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1.8.23

“Estigmatizamos a pobreza e não quebramos o ciclo entre gerações” – Entrevista a Maria Joaquina Madeira, EAPN

in AMI

“O que ninguém quer falar sobre a pobreza”, desde os ciclos de vida repetidos de pais para filhos, à exclusão do contrato social, porque “quem vive na pobreza nada pode dar” é o que Maria Joaquina Madeira, vice-presidente da Rede Europeia Anti-Pobreza e impulsionadora da implementação do Rendimento Social de Inserção em Portugal afirma ser necessário colocar abertamente no debate público “sem eufemismos. Ainda estigmatizamos a pobreza e não quebramos o ciclo entre gerações. Maria Joaquina Madeira, vice-presidente Rede Europeia Anti-Pobreza (EAPN).

Que metas não foram alcançadas com o Rendimento Social de Inserção?

O Rendimento Social de Inserção [RSI] devia ser uma ferramenta eficaz na luta contra a pobreza, no entanto, ficou aquém do objetivo.

O RSI tinha como meta dar mais capacidade às pessoas na aquisição de bens e serviços, para viverem com mais dignidade, mas tornou-se insuficiente. Não podemos esquecer que grande parte dos beneficiários de RSI são idosos, doentes crónicos ou crianças. Beneficiários que não representam população ativa.

O RSI é insuficiente só pelo valor ou porque faltam políticas públicas complementares?

Hoje fala-se em mínimos adequados para ter uma vida digna, de acordo com recomendações europeias.

A sociedade caminha para outro patamar de rendimentos e a perspetiva é de que o RSI se mantenha apenas para as situações mais críticas. A meta agora passa por alcançar níveis de rendimento que vão ao encontro das despesas base das pessoas, para que reúnam condições de vida mais dignas.

Somos uma sociedade alimentada economicamente de forma desigual e por conveniência?

O melhor que pode acontecer a uma organização humanitária como a EAPN ou a AMI é deixar de ser necessária, afinal, elas trabalham para o seu fim e esse seria o mundo perfeito. Mas, a vida em sociedade é um contrato, damos para recebermos. As pessoas em situação de pobreza não entram no contrato social porque não têm nada para dar em termos de impostos e poder de compra.

É preciso colocar no debate público o que ninguém quer falar sobre a pobreza e fazê-lo sem eufemismos. A verdade é que ainda estigmatizamos a pobreza e mantemos um ciclo difícil de quebrar entre gerações.

O conceito de aporofobia criado pela filósofa Adela Cortina traduz-se como medo do pobre numa sociedade que estigmatiza a pobreza. Do estigma da pobreza nascem nichos de precariedade alimentar e habitacional e oportunidades para situações de vida à margem da lei, com vista a obter rendimentos ou ascensão social de forma rápida.

É bom ter essa palavra, apesar de pesada, porque ela concretiza o problema e a sociedade pode usar a palavra aporofobia como missão para erradicar a pobreza e não alimentar preconceitos.

Porque não se consegue quebrar a necessidade de assistência financeira ou alimentar?

Falha sobretudo a questão dos salários dignos. Temos salários insuficientes que comprometem toda a vida das pessoas, mas a pobreza não se esgota só na dimensão económica. A pobreza é multidisciplinar e complexa. Têm que se ter em conta todas as dimensões no processo de transformação e empoderamento das pessoas.

A falta de condições económicas prejudica o acesso à educação de qualidade, e, consequentemente, a uma profissão e trabalho digno.

Temos evoluído, no século XX usava-se mais o nome “pobre” do que o conceito “pobreza”. A responsabilidade de ser pobre era da própria pessoa, como se tivesse culpa. Hoje trabalhamos sobre todas as dimensões do conceito “pobreza”, desde a geográfica, à económica, saúde, educação ou acesso à cultura e lazer.

O salário mínimo nacional de hoje limita o futuro das próximas gerações?

É uma questão cultural. Temos uma população ativa de quatro milhões, há ainda muitas pessoas que por condição da sua vida, idade ou outro fator, não tem direito ao trabalho. Mais de 500 mil pessoas que trabalham e são pobres, a maior parte com família e crianças a seu cargo. Temos uma taxa de pobreza nas crianças demasiado elevada porquê? Porque os seus pais são pobres.

Pais pobres, filhos pobres?

Ainda há um ciclo de pobreza. Um aprisionamento das pessoas num ciclo de privações. A neurociência estuda os compromissos que a pobreza gera ao nível do desenvolvimento físico, mental, psicológico e social.

Quando as pessoas ficam extremamente comprometidas com ajudas materiais e afetivas mútuas ao longo da vida, a autonomia fica em causa e podem gerar outras famílias empobrecidas. O estado de privação é uma herança terrível.

Por isso afirma que “agora o trabalho das instituições e do Estado é feito com a pobreza e não com os pobres”?

Há algumas décadas o Estado e a sociedade não viam a pobreza como um problema deles. O problema era das pessoas e elas tinham que adaptar-se à vida.

Atrasado em relação à Europa, no pós-25 de abril, com a adesão à CEE [Comunidade Económica Europeia], Portugal assumiu um conceito que já circulava em outros países, o dos direitos sociais. A pobreza afinal existia porque a sociedade não garantia condições mínimas para uma vida digna.

O Estado assumiu a pobreza como um problema público e começámos a falar de integração. Vivemos um momento de empoderamento. Mas, ainda temos uma sociedade profundamente desigual e todos os dias infringimos direitos humanos.

Que políticas públicas podem quebrar o ciclo?

A Agenda do Trabalho Digno vai muito além do trabalho a nível remuneratório. Incide também sobre a precariedade e relação trabalho família. Uma agenda forte que vai ser uma política angular na transformação das condições de vida de muitos portugueses.

Depois, a Estratégia Nacional de Combate à Pobreza incide precisamente sobre a questão da pobreza nas crianças.

Tudo isto se enquadra na recomendação europeia: pilar dos direitos sociais.

As políticas públicas estão no terreno, mas, continuamos sem conseguir implementar o idealizado, a começar pelo trabalho.

Há uma certa desvalorização do acompanhamento e avaliação das políticas públicas implementadas. Fazem-se as políticas, as leis, executam-se e depois não se avalia o impacto.

A grande novidade é que as novas estratégias estão submetidas a um sistema de avaliação do desempenho e do impacto na vida das pessoas.

Entramos numa nova Era e estou convicta de que tudo vai ser diferente, embora só consigamos ver resultados daqui a dois ou três anos.

27.3.23

Segurança Social será implacável com maus tratos a idosos, diz ministra

Por Lusa, in Público

Ana Mendes Godinho disse que o Instituto de Segurança Social “tem estado a acompanhar as várias situações” de alegados maus tratos a idosos residentes em lares.

A ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social garantiu esta terça-feira que a Segurança Social será “completamente implacável” nos casos de maus tratos a idosos em lares, destacando o investimento que está a ser feito na requalificação de respostas sociais.

De acordo com Ana Mendes Godinho, o Instituto de Segurança Social “tem estado a acompanhar as várias situações” que foram noticiadas recentemente sobre alegados maus tratos a idosos residentes em lares, desde o “O Lar do Comércio”, em Matosinhos, o Lar Delicado Raminho, na Lourinhã, ou um lar clandestino em Palmela.

[A“ Segurança Social] tem essa missão de ser completamente implacável quando haja situações que sejam inaceitáveis do ponto de vista de protecção das pessoas”, disse a ministra aos jornalistas, quando visitava as obras da nova Unidade Social Integrada da Portela da Cruz Vermelha Portuguesa (CVP).

Esta nova infra-estrutura tem financiamento do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e irá reforçar a oferta social com a criação de 59 vagas em estrutura residencial para idosos e outras 80 vagas em serviço de apoio domiciliário.

Ana Mendes Godinho aproveitou para destacar que este tipo de investimento é também uma preocupação da Segurança Social, tanto ao nível de requalificação das respostas existentes como na criação de novas respostas sociais, à semelhança do que está a ser feito na Portela, Loures. A ministra destacou que se trata de uma resposta que irá promover a autonomia e a independência das pessoas mais velhas.

Questionada sobre a evolução do número de beneficiários do Rendimento Social de Inserção (RSI), Ana Mendes Godinho destacou que é o mais baixo desde 2006 e que reflecte a evolução da taxa de desemprego no país, apontando que, se há “números de emprego muito altos”, o RSI acompanha essa tendência com o decréscimo no número de pessoa que recebem a prestação social.

O Jornal de Notícias noticia esta terça-feira que em Janeiro havia 195.545 beneficiários do RSI em Portugal, o número mais baixo em 17 anos, numa série em que o registo mais elevado se deu em Março de 2010, com mais de 404 mil beneficiários.

“Eu não quero morrer analfabeta”

Joana Ascensão, in Expresso

Aos 53 anos, Isabel decidiu que não queria morrer analfabeta. O Expresso acompanhou-a durante um ano letivo no projeto + Literacia e mergulhou no problema invisível do analfabetismo em Portugal

Àquela hora naquela tarde ventosa, o dia acabava para a maioria das pessoas. Para Isabel, começava a segunda parte do seu. Estava a pé desde as seis da manhã e caminhava apressadamente para uma aula, doze horas depois de ter começado a trabalhar.

Era assim às terças e quartas-feiras, desde que, uns meses antes, escolhera desafiar a condição que cedo demais — e anos a mais — a definiu. Era analfabeta. Fora sempre o seu nome o meio.

Para Isabel, o ofício de arrumar as letras e dar-lhes significado era como um mistério. As palavras da sua história tinham ficado sempre fora de papéis. Aos 53 anos, quatro filhos depois, 23 anos de “mulher a dias” depois, e sem que a vida parecesse ter fôlego para mais desafios, decidiu aprender a ler e a escrever.

Entre as probabilidades estatísticas, o lugar de Isabel tem várias leituras. Por um lado, é uma de entre os quase 300 mil analfabetos em Portugal (3,1%). É mulher e isso faz com que tenha outras 198.393 ao seu lado (68%), para apenas 94.416 homens (32%).

Além disso, Isabel encaixa noutra minoria: a faixa etária em que o Censos de 2021 a enquadra — dos 50 aos 59 anos —, quantifica outras 24 mil pessoas analfabetas em Portugal.

Estão no cume da vida, algumas até trabalharão, mas escaparam ao ensino, foram incapazes de aprender e debatem-se hoje com uma das maiores limitações num país onde o ensino básico se dá como adquirido desde os anos 1960.

Destas, poucas encontrarão a oportunidade de estudar. As ofertas que existem excluem quase sempre quem tem de aprender tudo do zero. Como Isabel.

