19.12.22

Se a crise se agravar, “Governo terá de ir além do previsto no apoio às famílias”

Natália Faria, in Público

Sandra Araújo, coordenadora da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza, anuncia mudanças no RSI e medidas a pensar nos 700 mil portugueses que vivem logo acima do limiar de pobreza.A estratégia prevê a retirada da pobreza de um total de 660 mil pessoas até 2030, incluindo 230 mil trabalhadores e 170 mil crianças. Já sabe quais serão as prioridades no plano de acção que vai apresentar?

A estratégia elenca um conjunto de medidas e estou na fase de pedir aos diferentes ministérios que me digam o que está em curso e o que já foi feito. Relativamente à redução da pobreza monetária das crianças, por exemplo, grande parte das medidas previstas já está em andamento. Algumas cruzam-se com outras agendas, nomeadamente com a Garantia Europeia para a Infância, cuja coordenadora, Sónia Almeida, vai apresentar brevemente o seu plano de acção. Esta medida, que consiste numa prestação social complementar ao abono de família, está em curso desde Setembro e vai abranger 150 mil menores. Dar 70 euros a cada criança em situação de pobreza extrema pode parecer pouco, mas tem um impacto muito expressivo nos rendimentos destas famílias. Depois há o reforço dos valores do abono de família previsto no Orçamento do Estado para 2023, a gratuitidade das creches, que começou para crianças do primeiro e do segundo escalões, mas que, a partir deste ano, se aplica a todas as crianças nascidas a partir de 1 de Setembro de 2021. Outra medida com impacto será a actualização do Indexante dos Apoios Sociais, que em 2023 será actualizado em 8%, para os 478 euros. Considerando que este é o valor de referência para o cálculo da maior parte dos apoios sociais, obviamente que isso terá um impacto importante no orçamento das famílias. Portanto, não estamos na estaca zero.

A que ponto a incerteza e a inflação poderão comprometer o ritmo de concretização destas metas?
Quando a estratégia foi traçada, não tínhamos este cenário de guerra, nem o respectivo problema energético, que torna tudo mais caro. Esse é um problema adicional com impacto nas condições de vida de todos os portugueses, mas eu creio que o Governo tem estado atento à necessidade de introduzir medidas de carácter mais conjuntural para mitigar os efeitos nefastos do aumento dos preços dos bens alimentares, por exemplo. Tivemos o apoio extraordinário de 125 euros às famílias. Se é suficiente? Com certeza que não. Seriam precisos 125 euros todos os meses. Portanto, sabemos que não é suficiente, e se calhar até se podia ter feito as coisas de outra maneira, mas há aqui uma atenção específica a este problema novo, porque não podemos falhar numa matéria tão sensível como esta. Neste momento, há muita coisa que está em aberto, mas, se o cenário se agravar, o Governo terá de acomodar medidas emergenciais com medidas de natureza mais estrutural e ir além do que está previsto no apoio às famílias.

Há cerca de 700 mil pessoas que, apesar de estarem acima do limiar de pobreza, isto é, dos 554 euros por mês, estão numa situação de enorme fragilidade. Estas pessoas estão encaixadas entre os 554 e os 660 euros mensais. Estão acima do limiar, já não contam para a estatística, mas vivem da mesma maneira ou pior do que as outras

Gostava de ver avançar no imediato medidas para impedir o agravamento dos indicadores de pobreza?

Obviamente que sim, e acho que o Governo tem vindo a fazer essa reflexão. A sensibilidade existe e acho que vamos ter de ter políticas de resposta à emergência. Creio que neste momento o problema da habitação é dos mais sensíveis. A mim preocupa-me, não só porque temos um parque habitacional curto (o parque público habitacional é da ordem dos 2%), mas também porque, além do aumento do valor das rendas muito superior ao dos salários, sobretudo em cidades como Lisboa, Porto e Coimbra, temos o problema adicional da subida das taxas Euribor, que não controlamos, mas que ameaça deixar as famílias asfixiadas pela prestação da casa. Isso será sempre um problema a equacionar e o Governo tem estado a acompanhá-lo, nomeadamente com a fixação do tecto máximo de 2% no aumento das rendas, embora saibamos do efeito perverso dessa medida, porque, entretanto, muitos proprietários decidiram não renovar contratos.

Tem tido notícia sobre o agravamento da situação no terreno e até de alteração do perfil das pessoas que vão pedir ajuda?
Sim, há instituições a dizerem que há mais gente a pedir apoio alimentar, o que não será de estranhar. Depois, temos de ser sensíveis a um indicador importante das estatísticas sobre pobreza que diz haver cerca de 700 mil pessoas que, apesar de estarem acima do limiar de pobreza, isto é, dos 554 euros por mês, estão numa situação de enorme fragilidade. Estas pessoas estão encaixadas entre os 554 e os 660 euros mensais. Estão acima do limiar, já não contam para a estatística, mas vivem da mesma maneira ou pior do que as outras. E a qualquer momento descem abaixo do limiar de pobreza. Isto é antigo: a existência de uma percentagem muito significativa de pessoas que, apesar de não constarem nas estatísticas da pobreza, estão numa situação de défice social, porque efectivamente não conseguem ter acesso a bens de consumo que lhes permitiriam ter uma vida considerada digna. São pessoas que têm de fazer contas todos os dias e submeter-se a privações. E estamos a falar de uma grande margem da população portuguesa.