispunha das actuais instalações. Um complexo com lar residencial para pessoas com deficiência, centro de actividades ocupacionais, serviço de apoio domiciliário, empresas de inserção e cursos de formação profissional.

Não nasceu surdo, há 47 anos. “Estava na incubadora quando fiquei constipado e foi assim que começou a surdez. A minha mãe só deu conta aos nove meses.” Chamava por ele e pelo irmão gémeo e só o irmão virava a cabeça na sua direcção.

As portas da sua mente eram os olhos. A família inventou um código linguístico para comunicar com ele. Entrando no Centro António Cândido, no Porto, que então funcionava como uma escola exclusiva para crianças surdas, aprendeu língua gestual portuguesa.

As escolas públicas tinham começado a integrar alunos surdos. Desde 1978, nalgumas havia Núcleos de Apoio a Crianças Deficientes Auditivas. Ficavam à parte, juntando-se às ouvintes nalgumas disciplinas práticas. Carlos teve essa experiência na Escola Básica Eugénio de Andrade.

No 10.º, quando passou para a Escola Infante D. Henrique, foi integrado numa turma de ouvintes. Tinha aprendido leitura de fala, isto é, leitura labial, mas “foi complicado”. “Exigia um grande esforço e muito estudo. Tinha de estar sempre focado nos lábios do professor.” Alguns colegas ajudavam-no, emprestando-lhe os apontamentos.
Não havia intérprete na sala de aula

Foi no ensino secundário que conheceu Alexandra Perry, dois anos mais velha. Ela perdera a audição aos nove meses com uma doença viral, o sarampo. Tinham uma língua comum e uma forma semelhante de apreender o mundo e num instante ficaram encantados um com o outro.

Para ela, frequentar o secundário também era “uma luta muito grande”. “Não havia os apoios escolares de hoje. Não tínhamos intérprete na sala de aula. A primeira vez que tive intérprete foi quando entrei na Escola Superior de Educação de Coimbra. Foi um descanso.”

Um parêntesis: esta conversa está a acontecer na sala da família, em Águas Santas, Maia; o portátil está ligado e, através de videochamada, uma intérprete ajuda-nos a perceber o que Carlos e Alexandra vão dizendo.

Alexandra esclarece que, concluído o secundário, não foi logo para o ensino superior. Só havia os cursos da Associação Portuguesa de Surdos e da Associação de Surdos do Porto. “As pessoas tornavam-se formadoras de Língua Gestual Portuguesa e ensinavam nas escolas.”

Seguiram ambos por esse caminho profissional. “Sentíamos-mos inferiores aos professores”, admite ela. Todos os anos, assinavam um novo contrato com a categoria de técnicos especializados. Invariavelmente, começavam o ano lectivo com atraso. Preparavam aulas, davam-nas, faziam avaliações, mas ganhavam menos do que qualquer professor.

Havia algum debate, mas os estudiosos da área linguística já tinham provado que a língua gestual tem estrutura, gramática, precisão, flexibilidade, subtileza, como qualquer língua. E em 1997 a Língua Gestual Portuguesa foi reconhecida como instrumento de acesso à educação. Nessa altura, ganhou estatuto de disciplina. Nasceram as Unidades de Apoio Educativo aos Alunos Surdos. Mas o grande momento de viragem, na opinião de Alexandra, ocorreu em 2008, quando foram criadas escolas de referência para a educação bilingue de alunos surdos, que ensinam Língua Gestual Portuguesa como primeira língua e a Língua Portuguesa, na forma escrita e falada, como segunda.

Já se tinham casado e já tinham tido o primeiro filho quando, aos 26 anos, Alexandra decidiu ingressar no ensino superior. Nos seus tempos de presidente da Afomos, a associação dos profissionais de língua gestual, liderou a luta pela sua dignificação. Há três anos, o Ministério da Educação criou um código de recrutamento para professores de Língua Gestual Portuguesa. “Agora sinto que somos vistos como os outros professores.”