Naquela quarta-feira 12 de janeiro de 2022, Isabel encontrava sofregamente o caminho para a pequena sala improvisada no antigo edifício da Câmara de Matosinhos. Era o regresso às aulas dos alunos improváveis, após três semanas de férias de Natal. Só dois apareceram na sessão dirigida pela psicóloga Mónica Marques da Silva, que logo soltou a primeira tarefa: rodear as vogais com um círculo, de entre as várias letras baralhadas na folha de exercícios. Isabel atou o cabelo, cujo tom grisalho realçava na roupa de inverno. Retirou os óculos da caixa transparente. Pegou no lápis.

Já conhecia a letra A, a primeira de todas. A de ‘ajuda’, de ‘aqui’ e de ‘agora’. Socorreu-se da memória das aulas de terça-feira com a professora Ana Sofia Lopes para lembrar a caligrafia repetida das vogais num caderno, cada uma numa linha, como fazem as crianças quando precisam de se habituar ao traço na primária.

Ainda se recorda do golpe de coragem que sentiu quando pisou pela primeira vez as instalações do ‘+ Literacia’. Um primeiro atendimento tinha-lhe sido marcado por uma patroa com estudos superiores, também chamada Isabel, a quem lhe limpa a casa e a quem se viu obrigada a confessar ser analfabeta. Ao contrário das outras, desta última vez a confidência não caiu em saco-roto: “Tu és tão inteligente, Isabel, porque é que não consegues aprender a ler?”

Até que um dia, os atalhos da Internet encurtaram o caminho até à ADEIMA, a associação “dona” do projeto ‘+ Literacia’, que ensina a ler e a escrever adultos iletrados ou com baixos graus de literacia em Matosinhos.

Isabel aceitou redesenhar os esboços que tinha idealizado para o seu futuro a partir dali. Após uma vida inteira a telefonar em vez de mandar mensagem, a decorar os nomes das ruas por não lhes poder ler as placas, a confiar as cartas que chegavam a casa aos filhos e os movimentos do seu dinheiro à gestora de conta; após uma vida a desculpar-se com a falta de óculos para tirar dúvidas no supermercado, a ignorar as legendas dos filmes e a inventar as histórias dos livros dos filhos que não conseguia ler, pensou para si o que disse ao Expresso meses depois:

“Eu não quero morrer analfabeta. Eu quero morrer a ler e a escrever”.

Dedicada ao tema do analfabetismo desde os anos 1990, Carmen Cavaco não tem dúvidas: “Os analfabetos são silenciados e têm um grande problema: o direito à educação tem-lhes sido negado”. A inexistência de uma política pública para estas pessoas desde o fim do século passado deixa-as nas mãos da sorte. “São entidades da sociedade civil ou associações a preocuparem-se com a questão, com uma dimensão limitada e que desconhecem o que outros semelhantes andam a fazer”, explica a investigadora e professora do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa.

O que há a norte, pode não existir a sul – ninguém sabe ao certo onde nem como. “Não há sequer um sítio onde possamos ir pesquisar”, menciona Antónia Gonçalves, vice-presidente da Associação Portuguesa de Educação e Formação de Adultos (APEFA).

Nos 10 municípios com maior taxa de analfabetismo (ver tabela em cima), só Monforte fica no Alentejo, embora esta região tenha a maior taxa de analfabetismo do país (5,4%). Em 2011, quase um em cada dez alentejanos eram analfabetos, o dobro do indicador atual.

Seguem-se a região autónoma da Madeira, a região Centro, o Algarve, os Açores e o Norte com a mesma percentagem (3%). Lisboa e Vale do Tejo concentra a menor taxa, apenas 2% da população residente, embora seja a capital a ter o maior número total de pessoas a viverem sem saber ler nem escrever.

Por falta de dados, não se pode dizer que “a escola” de Isabel é a única no país. Mas é rara. Após anos de apostas como as Novas Oportunidades, é o Programa Qualifica que, desde 2017 e com 316 centros espalhados pelo país, tem tentado responder a quem tem baixa escolaridade, entregando em organizações locais – municípios, centros do IEFP, IPSS – o trabalho de diagnóstico e a apresentação de soluções.

Contudo, para ensinar adultos até que atinjam o 4.º , o 6.º ou o 9.º anos, nas apertadas metas dos currículos de ensino, espera-se que tenham alguns conhecimentos de base. E neste caminho, dificilmente um analfabeto apanha o barco, garante Antónia Gonçalves. Para alguém assim, não há muitas soluções e as que existem - como o projeto ‘+Literacia’, de Isabel - vivem da sensibilidade local para o problema e não de “obrigação estatal”.

Chegam aos olhos de Mónica pessoas “inseguras e desacreditadas”. Em algumas, o impulso de aprender que as levou até ali desaparece depressa – e desistem. Poucas são como Isabel Carapuço. Nas aulas desta psicóloga trabalha-se a parte “cognitiva e de lógica” destes novos alunos. Para quase todos, este estímulo pode fazer a diferença, porque os cérebros dos adultos são menos “elásticos” que os das crianças. Sempre que pode, a formadora envolve nos exercícios os números e as letras que a custo se vão tornando familiares na vida dos alunos.

Na pequena sala com um cravo vermelho desenhado na parede com as palavras “A liberdade é…”, Isabel debate-se com o erro. Em vez de “branco”, leu “buraco”. Tem dificuldades em distinguir sons anasalados – e irrita-se. “Lá estás tu a inventar outra vez. Assim nunca mais aprendes”, diz a si própria em voz alta. Entre as contas de somar, os labirintos e as sopas de letras, também se ensinaram os antónimos. "Grande" é antónimo de "pequeno".

Tudo aquilo lhe lembra a infância e a adolescência. Filha de pescador e de “pescadeira”, também eles analfabetos, foi “mais ou menos pela terceira classe” que Isabel desistiu da escola para ir vender peixe com a mãe. “Não conseguia aprender e levava muita porrada da professora”, recorda.

Até que aos 15 anos ingressou numa das fábricas de conservas típicas de Matosinhos e tudo mudou: aos 16 engravidou e casou-se, por obrigação e com assinatura dos pais; teve outros três filhos. A vida só estabilizou mais tarde, depois de vinte anos a trabalhar noutra fábrica de peixe.

Quando se atirou para “trabalhar aos dias”, na “arte de limpar”, passou a ser dona do seu próprio quotidiano. Entre os nove irmãos, “uns sabem ler, outros sabem mais ou menos”. Só Isabel ficou para trás. Diz que tem vergonha. Poucas vezes o assume, mas tem.

O que sabe do “telefone prático” com teclas de antigamente serve-lhe apenas para atender e desligar chamadas. Os filhos ou o marido, “que ainda percebe alguma coisa”, leem as mensagens, tal como as cartas que lhe chegam pelo correio. Não tem conta em nenhuma rede social. Nas idas ao médico ou ao banco evita revelar as dificuldades em preencher documentos sozinha. “Eu tenho vergonha”, reforça. “Agora já nem tanto, mas antes desculpava-me com a falta dos óculos. São estas pequenas coisas que uma pessoa vai fazendo. São coisas pequenas grandes.”

Cinco meses depois do início das aulas e com a guerra na Ucrânia prestes a rebentar, o triunfo de Isabel era conseguir ler as palavras em metade do tempo.

Nessa terça-feira 22 de fevereiro de 2022, a sala da professora Ana Sofia Lopes tinha seis alunos. Na contracapa do dossiê verdade estavam a tabuada e os números, mas na cabeça de Isabel ressoavam dúvidas sobre palavras: porque é que ‘bruxa’ se escreve com ‘x’ e ‘bucha’ com ‘ch’ – logo estas que parecem irmãs? Muitas vezes, os esclarecimentos de Ana Sofia custavam a entrar, àquela hora e com o peso de um dia inteiro sobre os ombros.

Isabel é mulher de acordar cedo. Desde sempre foi assim. Pelas seis da manhã, sai-lhe das mãos “o comer fresco” que servirá de marmita para o marido que anda na construção civil. Logo vem o filho mais novo e “as coisas da escola”, ainda antes de “picar ao trabalho”, de onde só se habituou a sair dez horas depois de o dia começar.

Houve um tempo em que se deitava às duas da manhã para fazer “rissóis para fora”, mas arranjar duas horas extra no meio das correrias constantes é difícil.

“Chegando agitada, o seu desempenho não é tão bom”, garante a professora Ana Sofia. “Lidar com adultos tem disso… basta terem tido um dia mau. Enquanto o cérebro das crianças é completamente flexível, o das pessoas que nunca estudaram tem muito mais dificuldades em captar os ensinamentos.” Quando Isabel Carapuço iniciou as aulas, “vinha com muitas dificuldades, mas muito motivada”, recorda a professora. “Esse é o fator diferenciador” desta população já de si “vulnerável, grande parte dela a receber o Rendimento Social de Inserção (RSI) ou desempregada a receber Subsídio de Desemprego”.

“Vulnerável” e “desempregada” não são as melhores nem as únicas palavras usadas por Ana Sofia para descrever quem lhe chega à sala. A professora diz que, acima de tudo, são pessoas “com vergonha, com receio de alguém lhes pedir ajuda nas compras, de não conseguirem ler o que está nas prateleiras e sem noção do dinheiro que gastam”. E acrescenta: “Não saber ler faz com que as pessoas se sintam pouquíssimo autónomas”. Por isso, o trabalho faz-se letra a letra, palavra a palavra e frase a frase. Cada aula é um escudo novo que os alunos transportam para a rua. “Às vezes perguntam-me quando é que vão conseguir sair das aulas a saber ler e escrever. Eu não sei responder. Para estes alunos o resultado de um ano de trabalho pode ser conseguir ler um poema inteiro sozinhos.”

No final de março, pouco depois do começo da primavera, Isabel chegou confiante à aula. A filha mais velha tinha passado algum tempo a apoiá-la com sopas de letras no tablet. Metida numas jardineiras de ganga e com uma t-shirt branca, chegou com a tinta loura do cabelo a desmaiar.

Estava vento em Matosinhos, mas restava algum sossego na sala de aula quando a professora escreveu três palavras no seu caderno para ensaiar a leitura dos sons “lh”, “ch” e “nh” – “os mais difíceis”. Palhaço. Chupeta. Moinho.

Isabel leu-as com dificuldade. Entre pausas, voltava ao início e repetia-as até se tornarem familiares. E assim que a memória de curta duração a ajudou na tarefa, Ana Sofia pediu-lhe um ditado de palavras. A primeira foi “chupeta”, que Isabel escreveu com um “o” no lugar do “u”; apagou-a toda, para voltar a escrevê-la inteira. Seguiram-se “rolha”, “pinha”, “ninho”, “fechadura”, “agulha”.

No histórico do combate ao analfabetismo, Portugal apresenta números que não envergonham. Depois das primeiras campanhas de educação para adultos, ainda durante o Estado Novo, foi sobretudo a partir dos anos 1970 que o país desenvolveu uma verdadeira política pública de alfabetização de adultos, a par do aumento gradual da escolaridade obrigatória. Na altura, um quarto dos portugueses não sabia ler nem escrever e os resultados da estratégia foram evidentes.

De década em década, a escolarização não parou de aumentar e o analfabetismo não parou de diminuir, reduzindo para metade a cada novo recenseamento geral. Na última década, caiu de 500 mil para menos de 300 mil.

Em 2021, quase um quinto da população residente tinha ensino superior. Mas as malhas do analfabetismo ainda encontram poiso com diferente dimensão, consoante a zona do país.

Os municípios com mais gente escondem, naturalmente, mais pessoas analfabetas - em número total. Percentualmente falando, tendem a ser os do interior onde o analfabetismo mais se faz sentir, também por concentrar uma população mais envelhecida.

É na Horta que o peso dos jovens analfabetos (entre os 10 e os 20 anos) é mais alto face ao total de pessoas que não sabem ler nem escrever naquele município açoriano (3,5%), logo seguido da Ribeira Grande (3,4%) e da Lousã (3,3%).

Em Vila do Porto, na ilha de Santa Maria, Açores, quase metade dos analfabetos têm menos de 50 anos (43,6%). É nos Açores onde esta proporção é maior neste grupo de pessoas — na lista dos que se caracterizam por ter mais pessoas analfabetas abaixo dessa idade, estão outros seis municípios açorianos: Lagoa (38,2%), Nordeste (29,3%), Ponta Delgada (27,8%), Ribeira Grande (27,1%), Povoação (25,3%) e Angra do Heroísmo (21,5%). Albufeira, Faro e Lisboa são os três municípios, no continente, com esses valores mais altos — em Lisboa, uma em cada cinco pessoas analfabetas tem menos de 50 anos (20,9%).

Comparando com a população em geral, na mesma faixa etária, Monforte, no Alentejo, é o município com maior taxa de analfabetismo entre os que estão abaixo dos 50 anos (4,8%). Seguem-lhe Mourão (3%), Ribeira Grande (2,7%) e Moura (2,6%).

Mas é preciso ver além dos números. É preciso usar as palavras certas para os examinar.

Para Carmen Cavaco, “nem 300 mil” analfabetos terá de ser lido como “ainda 300 mil”, “um número que, apesar de reduzido, continua a fazer-nos ficar mal na fotografia”, aponta. “Nas últimas décadas ele tem vindo a descer sobretudo pela morte das pessoas mais idosas, que estão na faixa etária que regista maior taxa de analfabetismo”.

A investigadora vai mais longe e afirma mesmo que “o Estado português percebeu que o problema se ia resolvendo com a renovação geracional. Por isso, apesar do período de grande investimento económico em educação de adultos, entre 2000 e 2012, a parte da alfabetização ficou para trás”. Educação e alfabetização não são sinónimos.

Ao Expresso, Filipa Henriques de Jesus, Presidente do Conselho Diretivo da ANQEP (Agência Nacional para a Qualificação e o Ensino Profissional), assume que “não é por, em 50 anos, termos passado de 25% de analfabetos para 3,1% que temos de desistir”. “A percentagem é pequena, mas devia ser mais pequena ainda”. Contudo, a responsável explica que “para as pessoas muito pouco qualificadas as respostas são muito mais difíceis e têm de ser muito mais individualizadas”.

Perante a falta de respostas que houve até agora, o Governo decidiu disponibilizar um financiamento de projetos específicos para a “população muito pouco alfabetizada” - com menos do que o 9.º ano - com dinheiro do PRR. São €175 mil a serem distribuídos por cada um dos 225 projetos para os quais há vaga, num investimento total de €40 milhões. Houve 296 candidatos, excedeu-se o número de vagas, mas Filipa não sabe quantos desses projetos incluem um plano de ação específico para pessoas analfabetas. Os especialistas e dirigentes de organizações temem que se esqueça um problema já de si silenciado.

Na sombra de uma maio­ria considerável de analfabetos com mais de 75 anos, resistem outras 24 mil pessoas que não sabem ler nem escrever só na faixa etária da Isabel - dos 50 aos 59 anos.

Mais de 16 mil pessoas estão entre os 40 e os 49 anos.

E mais de nove mil entre os 30 e os 39.

Até aos 30, somam-se quase oito mil jovens analfabetos.

Como se explicam estes números num país onde os pais das crianças que faltam às aulas têm uma intervenção da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ)? Carmen Cavaco esclarece.

Poderão ser jovens imigrantes, com deficiência ou incapacidades, jovens cujos pais tenham vidas itinerantes, “que mudam constantemente de escola, o que dificulta a aprendizagem”, ou jovens a quem, desde cedo, diagnosticaram problemas de aprendizagem.

“Ter acesso à escola e ter sucesso educativo são dimensões distintas. E as crianças são retiradas aos pais se faltarem à escola, mas não se não conseguirem aprender a ler”, lembra a especialista em analfabetismo.

Também quando Isabel frequentou a escola, os tempos já obrigavam a pelo menos seis anos de escolaridade, fixados por decreto a 9 de julho de 1964. Contudo, multiplicam-se as exceções dos que saíram da rede de ensino sem que ninguém os apanhasse.

“É lamentável, em pleno século XXI, continuarmos a ter pessoas a viver ao nosso lado que não tiveram direito à literacia. O Estado esqueceu-as”, diz Carmen Cavaco.

“O analfabetismo sempre foi entendido como um problema individual e não como um problema da sociedade”. O que falta, essencialmente, é vê-lo como um problema de todos. Para o presidente da APEFA, Armando Loureiro, deve começar-se por flexibilizar a duração dos cursos e os métodos, “deixando cair a ideia de que alguns meses ou um ano é suficiente para estas pessoas dominarem o básico e consolidarem os ensinamentos, ao mesmo tempo que têm uma vida, uma casa e um trabalho”. Por detrás, está uma mudança ainda mais profunda: “A ousadia do adulto que vai para a escola deve ser louvada e encorajada”.

Eram as últimas aulas. A pandemia parecia ter terminado e as máscaras faciais tinham sido largadas. As mesas, novamente organizadas em forma de “U”, promoviam o silêncio na sala em que seis alunos, de novo, esgotavam a velocidades diferentes as últimas horas de sol daquela terça-feira.

No canto superior esquerdo do quadro, evidenciava-se o local – sempre Matosinhos – e a data – sempre cambiante. Maio já havia inaugurado o calor, que Isabel afastava com um leque vermelho. Das mãos sobressaiam-lhe as veias na pele fina.

Nota-se “diferente”. Está mais confiante. Sabe ser uma questão de tempo até ler um livro sozinha. “Não é brilhar, é só ler”, retifica.

Nas legendas da televisão, já consegue encontrar um sentido. São “pequenas coisinhas” que vai apanhando. Consegue distinguir o leite condensado cozido do que está ao natural na prateleira do supermercado. E a lula da pota, nos congelados.

Sem que ninguém contasse, entre exercícios de análise de um pequeno poema e de diferenciação entre os seus versos e estrofes, Isabel verteu para cima da mesa o verdadeiro significado daquelas aulas.

Lembrou-se que também havia conseguido pela primeira vez distinguir quando a farinha era “com” fermento ou “sem” fermento. Duas palavras de apenas três letras e como podem mudar o tamanho de um bolo – e de uma vida. Os versos são as frases dos poetas. Isabel descobriu-o numa ida ao supermercado.

Créditos

Texto Joana Ascensão
Fotografias Rui Duarte Silva
Vídeo Rui Duarte Silva
Edição vídeo José Cedovim Pinto
Infografia Sofia Miguel Rosa
Webdesign Tiago Pereira Santos
Grafismo animado Carlos Paes
Apoio web João Melancia
Coordenação Pedro Candeias, Joana Beleza e Marta Gonçalves
Direção João Vieira Pereira

Expresso 2023

24.1.23

Aumento do RSI? "As pessoas não são meros consumidores de dinheiro", avisa padre Jardim Moreira

André Rodrigues, in RR

Presidente da Rede Europeia Anti Pobreza em Portugal defende envolvimento da sociedade na resposta à pobreza. Jardim Moreira alerta para o risco desta medida, “na sua origem provisória, esteja a tornar-se permanente”.

O presidente da Rede Europeia Anti Pobreza em Portugal (EAPN) considera positivo, embora insuficiente, o aumento do Rendimento Social de Inserção, a partir de março.

De acordo com o jornal Público, esta prestação social passa de 189 para 209 euros, após três anos sem atualizações.

A medida já estava prevista. Em novembro, o Governo garantia que o valor do RSI iria aumentar este ano, acima da inflação.

O aumento que vai vigorar a partir de março é de 10,3%.

Em declarações à Renascença, o padre Jardim Moreira considera que “tudo o que seja ajudar as pessoas é útil”, mas alerta para o risco desta medida, “na sua origem provisória, esteja a tornar-se permanente”.

É preciso que essa ajuda tenha a capacidade de promover as pessoas para se libertarem da pobreza, porque, senão, corremos o risco de estarmos a alimentar a pobreza indefinidamente”, acrescenta.

O presidente da EAPN em Portugal defende, por outro lado, que a resposta à pobreza não deve ser dada exclusivamente através de medidas políticas, envolvendo toda a sociedade, mas também “as próprias pessoas na solução dos seus problemas de pobreza e de exclusão”.

“Não há inclusão se não houver participação de toda a sociedade. A inclusão é uma relação de afetos, é reconhecer a dignidade igual das pessoas e penso que às vezes é vista como um mero consumidor de bens e de dinheiro”, alerta Jardim Moreira.

A subida das prestações do RSI vai abranger um universo de 198 mil beneficiários e corresponde a 30 milhões de euros provenientes do Orçamento do Estado.

22.12.22

“O RSI veio para diminuir a pobreza, mas até agora só diminuiu a severidade da pobreza. Não retirou uma única pessoa dessa situação”


Catarina Maldonado Vasconcelos, Rui Duarte Silva, in Expresso

Fernanda Rodrigues, da Comissão Coordenadora da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza e da Cruz Vermelha Portuguesa no Porto, admite preocupação perante o período que o mundo enfrenta. Os mais pobres acabarão invariavelmente por sentir ainda com mais força o impacto da crise financeira, mas Portugal tem um problema cívico de reconhecimento da pobreza. “Fomos educados a achar que é tão natural ser pobre como não ser”, diagnostica, frisando, desde logo: “Não, não é”

Inclusão, assistência e ação social sempre fizeram parte das preocupações de Fernanda Rodrigues, antiga consultora da Comissão Europeia na equipa portuguesa de avaliação do Programa Pobreza II. Já não consegue recuar ao momento divisor de águas, aquele em que a consciência soprou como um apelo para o exercício profissional. “Em todas as trajetórias, juntam-se elementos de ordem pessoal e vão-se acrescentando outros de ordem educativa e de formação. Desde cedo eu tinha muito encanto pelo compromisso com coisas que via não resolvidas na sociedade.”