Dá aulas no Agrupamento de Escolas Eugénio de Andrade, no Porto. A sua antiga escola é hoje uma escola de referência para alunos surdos. “Adoro trabalhar ali. Adoro trabalhar com alunos surdos. Os alunos surdos também têm de pensar no seu futuro profissional. Sou lutadora e sinto que lhes sirvo de exemplo. Sou um modelo que eles podem seguir. Os surdos podem fazer tudo o que os ouvintes fazem menos ouvir.”

Carlos gaba-lhe a paciência. Não hesitou quando, ainda solteiro, um amigo lhe disse que estavam à procura de uma pessoa com o 12.º ano, residente em Gondomar, com alguma deficiência. O anúncio tinha três requisitos e ele preenchia os três. “Era a pessoa certa para aquele lugar.”

Não basta aceder ao emprego, é preciso segurá-lo. E ele tornou-se parte da casa. “Sinto-me muito bem no meu trabalho”, garante. Embora Alexandra já ali tenha ido dar uma formação de língua gestual para funcionários, poucos a sabem usar. Nem por isso Carlos se atrapalha. “Tenho os meus códigos. Sei utilizar a voz. Faço leitura de fala.”

Admite que a pandemia de covid-19 dificulta a comunicação dos surdos. As máscaras escondem os lábios. Para falar com ele, os colegas afastam-se um pouco e baixam a máscara. “Eles têm essa sensibilidade. É fácil comunicar com toda a gente. Não me posso queixar.”

Paula Aguiar, coordenadora das respostas sociais, só tem elogios a fazer-lhe, percebemos ao visitá-lo no trabalho no dia seguinte. “O Carlos faz trabalho administrativo e colabora e apoia-nos também nas áreas técnicas.” Aponta, em jeito de exemplo, o cartaz sobre a exposição de Natal. “Ele é muito curioso, muito interessado. Quando não sabe ajudar trata de saber. Faz a sua pesquisa e aparece com a solução.”
Atar fios aos pés dos bebés

A sociedade, nota Alexandra, está mais sensibilizada. Ainda assim há muita gente surda com o 12.º ano ou o ensino superior fora do mercado de trabalho. “Quem não tem experiência com surdos tem dificuldade em concebê-la”, achega Carlos. “Como é que eu vou comunicar com aquela pessoa?”

Não é só uma questão de sensibilidade. Reconhecem o muito que o mundo mudou desde a sua infância e mesmo desde a infância dos filhos, agora com 25 e 16 anos. A evolução tecnológica facilita a vida das pessoas surdas.

Carlos dá o exemplo dos sensores que tem num candeeiro do quarto. Havendo um grito dentro de casa, a luz acende e apaga, acende e apaga. Se ele e Alexandra estiverem a dormir, acordam com aquele piscar.

Quando eram crianças, nada daquilo existia. Quando os filhos nasceram, tão-pouco. Pelo menos que eles tivessem conhecimento. Incapazes de ouvir o choro do bebé, tinham de engendrar soluções mais ou menos criativas.

Conta Alexandra que, na maternidade, mantinha uma mão no berço para sentir o movimento do bebé. E conta Carlos que, já em casa, atavam uma ponta de um fio ao pé do bebé e outra ponta a um braço. Se o bebé se mexesse, o puxão acordava o adulto responsável. E tantas vezes acordava para nada.

Ao que diz Alexandra, cuidar do primeiro filho foi bem mais complexo. Quando o segundo chegou, já tinham todas as estratégias testadas. Se fosse agora, que há sensores e outras tecnologias, mais fácil seria.

Os filhos são bilingues. Em casa, aprenderam língua gestual portuguesa. Na creche e no infantário aprenderam língua portuguesa. Na escola, continuaram a aprendê-la nas formas oral e escrita. A língua gestual não se revelou um obstáculo à aprendizagem da língua verbal.

Há uma parte da comunidade surda que se assume como uma minoria linguística e cultural, afastando-se da ideia de deficiência. O reconhecimento da língua gestual e o ensino bilingue fazem parte dessa concepção, que se desliga da visão médica e que adopta a visão das ciências sociais. Nesse sentido, os filhos pertencem à maioria ouvinte, mas também à minoria surda. Cresceram a frequentar a Associação de Surdos do Porto. Os pais fizeram-nos sócios quando ainda eram pequeninos. Nas actividades e nos convívios com a comunidade surda forjaram parte da sua identidade.