A investigadora lembra-se de integrar um grupo de jovens ativistas de uma igreja, o que deu "consistência" ao encanto "pelo compromisso com coisas que via não resolvidas na sociedade", e "o curso de Serviço Social veio quase como um caminho de continuidade". Já foi coordenadora do Plano Nacional de Acção para a Inclusão, entre 2006 e 2010. Em 2016, foi condecorada com a Medalha de Honra da Segurança Social pelo trabalho no sistema de segurança social.

O compromisso com a justiça social esteve sempre presente porque "a ideia de mudar a sociedade é encantatória", admite ao Expresso. Desde o antigo Instituto de Assistência à Família ao grande compromisso com a área de política pública, Fernanda Rodrigues acompanhou todas as mudanças na Segurança Social, em trabalhos na linha da frente e na investigação, e o longo processo que Portugal tem enfrentado, desde que, em 1987, aderiu ao Programa de Luta Contra a Pobreza. Dá aulas desde 1976, coordenou os dois últimos programas de ação para a inclusão e integra uma comissão coordenadora do programa de luta contra a pobreza. Garante que "não há nada de mal na designação como assistência social" e que mantém o "posicionamento cívico e político de que ninguém quer viver num país de desigualdade": uns denunciam-na, outros intervêm e há ainda os que fazem "de conta que não veem".

Em entrevista ao Expresso, a investigadora da Comissão Coordenadora da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza e da Cruz Vermelha Portuguesa no Porto vinca que "a pobreza não é um problema da sociedade civil, é um problema das políticas públicas". Fernanda Rodrigues lembra que a “impossibilidade de acesso à primeira habitação por parte dos jovens é uma condição determinante de pobreza” e deixa um alerta: “Portugal é dos países que menos reconhecem civicamente a pobreza que tem, exatamente porque nos habituámos a conviver com ela. Fomos educados a achar que é tão natural ser pobre como não ser.”

Este é um período que a está a preocupar…|
É um período de preocupação. Todos os períodos como este, que trazem agravamento das condições de vida da população, são preocupantes. Quando isto acontece para toda a gente, acontece mais incidentemente para pessoas que já estavam em situação de desvantagem. Não há nenhum mistério nisto. Todos nós estamos a perceber o que significa o abaixamento do nível de vida. Falamos da crise inflacionista. As restrições que já estão a acontecer do ponto de vista alimentar e nutricional, do uso da habitação - que é um bem tão essencial e tão organizador das nossas vidas -, no âmbito da saúde... Muitas pessoas acabam por preterir a saúde porque têm outras coisas a que dar sentido.

“A verdade é que ninguém nos dá garantias de quando a crise inflacionária vai terminar. Estamos a tentar passar por isto como se fosse absolutamente circunstancial, mas não sabemos.”

O Serviço Nacional de Saúde deixa-nos muito bem vistos em todas as comparações internacionais, mas temos de cuidar do acesso em permanência. O acesso ao SNS é mais complicado para aqueles que têm dificuldades. Desde 2020 até agora, Portugal desceu cinco posições na comparação entre países da União Europeia. Isso é muito preocupante. Nós vínhamos a ter recentemente um trajeto de alguma melhoria. Assistir à demolição disso é fatal. Em primeiro lugar, para as pessoas, e, em segundo lugar, para aqueles que olham para a realidade com vontade de que ela seja outra.

A verdade é que ninguém nos dá garantias de quando isto vai terminar. Essa é outra incerteza. Estamos a tentar passar por isto como se fosse absolutamente circunstancial, mas não sabemos. Penso que terá repercussões, inclusivamente para a própria estratégia, que foi concebida há tão pouco tempo. Foi concebida já com muito pano de fundo relativamente ao agravamento, mas não com as tonalidades que ele vai ter.

Estamos a falar da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza, lançada no final do ano passado, que previa retirar 600 mil pessoas da situação de pobreza, entre as quais 170 mil crianças, e reduzir a taxa de pobreza monetária para 10%. Estes objetivos já não são realistas? Devem ser revistos?
Não se trata de rever os objetivos, mas de adequar os recursos a essa nova realidade. Eu continuo a achar que não temos qualquer razão para não considerar, por exemplo, que o combate à pobreza é um grande objetivo. Nesta estratégia, argumentou-se que não era possível interferir e alterar a situação de pobreza das crianças sem intervir nas famílias de que elas fazem parte. Não se pode considerar que por magia se retira as crianças da situação de pobreza. Houve esta perceção e este acordo; é um compromisso político. Não estou convencida de que esta prioridade se altere. Estou convencida de que vai ser preciso concretizá-la provavelmente com meios adicionais aos que são previstos. Em situações como esta, a primeira resposta é sempre esta: "Vamos responder como se isto fosse uma coisa para passar. Vamos fazer de conta que isto é uma circunstância, e, a par e passo, ver como isto se vai enraizando." Quando enraiza, estamos perante coisas consolidadas às quais é preciso responder de outra forma.

“A pobreza não é um problema da sociedade civil, é um problema das políticas públicas.”

Uma estratégia não resolve - e não vai resolver, de certeza -, mesmo no espaço a que se propõe, que são dez anos, o problema. A convicção necessária é de que a sua conceção correspondeu à prioridade para este tempo. Mas há muita coisa que se faz na luta contra a pobreza que, sendo de articulação com as políticas públicas, não é exclusivamente intervenção do Estado. Ainda assim, se há lugar em que o Estado tem de ter a primazia e um papel substantivo é na luta contra a pobreza. A sociedade civil, se fizer aquilo que tem feito - e bem -, é um grande apoio. Mas este não é um problema da sociedade civil, é um problema das políticas públicas.

As pessoas mais pobres são sempre mais afetadas em momentos como este, mas há também algumas franjas da sociedade a serem arrastadas para o limiar da pobreza.
Temos estes dois movimentos: os efeitos sentidos na pobreza já enraizada, mas também nas condições de empobrecimento de alguns grupos da população.

“A impossibilidade de acesso à primeira habitação por parte dos jovens é uma condição determinante de pobreza.”

Temos, por isso, perfis cada vez mais diversos da população pobre.
Sim, sobretudo de pessoas em risco de pobreza. No que diz respeito à habitação, lidamos com uma situação de dificuldade, quase impossibilidade de as pessoas ganharem autonomia. Sabe-se hoje, pelos estudos feitos, que a impossibilidade de acesso à primeira habitação por parte dos jovens é uma condição determinante de pobreza.

Nesta nova realidade de pobreza, insere-se uma grande variedade de pessoas e de territórios. As grandes zonas urbanas são muito atrativas de vários pontos de vista - como do ponto de vista cultural, por exemplo -, mas deixaram de responder às necessidades das pessoas, como, por exemplo, de alojamento. Não é muito habitual que hoje quem quer usufruir das coisas que se passam no Porto e é um jovem à procura de casa consiga fixar-se na cidade, a não ser que tenha suportes de outra natureza. Ou então estamos a incentivar os jovens e a dizer-lhes: "Tentem viver com outros." Isto é muito preocupante.

Nós só temos inventariadas na cidade do Porto as pessoas que pedem habitação social. Há uma espécie de autocondicionamento. As pessoas pedem habitação social porque estão numa determinada situação que lhes permite pensar nessa possibilidade. Mas há muitos jovens, muitas pessoas, que nem sequer pensam em concorrer à habitação social, por formação e trajeto de vida. Nós hoje estamos longe de saber qual é efetivamente a procura que a habitação tem na cidade do Porto, a não ser que recorramos aos privados que o sabem. A área da habitação é muito preocupante; é uma área em que vamos acumulando problemas.

A precariedade do trabalho é hoje uma condicionante imensa. Nós fazíamos parte de uma geração que tinha o seu salário e contava com ele. Muitos jovens vivem em situação de precariedade, sabendo que hoje têm trabalho - e até pode ser minimamente remunerado, mas também não é o caso -, mas desconhecendo se amanhã também será assim. Esta incerteza é também uma fonte imensa de precarização da vida. "Que garantias posso eu dar, numa relação, com o contrato que estabeleço?"

Há vários parâmetros para definir pobreza. Hoje é impossível também deixar de lado a pobreza energética e o peso das alterações climáticas. Esses parâmetros devem ser equacionados na definição de pobreza?
A própria estratégia toca nesse tema. Nós continuamos a falar da pobreza energética com um certo sentimento de vergonha. Chegámos às questões climáticas um bocadinho mais tarde do que outros. Isso não é problema nenhum, pode até ter uma vantagem, que é sabermos recuperar aquelas que têm sido as melhores práticas.

“Uma das consequências que vai ter a inflação é que as pensões, mesmo sendo atualizadas, nunca vão ser atualizadas tendo em conta o que está a acontecer realmente."

Ainda hoje a situação de desconforto habitacional - desconforto no sentido básico do termo, não é no sentido supérfluo - significa falar sobre o aquecimento e sobre a mobilidade dentro das habitações. Algumas pessoas não conseguem fazer o seu fim de vida em casa porque não têm condições internas de mobilidade no seu próprio espaço. Muitas vezes, há coisas que se podem fazer e há programas destinados a isso. Não podemos estar a assistir a um envelhecimento tão rápido da população sem querer interferir na qualidade desse envelhecimento. Temos de cuidar do envelhecimento de várias maneiras. Do ponto de vista das pensões, por exemplo. Provavelmente uma das consequências que vai ter a inflação é que as pensões, mesmo sendo atualizadas, nunca vão ser atualizadas tendo em conta o que está a acontecer realmente, mas através de uma percentagem calculada em média. Podemos assistir a um desgaste ainda maior das pensões, e, mais uma vez, das mínimas. As pessoas que recebem o RSI [rendimento social de inserção] também vão ter uma condição de maior empobrecimento. Aquilo que recebem do RSI vai chegar para menos do que chegava até agora, o que significa que ficam numa situação de acrescida precariedade.

"Há salários que são fontes de empobrecimento."

Dizia que a resposta à crise inflacionista tem seguido uma abordagem circunstancial. Essa não é a abordagem correta?
Nas questões da pobreza, há sempre dois andamentos. Temos um nível de pobreza consolidada, que exige medidas adequadas e que não são fáceis de implementar, reconheço. A interferência na pobreza da política de salários que temos não é um assunto que se resolva amanhã, mas tem de se resolver, porque há salários que são fontes de empobrecimento. Por outro lado, temos a pobreza que acontece no dia-a-dia: uma perda de uma casa, um acidente, situações que têm de ter uma resposta imediata. Eu não posso dizer a uma pessoa que fica sem habitação: "Olhe, estamos a desenvolver um programa de habitação ótimo. Se tiver calma, daqui a três anos terá uma casa." Cada um dos andamentos não tem de prejudicar o outro. Não podemos deixar de nos preocupar com o que acontece quotidianamente só porque temos um ótimo plano a longo prazo. Um dos grandes problemas das políticas públicas é andarem zangadas umas com as outras. Dificilmente conversam entre si. A conversa tem de ser interministerial e depois intersetorial. Tudo isto tem de fazer sentido.

Por falar em articulação, o que vê a falhar em termos de políticas locais e o que é que é falha do Estado central?
Durante muito tempo, as autarquias estiveram afastadas de um conjunto de competências que sempre foram mais reivindicadas pelo Estado central. O Estado acabou por estar responsabilizado por tarefas que melhor seriam representadas por entidades a nível local vinculadas às políticas públicas. Podem dizer que é ideologia, mas não é. Responsabilizar as políticas públicas é um ato cívico, é saber por que é que eu sou contribuinte, por que é que eu me disponibilizo, e outros para mim, relativamente a uma solidariedade nacional.

“Em muitos momentos tivemos a faca e o queijo na mão e cortámos a mão, em vez de cortarmos o queijo. É preciso aproveitar a oportunidade.”

Estamos, neste momento, a atravessar um período muito interessante desse ponto de vista, com a descentralização de algumas competências do Estado central para o poder local. Este pode ser um caminho de diálogo, em primeiro lugar, porque as políticas centrais tendencialmente têm um perfil homogeneizador da realidade, têm de falar para todos. Mas depois, na sua aplicação local, elas devem ter de conviver com a diversidade. É uma oportunidade ótima para enriquecer as políticas nacionais, e não as desmerece. Toma-as como referencial de partida e depois tenta, em cada um dos locais, uma aplicação que seja consentânea com as características de cada local e com os próprios recursos. Há locais que têm recursos do ponto de vista da solidariedade que são ótimos para articulação com estas políticas. Se não se fizer acontecer, o que vamos ter a nível local é mini políticas nacionais. Em muitos momentos tivemos a faca e o queijo na mão e cortámos a mão, em vez de cortarmos o queijo. É preciso aproveitar a oportunidade.

Outro tema que lhe é caro é o ensino superior. Muitos jovens frequentam o ensino superior, alguns com acesso a bolsas, mas continuam, depois disso, a serem pobres. A esperança de quebrar esse ciclo de pobreza muitas vezes não se concretiza. O que falha no modelo social de ensino?
Só temos em Portugal algumas áreas de preferência: os atletas de alta competição, as pessoas que vêm das ilhas... Mas depois temos dificuldade em acomodar outros públicos. Está aberta outra via interessante: que a entrada no ensino superior se faça pela via profissionalizante. Quem entra nessas condições frequentemente entra com armas desiguais. Não basta dizer "temos a porta aberta, todos podem entrar". Essa é uma falsa noção de igualdade e de acessibilidade. Para se entrar, é preciso ter as condições de entrada. Depois da entrada, é preciso ter condições para ficar. É um trabalho que deveria ser feito. As universidades têm serviços sociais, mas muitas vezes estão muito mais associados à atribuição das bolsas do que à atenção aos percursos de alguns alunos que precisariam de um suplemento de vantagem para os igualar. Há muito trabalho a fazer no ensino superior, para eliminarmos a ideia - que vai sendo esbatida - de que muitos são chamados mas poucos são escolhidos.

Mas temos melhorado muito. Há hoje famílias analfabetas que têm jovens no ensino superior. Fizemos um longo percurso num período relativamente escasso. Temos de saber o que isto significa do ponto de vista do uso pleno das instituições. Há um desenho que diz "serviço público" e "entrada livre", mas tem a porta de um tamanho menor do que o dos cidadãos. Ninguém entra naquela porta. Não chega dizer "a porta está aberta".

Hoje temos uma geração tão qualificada e tão preterida em tantas coisas, designadamente no trabalho. Muitas vezes, o que os jovens têm à sua espera não é proporcional à expectativa e às competências que criaram.

Isabel Jonet argumentou que poderia ser útil fornecer alguma pedagogia quanto a apoios extraordinários distribuídos pelo Governo. Falta pedagogia? E em que contexto essa pedagogia poderia ser apresentada?
A pedagogia faz-nos falta a todos. Numa sociedade de consumo, querermos fazer pedagogia exclusivamente com aqueles que têm menos dinheiro é começar pela porta errada. Se há pedagogia a fazer é relativamente ao grande consumo. Há, como há relativamente à habitação, um modo de usar, que resulta, não do ato de ensinar, mas da ideia de uma boa convivência. Pode, nesse sentido, fazer-se alguma coisa, mas se isso for alargado a toda a sociedade: por exemplo, se for feito para um grupo de jovens, independentemente se recebem RSI ou outra coisa. Tenho muitas dúvidas quanto a singularizar isto para pessoas em situação de pobreza, e parece-me que socialmente sempre configurará como discriminação. É mais um estigma em cima da pessoa.

Falta sobretudo pedagogia para compreender que o combate à pobreza favorece todos?
Falta. Somos um país ainda em que o reconhecimento da pobreza é comparativamente mais baixo ao de outros países. Isto tem uma história. Como chegámos muito tarde aos direitos sociais e ao estado de bem-estar, ainda hoje temos sob vigilância algumas situações que foram durante muito tempo preteridas nas nossas sociedades. Portugal, Itália, Grécia são países que menos reconhecem civicamente a pobreza que têm, exatamente porque nos habituámos a conviver com ela. Fomos educados a achar que é tão natural ser pobre como não ser. Não, não é, ser pobre resulta das condições de desenvolvimento da nossa sociedade. Não é natural.

“Ninguém gosta nem quer viver num país com pobreza. Só nos apercebemos disto quando temos os pobres a bater à nossa porta.”

Tivemos uma longa conversa, quando da elaboração da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza, sobre isso, e lá ficou plasmado o sexto eixo: considerar a pobreza como um desígnio nacional. Enquanto não o fizermos, vamos ter as pessoas que lidam com as finanças, que ligam com a cultura, a acharem que não é nada consigo, que a pobreza é algo das políticas sociais e, de preferência, algo para que as organizações não governamentais façam alguma coisa. A pobreza tem de ser um desígnio das políticas públicas que se fazem assessorar pela sociedade civil. Ninguém gosta nem quer viver num país com pobreza. Só nos apercebemos disto quando temos os pobres a bater à nossa porta.

Porque é que a pobreza é sempre atirada para essa espécie de anonimato?
Temos, neste momento, cerca de 22% de pessoas em situação de pobreza; uma em cada cinco. E eu sou incapaz de reconhecer essas pessoas? Se quiser enumerar, entre as pessoas que conheço, estes 22%, tenho dificuldade, o que significa que há muitas pessoas com quem eu privo que estão nesta situação e não dão conta disso. Se a pessoa está nessa situação, não tem de se envergonhar dela, porque não é sua responsabilidade individual. Claro que há condições individuais que prejudicam a possibilidade de sair da pobreza. Tem que ver com a construção social que fizemos, em que uns singraram e outros ficaram para trás. Há gente que está para trás desde os tempos dos trisavós e por aí fora. Há famílias tradicionalmente pobres e nós convivemos com isso. Colocar isto como desígnio nacional é dizer: a pobreza é com todos. Todos têm de ser responsabilizados, não tem de ser profissionalmente, mas enquanto cidadãos. Quando alguém vê uma pessoa em situação de sem-abrigo a ser apoiada e diz "estou a descontar para isto", está a fazer um mau entendimento do problema. Temos de querer que isso seja resolvido, temos de estar disponíveis para isso, para fazer com que as políticas públicas que têm de responder a isto funcionem.

Temos boas razões e estudos para sabermos a raiz de alguns problemas de pobreza. Se continuarmos a ter políticas laborais e económicas que favorecem a condição de pobreza, as políticas sociais estão sempre a correr atrás do prejuízo.

“Hoje em dia, uma pessoa chega a um lugar qualquer, diz que recebe o RSI e é olhada de imediato como subsidiodependente, preguiçosa, uma série de coisas.”

O RSI veio para dimunuir a pobreza. O que conseguiu até agora? Diminuiu a severidade da pobreza. Não retirou uma única pessoa da situação de pobreza, exceto quem entrou no mercado de trabalho. Com o subsídio em si, não. Há também ainda hoje muitas medidas de política que são mal entendidas pelas pessoas, o que se repercute na taxa de não utilização dessas políticas. Há pessoas que não acedem porque não têm a informação certa. De quem é a responsabilidade? É sempre das pessoas, nunca é dos serviços que não explicam... Hoje em dia, uma pessoa chega a um lugar qualquer, diz que recebe o RSI e é olhada de imediato como subsidiodependente, preguiçosa, uma série de coisas. Quando implementámos o RSI, nós sabíamos que isso ia acontecer. Aconteceu algo semelhante em França. Ainda há muita desconfiança em relação ao que se pode fazer no combate à pobreza.

19.12.22

Como uma reportagem sobre pobreza mobilizou os leitores para realizar um sonho de uma família

Sónia Calheiros, opinião, in Visão 

Depois de dar o seu testemunho sobre como se vive com um salário baixo, numa grande reportagem da VISÃO sobre pobreza extrema, e graças ao altruísmo de três leitores, António Grega e a sua família numerosa foram, pela primeira vez, ver os animais no Jardim Zoológico. Crónica da jornalista, uma das autoras da reportagem, que os acompanhouEm que estarão todos a pensar?”, questionei-me antes de sair de casa. Não tardaria em saber a resposta, quando me encontrei com o António, a Cátia e os sete filhos à porta do Jardim Zoológico de Lisboa. O sábado não tinha acordado soalheiro, mas, rapidamente, a chuva fez uma pausa, permitindo que o passeio fosse apenas abençoado, em vez de molhado.

Em setembro, quando conheci António Grega, 41 anos, espantei-me com a sua serenidade, com a ausência de qualquer nível de fúria ou maledicência ao contar-me os pormenores da sua vida quotidiana. Foi-me apresentado através da Cáritas Diocesana de Setúbal como o caso de uma família pobre, que eu tanto procurava para a grande reportagem Vidas de Trabalho Sem Saírem da Miséria, entretanto publicada na edição n.º 1549 da VISÃO, a 10 de novembro.

Procurava casos de pessoas em situação vulnerável, das mais carenciadas da sociedade portuguesa, famílias de homens e mulheres que trabalham, mas por receberem um salário tão precário, não conseguem ultrapassar o patamar mais baixo da sobrevivência.

A numerosa família Grega faz parte dos 2,3 milhões de pessoas que, em Portugal, vivem com o rendimento mensal abaixo do limiar de risco de pobreza, fixado em €554,41 (€6 653/ano). António é um dos 500 mil pobres que trabalham.