Carlos integrou há muitos anos a equipa de futsal da associação. Perdeu a conta aos jogos em que vestiu a camisola contra os jogadores das associações de surdos de Braga, de Coimbra ou de Lisboa. A certa altura, tornou-se treinador. “Vou sair. Estou cansado. Estou a ficar velho.”

Nesta fase da vida, está mais interessado nos passeios de BTT. Quem visita as suas redes sociais encontra abundante prova desta nova paixão. Quando se lhe fala do risco de não ouvir os carros, desvaloriza: “Os condutores dos carros têm de ter respeito pelos ciclistas. Têm carta. Sabem que devem manter distância de segurança.”

Alexandra acompanha-o nas caminhadas que vão fazendo, mas não é de praticar desporto. Prefere dedicar os tempos livres às actividades culturais, onde inclui o teatro para surdos, e de animação, onde coloca os concursos de miss e mister surdo e as festas de carnaval.

O filho mais velho afastou-se um pouco, mas o mais novo “adora” ir com os pais até à associação, onde encontra rapazes da sua idade, que também crescem em famílias silenciosas, que comunicam com as mãos.

Naquele final de dia, o mais novo desapareceu, envergonhado, numa divisão da casa. O mais velho ainda não tinha chegado. Quando tiverem relações amorosas sérias, Alexandra incentivará quem com eles partilhar os dias a aprender língua gestual. “Vou espicaçá-las. Tenho esperança que continuemos a ser uma família unida.”

O casal lembra que a inclusão de qualquer grupo minoritário exige um esforço dos próprios, mas também dos outros. Alexandra gostava de ver mais ouvintes a aprender língua gestual. Carlos reivindica mais acessibilidade nos serviços públicos.

Até há dois anos, se tivesse um acidente na estrada nem podia chamar a emergência médica. O Governo criou a aplicação MAI112, que permite comunicar com o operador através de mensagem escrita ou de videochamada com intérprete de língua gestual portuguesa. Também previu um serviço de atendimento a pessoas surdas com intérprete, à distância ou presencial, no Instituto de Registos e Notariado, na Segurança Social, nos centros de emprego. Carlos e Alexandra queriam acessibilidade em todos os serviços públicos.

O programa Incorpora, da Fundação “la Caixa”, em colaboração com o BPI e o IEFP, tem como objectivo fomentar o emprego para pessoas em situação de vulnerabilidade social. Nesta série de reportagens, o PÚBLICO apresenta um conjunto de retratos representativos dos diversos grupos-alvo da iniciativa. As reportagens são guiadas por critérios editoriais, sem qualquer relação directa com os apoios atribuídos pelo programa.

25.3.12

Surdez favorece condição de pobreza

Texto Cristina Santos, in Fátima Missionária

Trata-se de um problema de saúde que poderia ser prevenido mas que afeta milhões. Produção de próteses auditivas está muito aquém das necessidades da população a nível mundial


Metade dos casos de surdez ou deficiência auditiva poderiam ser evitados através de ações de prevenção. A perda de audição pode ser tratada com recurso a próteses auditivas. Mas tais dispositivos, apesar de muito necessários, estão em falta. A produção atual de próteses auditivas cobre apenas menos de 10 por cento das necessidades a nível mundial. Nos países em desenvolvimento, menos de uma pessoa em cada 40 com problemas de audição, dispõe de uma prótese. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, em 2004, mais de 275 milhões de pessoas no mundo tinham problemas auditivos; 80 por cento viviam em países com fracos ou médios rendimentos.

As deficiências auditivas têm várias repercussões nas famílias, comunidades e países. Nas crianças podem dar origem a atrasos no desenvolvimento da linguagem e das aptidões cognitivas. Os adultos têm mais dificuldades em arranjar um emprego e mantê-lo. As pessoas com problemas de audição são frequentemente discriminadas. Os mais pobres são mais afetados por não terem possibilidades de aceder aos cuidados preventivos ou aos tratamentos de que necessitam. Por outro lado, os que sofrem de algum problema de audição, ao terem mais dificuldades em arranjar emprego, ficam isolados e acabam por cair mais facilmente na pobreza.