O arranque da reportagem, centrado nesta família de Setúbal, sensibilizou muitos dos nossos leitores. Saber que nem todos podem ir almoçar a um restaurante de fast food, com o preço da comida mais em conta, ou que ainda há sonhos por realizar, como ir, pela primeira vez, ao Jardim Zoológico, e consigo levar os filhos, é difícil de encaixar.

A generosidade de três leitores – primeiro o Rui, depois a Berta e, por fim, a Inês (preferem manter o anonimato e a discrição) – chegou em forma de e-mail. Todos estavam dispostos a oferecer as entradas para o Zoo, a rondar os duzentos euros para os nove, e ainda foi acrescentado o almoço cheio de hambúrgueres gulosos (com sobremesas oferecidas pelo McDonald’s) e os bilhetes de comboio de ida e volta. Só assim António, Cátia e as sete crianças entre os 4 e os 14 anos, conseguiram passar um sábado cheio de alegria e diversão.

Tiveram sorte. Já dentro do Zoo, ainda chegaram a tempo de ver o primeiro espetáculo dos golfinhos e, de seguida, uma surpresa. Do farol da baía saía o simpático Pai Natal com os seus gritos carismáticos “Oh, Oh, Oh, Oh!” e a sineta a tocar a repique. Seguiram-se muitas palmas e gargalhadas desassombradas do público do anfiteatro; reconfortantes para quem observa.

António estava entusiasmado, queria muito ver as girafas. E não se ensaiou nada em posar para a fotografia junto dela. Entre os filhos, o mais velho só perguntava pelos macacos e uma das meninas de 13 anos ansiava pelo encontro, frente a frente, com a chita. Os caminhos do parque foram-nos levando a descobrir as araras, os pelicanos, os tucanos, os elefantes, os hipopótamos e muito, muito mais.

Afinal, na viagem de comboio, os mais novos vinham a pensar nos animais que mais queriam ver. Tão simples, quanto isso. Mas na cabeça dos adultos havia outras preocupações.

O Rendimento Social de Inserção (RSI), atribuído a Cátia por estar desempregada, costumava ser €467, mas recentemente foi reduzido para 233 euros. Uma conta impercetível para o casal que tem tido uma verdadeira batalha com os técnicos da Segurança Social para perceberem como se fazem os cálculos.

Se Cátia continua desempregada, António continua a trabalhar, sem o salário ter sido aumentado, e os filhos continuam a ser menores de idade, porque desce para metade o valor deste apoio estatal para as pessoas em situação mais vulnerável? É esta a dúvida que lhes assombra os dias.

"O RSI veio para diminuir a pobreza, mas até agora só diminuiu a severidade da pobreza. Não retirou uma única pessoa dessa situação"

Catarina Maldonado Vasconcelos, in Expresso

Fernanda Rodrigues, da Comissão Coordenadora da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza e da Cruz Vermelha Portuguesa no Porto, admite preocupação perante o período que o mundo enfrenta. Os mais pobres acabarão invariavelmente por sentir ainda com mais força o impacto da crise financeira, mas Portugal tem um problema cívico de reconhecimento da pobreza. “Fomos educados a achar que é tão natural ser pobre como não ser”, diagnostica, frisando, desde logo: “Não, não é”

Inclusão, assistência e ação social sempre fizeram parte das preocupações de Fernanda Rodrigues, antiga consultora da Comissão Europeia na equipa portuguesa de avaliação do Programa Pobreza II. Já não consegue recuar ao momento divisor de águas, aquele em que a consciência soprou como um apelo para o exercício profissional. “Em todas as trajetórias, juntam-se elementos de ordem pessoal e vão-se acrescentando outros de ordem educativa e de formação. Desde cedo eu tinha muito encanto pelo compromisso com coisas que via não resolvidas na sociedade.”

A investigadora lembra-se de integrar um grupo de jovens ativistas de uma igreja, o que deu "consistência" ao encanto "pelo compromisso com coisas que via não resolvidas na sociedade", e "o curso de Serviço Social veio quase como um caminho de continuidade". Já foi coordenadora do Plano Nacional de Acção para a Inclusão, entre 2006 e 2010. Em 2016, foi condecorada com a Medalha de Honra da Segurança Social pelo trabalho no sistema de segurança social.

O compromisso com a justiça social esteve sempre presente porque "a ideia de mudar a sociedade é encantatória", admite ao Expresso. Desde o antigo Instituto de Assistência à Família ao grande compromisso com a área de política pública, Fernanda Rodrigues acompanhou todas as mudanças na Segurança Social, em trabalhos na linha da frente e na investigação, e o longo processo que Portugal tem enfrentado, desde que, em 1987, aderiu ao Programa de Luta Contra a Pobreza. Dá aulas desde 1976, coordenou os dois últimos programas de ação para a inclusão e integra uma comissão coordenadora do programa de luta contra a pobreza. Garante que "não há nada de mal na designação como assistência social" e que mantém o "posicionamento cívico e político de que ninguém quer viver num país de desigualdade": uns denunciam-na, outros intervêm e há ainda os que fazem "de conta que não veem".

Em entrevista ao Expresso, a investigadora da Comissão Coordenadora da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza e da Cruz Vermelha Portuguesa no Porto vinca que "a pobreza não é um problema da sociedade civil, é um problema das políticas públicas". Fernanda Rodrigues lembra que a “impossibilidade de acesso à primeira habitação por parte dos jovens é uma condição determinante de pobreza” e deixa um alerta: “Portugal é dos países que menos reconhecem civicamente a pobreza que tem, exatamente porque nos habituámos a conviver com ela. Fomos educados a achar que é tão natural ser pobre como não ser.”

Este é um período que a está a preocupar…|

É um período de preocupação. Todos os períodos como este, que trazem agravamento das condições de vida da população, são preocupantes. Quando isto acontece para toda a gente, acontece mais incidentemente para pessoas que já estavam em situação de desvantagem. Não há nenhum mistério nisto. Todos nós estamos a perceber o que significa o abaixamento do nível de vida. Falamos da crise inflacionista. As restrições que já estão a acontecer do ponto de vista alimentar e nutricional, do uso da habitação - que é um bem tão essencial e tão organizador das nossas vidas -, no âmbito da saúde... Muitas pessoas acabam por preterir a saúde porque têm outras coisas a que dar sentido.






“A verdade é que ninguém nos dá garantias de quando a crise inflacionária vai terminar. Estamos a tentar passar por isto como se fosse absolutamente circunstancial, mas não sabemos.”



O Serviço Nacional de Saúde deixa-nos muito bem vistos em todas as comparações internacionais, mas temos de cuidar do acesso em permanência. O acesso ao SNS é mais complicado para aqueles que têm dificuldades. Desde 2020 até agora, Portugal desceu cinco posições na comparação entre países da União Europeia. Isso é muito preocupante. Nós vínhamos a ter recentemente um trajeto de alguma melhoria. Assistir à demolição disso é fatal. Em primeiro lugar, para as pessoas, e, em segundo lugar, para aqueles que olham para a realidade com vontade de que ela seja outra.

A verdade é que ninguém nos dá garantias de quando isto vai terminar. Essa é outra incerteza. Estamos a tentar passar por isto como se fosse absolutamente circunstancial, mas não sabemos. Penso que terá repercussões, inclusivamente para a própria estratégia, que foi concebida há tão pouco tempo. Foi concebida já com muito pano de fundo relativamente ao agravamento, mas não com as tonalidades que ele vai ter.

Estamos a falar da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza, lançada no final do ano passado, que previa retirar 600 mil pessoas da situação de pobreza, entre as quais 170 mil crianças, e reduzir a taxa de pobreza monetária para 10%. Estes objetivos já não são realistas? Devem ser revistos?
Não se trata de rever os objetivos, mas de adequar os recursos a essa nova realidade. Eu continuo a achar que não temos qualquer razão para não considerar, por exemplo, que o combate à pobreza é um grande objetivo. Nesta estratégia, argumentou-se que não era possível interferir e alterar a situação de pobreza das crianças sem intervir nas famílias de que elas fazem parte. Não se pode considerar que por magia se retira as crianças da situação de pobreza. Houve esta perceção e este acordo; é um compromisso político. Não estou convencida de que esta prioridade se altere. Estou convencida de que vai ser preciso concretizá-la provavelmente com meios adicionais aos que são previstos. Em situações como esta, a primeira resposta é sempre esta: "Vamos responder como se isto fosse uma coisa para passar. Vamos fazer de conta que isto é uma circunstância, e, a par e passo, ver como isto se vai enraizando." Quando enraiza, estamos perante coisas consolidadas às quais é preciso responder de outra forma.


“A pobreza não é um problema da sociedade civil, é um problema das políticas públicas.”



Uma estratégia não resolve - e não vai resolver, de certeza -, mesmo no espaço a que se propõe, que são dez anos, o problema. A convicção necessária é de que a sua conceção correspondeu à prioridade para este tempo. Mas há muita coisa que se faz na luta contra a pobreza que, sendo de articulação com as políticas públicas, não é exclusivamente intervenção do Estado. Ainda assim, se há lugar em que o Estado tem de ter a primazia e um papel substantivo é na luta contra a pobreza. A sociedade civil, se fizer aquilo que tem feito - e bem -, é um grande apoio. Mas este não é um problema da sociedade civil, é um problema das políticas públicas.

As pessoas mais pobres são sempre mais afetadas em momentos como este, mas há também algumas franjas da sociedade a serem arrastadas para o limiar da pobreza.
Temos estes dois movimentos: os efeitos sentidos na pobreza já enraizada, mas também nas condições de empobrecimento de alguns grupos da população.

“A impossibilidade de acesso à primeira habitação por parte dos jovens é uma condição determinante de pobreza.”

Temos, por isso, perfis cada vez mais diversos da população pobre.

Sim, sobretudo de pessoas em risco de pobreza. No que diz respeito à habitação, lidamos com uma situação de dificuldade, quase impossibilidade de as pessoas ganharem autonomia. Sabe-se hoje, pelos estudos feitos, que a impossibilidade de acesso à primeira habitação por parte dos jovens é uma condição determinante de pobreza.

Nesta nova realidade de pobreza, insere-se uma grande variedade de pessoas e de territórios. As grandes zonas urbanas são muito atrativas de vários pontos de vista - como do ponto de vista cultural, por exemplo -, mas deixaram de responder às necessidades das pessoas, como, por exemplo, de alojamento. Não é muito habitual que hoje quem quer usufruir das coisas que se passam no Porto e é um jovem à procura de casa consiga fixar-se na cidade, a não ser que tenha suportes de outra natureza. Ou então estamos a incentivar os jovens e a dizer-lhes: "Tentem viver com outros." Isto é muito preocupante.

Nós só temos inventariadas na cidade do Porto as pessoas que pedem habitação social. Há uma espécie de autocondicionamento. As pessoas pedem habitação social porque estão numa determinada situação que lhes permite pensar nessa possibilidade. Mas há muitos jovens, muitas pessoas, que nem sequer pensam em concorrer à habitação social, por formação e trajeto de vida. Nós hoje estamos longe de saber qual é efetivamente a procura que a habitação tem na cidade do Porto, a não ser que recorramos aos privados que o sabem. A área da habitação é muito preocupante; é uma área em que vamos acumulando problemas.

A precariedade do trabalho é hoje uma condicionante imensa. Nós fazíamos parte de uma geração que tinha o seu salário e contava com ele. Muitos jovens vivem em situação de precariedade, sabendo que hoje têm trabalho - e até pode ser minimamente remunerado, mas também não é o caso -, mas desconhecendo se amanhã também será assim. Esta incerteza é também uma fonte imensa de precarização da vida. "Que garantias posso eu dar, numa relação, com o contrato que estabeleço?"

Há vários parâmetros para definir pobreza. Hoje é impossível também deixar de lado a pobreza energética e o peso das alterações climáticas. Esses parâmetros devem ser equacionados na definição de pobreza?
A própria estratégia toca nesse tema. Nós continuamos a falar da pobreza energética com um certo sentimento de vergonha. Chegámos às questões climáticas um bocadinho mais tarde do que outros. Isso não é problema nenhum, pode até ter uma vantagem, que é sabermos recuperar aquelas que têm sido as melhores práticas.
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“Uma das consequências que vai ter a inflação é que as pensões, mesmo sendo atualizadas, nunca vão ser atualizadas tendo em conta o que está a acontecer realmente."

Ainda hoje a situação de desconforto habitacional - desconforto no sentido básico do termo, não é no sentido supérfluo - significa falar sobre o aquecimento e sobre a mobilidade dentro das habitações. Algumas pessoas não conseguem fazer o seu fim de vida em casa porque não têm condições internas de mobilidade no seu próprio espaço. Muitas vezes, há coisas que se podem fazer e há programas destinados a isso. Não podemos estar a assistir a um envelhecimento tão rápido da população sem querer interferir na qualidade desse envelhecimento. Temos de cuidar do envelhecimento de várias maneiras. Do ponto de vista das pensões, por exemplo. Provavelmente uma das consequências que vai ter a inflação é que as pensões, mesmo sendo atualizadas, nunca vão ser atualizadas tendo em conta o que está a acontecer realmente, mas através de uma percentagem calculada em média. Podemos assistir a um desgaste ainda maior das pensões, e, mais uma vez, das mínimas. As pessoas que recebem o RSI [rendimento social de inserção] também vão ter uma condição de maior empobrecimento. Aquilo que recebem do RSI vai chegar para menos do que chegava até agora, o que significa que ficam numa situação de acrescida precariedade.

"Há salários que são fontes de empobrecimento."

Dizia que a resposta à crise inflacionista tem seguido uma abordagem circunstancial. Essa não é a abordagem correta?
Nas questões da pobreza, há sempre dois andamentos. Temos um nível de pobreza consolidada, que exige medidas adequadas e que não são fáceis de implementar, reconheço. A interferência na pobreza da política de salários que temos não é um assunto que se resolva amanhã, mas tem de se resolver, porque há salários que são fontes de empobrecimento. Por outro lado, temos a pobreza que acontece no dia-a-dia: uma perda de uma casa, um acidente, situações que têm de ter uma resposta imediata. Eu não posso dizer a uma pessoa que fica sem habitação: "Olhe, estamos a desenvolver um programa de habitação ótimo. Se tiver calma, daqui a três anos terá uma casa." Cada um dos andamentos não tem de prejudicar o outro. Não podemos deixar de nos preocupar com o que acontece quotidianamente só porque temos um ótimo plano a longo prazo. Um dos grandes problemas das políticas públicas é andarem zangadas umas com as outras. Dificilmente conversam entre si. A conversa tem de ser interministerial e depois intersetorial. Tudo isto tem de fazer sentido.

Por falar em articulação, o que vê a falhar em termos de políticas locais e o que é que é falha do Estado central?
Durante muito tempo, as autarquias estiveram afastadas de um conjunto de competências que sempre foram mais reivindicadas pelo Estado central. O Estado acabou por estar responsabilizado por tarefas que melhor seriam representadas por entidades a nível local vinculadas às políticas públicas. Podem dizer que é ideologia, mas não é. Responsabilizar as políticas públicas é um ato cívico, é saber por que é que eu sou contribuinte, por que é que eu me disponibilizo, e outros para mim, relativamente a uma solidariedade nacional.

“Em muitos momentos tivemos a faca e o queijo na mão e cortámos a mão, em vez de cortarmos o queijo. É preciso aproveitar a oportunidade.”

Estamos, neste momento, a atravessar um período muito interessante desse ponto de vista, com a descentralização de algumas competências do Estado central para o poder local. Este pode ser um caminho de diálogo, em primeiro lugar, porque as políticas centrais tendencialmente têm um perfil homogeneizador da realidade, têm de falar para todos. Mas depois, na sua aplicação local, elas devem ter de conviver com a diversidade. É uma oportunidade ótima para enriquecer as políticas nacionais, e não as desmerece. Toma-as como referencial de partida e depois tenta, em cada um dos locais, uma aplicação que seja consentânea com as características de cada local e com os próprios recursos. Há locais que têm recursos do ponto de vista da solidariedade que são ótimos para articulação com estas políticas. Se não se fizer acontecer, o que vamos ter a nível local é mini políticas nacionais. Em muitos momentos tivemos a faca e o queijo na mão e cortámos a mão, em vez de cortarmos o queijo. É preciso aproveitar a oportunidade.

Outro tema que lhe é caro é o ensino superior. Muitos jovens frequentam o ensino superior, alguns com acesso a bolsas, mas continuam, depois disso, a serem pobres. A esperança de quebrar esse ciclo de pobreza muitas vezes não se concretiza. O que falha no modelo social de ensino?
Só temos em Portugal algumas áreas de preferência: os atletas de alta competição, as pessoas que vêm das ilhas... Mas depois temos dificuldade em acomodar outros públicos. Está aberta outra via interessante: que a entrada no ensino superior se faça pela via profissionalizante. Quem entra nessas condições frequentemente entra com armas desiguais. Não basta dizer "temos a porta aberta, todos podem entrar". Essa é uma falsa noção de igualdade e de acessibilidade. Para se entrar, é preciso ter as condições de entrada. Depois da entrada, é preciso ter condições para ficar. É um trabalho que deveria ser feito. As universidades têm serviços sociais, mas muitas vezes estão muito mais associados à atribuição das bolsas do que à atenção aos percursos de alguns alunos que precisariam de um suplemento de vantagem para os igualar. Há muito trabalho a fazer no ensino superior, para eliminarmos a ideia - que vai sendo esbatida - de que muitos são chamados mas poucos são escolhidos.

Mas temos melhorado muito. Há hoje famílias analfabetas que têm jovens no ensino superior. Fizemos um longo percurso num período relativamente escasso. Temos de saber o que isto significa do ponto de vista do uso pleno das instituições. Há um desenho que diz "serviço público" e "entrada livre", mas tem a porta de um tamanho menor do que o dos cidadãos. Ninguém entra naquela porta. Não chega dizer "a porta está aberta".

Hoje temos uma geração tão qualificada e tão preterida em tantas coisas, designadamente no trabalho. Muitas vezes, o que os jovens têm à sua espera não é proporcional à expectativa e às competências que criaram.

21.11.22

Numa década, o RSI perdeu força para reduzir pobreza

Maria Caetano, in Negócios online

Segundo o novo relatório de avaliação às medidas de rendimento mínimo adotadas nos diferentes Estados-membros, o valor do RSI representava em 2019 apenas 38% do limiar de pobreza nacional (alisado em valores de três anos).

Apesar de ter sido historicamente o primeiro rendimento mínimo da UE, surgindo em 1996, o Rendimento Social de Inserção (RSI) é hoje apenas o 23.º do bloco em capacidade de reduzir a intensidade da pobreza, mostram os dados da Comissão Europeia publicados no último mês. E a adequação da prestação tem vindo a recuar.

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6.10.22

Idosos na pobreza. "Alguém me diga como se consegue viver com 189 euros"

Por Maria Augusta Casaca, in TSF

Rosa e Teresa são dois rostos de uma velhice com escassos rendimentos. São os idosos pobres em Portugal.

Ganham muito menos de 554 euros líquidos por mês e, pela estatística, fazem parte dos inúmeros idosos pobres existentes em Portugal. Rosa tem 82 anos. Teresa, mais nova, já atingiu os 66 anos.

Rosa trabalhou toda a vida como calista nos melhores cabeleireiros de Lisboa e mais tarde em aldeamentos de luxo no Algarve.

Hoje tem uma pensão de miséria." Agora, com os aumentos que houve, ganho 390 euros", conta. O marido, antigo marítimo, recebe menos de 300 euros. Embora a renda tenha sido atualizada, Rosa explica que "a sua sorte sorte é ter uma casa da câmara [municipal]", onde paga menos de 60 euros." Se eu não tivesse esta ajuda não era fácil, foram elas que fizeram com que não me faltasse nada em casa". Rosa emociona-se. Elas, são as voluntárias da associação Refood onde vai buscar refeições. E é essa ajuda que lhe vale nos dias que correm. Com 82 anos, só deixou de trabalhar há três, quando o marido adoeceu com cancro e teve que começar a ser cuidadora. Até há pouco tempo fazia limpezas e passava a ferro. "Quando nós somos novas as clientes são todas muito queridas, quando atingimos uma determinada idade [o trabalho] começa a falhar", lamenta.

O caso de Teresa, embora diferente, não deixa de ser igualmente dramático. Recebe também ajuda alimentar da mesma instituição. Esta mulher, de 66 anos tem nacionalidade portuguesa mas viveu quase toda a vida no Brasil. Regressou há 4 anos e, para sobreviver, fazia limpezas. Trabalhava muitas horas mas conseguia pagar todas as suas contas.

No entanto, há cerca de dois anos, uma queda deixou-a incapacitada para o trabalho. "Dava para me sustentar, pagava a minha renda, depois tive esta fatalidade", conta. Vive num anexo, e por caridade da proprietária, paga o que pode, quando pode. Recebe o Rendimento Social de Inserção." São 189 euros, se alguém consegue viver com isso que me ensine, porque não dá". Teresa entrou agora com o pedido de reforma mas, como tem poucos descontos em Portugal, não espera grande aumento nos seus rendimentos.

Estas duas idosas, que em tempos já viveram em desafogo monetário, hoje necessitam de ser ajudadas. Mesmo assim, nos seus 82 anos, Rosa não baixa os braços. "Sou uma padeira de Aljubarrota", afirma a sorrir. "Tem que ser, tem que ser", diz com a voz embargada.

1.8.22

Famílias em situação de pobreza ou vulnerabilidade vão ter acesso a um rendimento social em caso de emergências

 in Expresso das Ilhas

As famílias em situação de pobreza ou vulnerabilidade vão ter acesso a um rendimento social emergencial pago pelo Estado em caso de desastres naturais, epidemias, surtos ou choques económicos, segundo o Governo.

"O rendimento social de inclusão emergencial consiste numa prestação incluída no sistema de proteção social ao nível da rede de segurança, visando assegurar aos agregados familiares em situação de pobreza e/ou vulnerabilidade social recursos que contribuam para a satisfação das suas necessidades mínimas em contextos de emergência sócio assistencial", lê-se no decreto-lei aprovado pelo Governo, de 27 de Julho e que entrou hoje em vigor.

O diploma que institui esta nova prestação social estipula que o rendimento "é atribuído por um período mínimo de três meses, não podendo ultrapassar os 12 meses após a ocorrência da situação de emergência" a que lhe deu origem.

O valor mensal do rendimento social de inclusão emergencial ainda será fixado por resolução do Conselho de Ministros, refere-se no diploma, que justifica a sua criação, entre outros motivos, com exemplo do período de restrições vivido durante a pandemia de covid-19.

Estabelece que são consideradas situações de emergência sócio assistencial as que são causadas por desastres naturais, como secas, ciclones tropicais com inundações repentinas e deslizamentos de terras ou erupções vulcânicas -- fenómenos com um longo historial de ocorrência em Cabo Verde -, bem como terramotos. Ainda epidemias e surtos, ou "choques económicos" causados pelos fenómenos anteriores ou por fatores externos.

A situação de emergência sócio assistencial "pode verificar-se em relação a todo ou parte do território nacional" e a "prestação social de emergência pressupõe uma declaração de situação de alerta, contingência ou calamidade, incluindo o estado de sítio ou de emergência", podendo ser "acumulável com outras prestações sociais".

Para ter acesso a este apoio, o agregado familiar deve obrigatoriamente estar inscrito no Cadastro Social Único e residir na área afectada pelo "fenómeno causador da situação de emergência sócio assistencial", entre outras exigências previstas pelo decreto-lei que o criou.

O diploma recorda que enquanto Pequeno Estado Insular em Desenvolvimento e "em função das suas condições geofísicas, localização geográfica e seu modelo de desenvolvimento económico e ocupação territorial", Cabo Verde está exposto a secas, os ciclones tropicais que trazem inundações repentinas e deslizamentos de terras, as erupções vulcânicas e os terramotos.

"De igual modo, tem enfrentado epidemias e surtos, como a covid-19. A proteção social tem um papel central na gestão de crises causadas por choques e/ou desastres, tal como ficou demonstrado no combate à pandemia da covid-19, em que a intervenção dos serviços de proteção social foi fundamental para acudir em tempo útil, a população mais vulnerável, implementando-se o Rendimento Social de Inclusão Emergencial", recorda-se no decreto-lei.

Acrescenta-se que a Estratégia Nacional de Redução de Riscos de Desastres (ENRRD), aprovada em outubro de 2018, "inclui as transferências de renda como um dos mecanismos de proteção social a serem usados nas diferentes fases do ciclo de gestão de desastres e que o Quadro de Recuperação Pós-Desastre (QRP), "sublinha que um dos princípios orientadores para os programas é a recuperação inclusiva no sentido que as comunidades mais pobres e vulneráveis são as mais suscetíveis a riscos e choques futuros e, por este motivo, os programas de recuperação pós-desastres serão utilizados para fortalecer a resiliência".

O Banco Mundial estima que o crescimento económico registado em 2021 em Cabo Verde permitiu reduzir em 6,5% na pobreza no arquipélago, apesar de reconhecer que a pandemia fez reverter os ganhos dos últimos anos, afetando ainda 33% de uma população inferior a 500 mil habitantes.

De acordo com o relatório "Cabo Verde EconomicUpdate 2022", apresentado em 26 de Julho na Praia pelo Banco Mundial, a taxa nacional de pobreza - segundo a instituição estabelecida num rendimento inferior a 5,4 dólares (5,3 euros) por dia, por pessoa - aumentou no arquipélago de 28% em 2019 para 35% em 2020, "revertendo o progresso feito desde 2015".

"A recuperação económica em 2021 levou a uma ligeira redução da pobreza" em Cabo Verde, que segundo o Banco Mundial rondava no final do ano os 33%, tratando-se por isso de uma "redução da pobreza efetiva de 6,5% em comparação com 2020".

O arquipélago enfrenta uma profunda crise económica e financeira, decorrente da forte quebra na procura turística desde março de 2020 -- setor que garante 25% do Produto Interno Bruto (PIB) e do emprego -, devido às restrições impostas com a pandemia de covid-19.

Em 2020, registou uma recessão económica histórica, equivalente a 14,8% do PIB, seguindo-se um crescimento de 7% em 2021 impulsionado pela retoma da procura turística, sobretudo no último trimestre. Para 2022, devido às consequências económicas da guerra na Ucrânia, nomeadamente a escalada de preços, o Governo cabo-verdiano baixou a previsão de crescimento de 6% para 4%.
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Fact Check. "Patriarca cigano de Beja" lamenta valor do Rendimento Social de Inserção: "3.500 euros não dá para a gente se governar"

João Gama,  in o Observador

"3.500 euros não dá para a gente se governar" lê-se na crónica "A Voz do Cigano", de uma associação de Castelo Branco. Nem artigo nem imagem nem valor — nada corresponde à verdade.

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A frase

"Patriarca cigano de Beja lamenta: 3500 euros de RSI para 4 pessoas já não dá para a gente se governar."

— Utilizador de Facebook, 05 julho 2022

Errado

Está a ser partilhada uma publicação no Facebook com uma imagem de uma crónica — “A Voz do Cigano” —, com uma fotografia de um alegado “patriarca cigano de Beja” a lamentar o atual valor do Rendimento Social de Inserção (RSI): “3500 euros de RSI para 4 pessoas já não dá para a gente se governar”.

A publicação é partilhada por um utilizador de Facebook que associa as críticas ao valor do RSI ao líder do Chega:

Como diz o dr André Ventura, quem tem direitos tem que ter deveres! Eu tenho que trabalhar, às vezes 24h por dia, desconto, pago as minhas contribuições e não tenho direito a nada. Deixo aqui a sucinta pergunta: O que devo fazer para ser cigano??”

Comecemos pela imagem, antes de irmos às declarações. Para averiguar a sua veracidade, o Observador recorreu à ferramenta TinEye, que, como o próprio site explica, com recurso a tecnologia de reconhecimento de elementos gráficos, permite pesquisar a origem de uma imagem que não esteja contextualizada ou seja manipulada.


Publicação no Facebook, a citar um suposto “patriarca cigano de Beja” a lamentar a ajuda do Rendimento Social de Inserção (RSI)


Como é calculada a inflação?


Esta ferramenta remete-nos para a verdadeira imagem do dito “patriarca cigano” como sendo Tiago Matos Gomes, numa fotografia publicada a 8 de março de 2021, no Jornal Público. A notícia apresentava o político como “mais um candidato à Câmara de Lisboa: chama-se Tiago Matos Gomes e é lider do Volt”. Pouco mais de um ano depois, Tiago Matos Gomes desfiliava-se do Volt Portugal e prepara-se para fundar outro partido, o Partido Democrata Europeu. Apesar das reviravoltas políticas, continua a não corresponder à designação com que é apresentado na publicação verificada, “patriarca cigano de Beja”.

As diferenças entre a imagem de Tiago Matos Gomes e a imagem manipulada do “patriarca cigano” mostram claras diferenças. A cara está alargada e o tom de pele está escurecido. Ao Observador, Tiago Matos Gomes admite que já tinha sido alertado por “familiares e amigos” a propósito do uso da sua fotografia. Confirma que se trata de uma fotografia sua, manipulada, desconhece o autor, mas acredita que não foi um ato “intencional” contra o próprio.

O presidente do Volt, Tiago Matos Gomes, durante uma entrevista à Agência Lusa no âmbito das eleições legislativas, em Lisboa, 28 de dezembro de 2021.

Quanto à citação, não há registo de um “patriarca cigano de Beja” a criticar o valor do Rendimento Social de Inserção: “3500 euros de RSI para 4 pessoas já não dá para a gente se governar”, nas crónicas publicadas pela Associação Amato Lusitano, uma associação sem fins lucrativos situada em Castelo Branco.

Num esclarecimento enviado ao Observador, o presidente da associação, Arnaldo Braz, explica que o objetivo da Amato Lusitano é promover o “emprego e formação” da região através de uma “integração adequada com espaços e entidades de âmbito regional, nacional e internacional”.

De facto, a associação publicava uma crónica mensal “A voz dos Ciganos” no semanário local A Reconquista, uma ação que fazia parte dos projetos desenvolvidos em conjunto com a “comunidade cigana albicastrense, com vista à sua integração na sociedade local”. A crónica terminou em 2021 e no que toca à publicação que corre nas redes sociais, o responsável é claro:


Nunca tivemos conhecimento de qualquer publicação desta natureza, nomeadamente desta que está em causa. Desconhecemos completamente este assunto e nunca partilhamos qualquer artigo a criticar o valor do RSI.”.

Não é a primeira publicação a circular nas redes sociais a associar o Rendimento Social de Inserção à comunidade cigana.

De acordo com os dados de novembro de 2020 do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTSSS), o RSI era distribuído por 210.490 pessoas. Em média, “o valor processado de prestação de Rendimento Social de Inserção (RSI) por beneficiário é de 119,11 euros”. Num contexto mais alargado, o valor médio por família era de “262,26 euros” mensais.


Conclusão

Além de uma fotografia manipulada, de Tiago Matos Gomes, e de um artigo a criticar o valor do Rendimento Social de Inserção, que a Associação Amato-Lusitano garante nunca ter sido publicado na sua crónica “A Voz do Cigano”, também os números que são alegados: “3500 euros de RSI para 4 pessoas já não dá para a gente se governar”, não são verídicos. Cada família recebe em média pouco mais de 260 euros por mês.

Assim, segundo a classificação do Observador, este conteúdo é:


ERRADO

No sistema de classificação do Facebook, este conteúdo é:

FALSO: As principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

NOTA: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de factchecking com o Facebook.

11.7.22

Estudo mostra que pobreza é "condenação existencial" e em dez anos nada mudou

in RTP

A pobreza demonstrou ser uma "condenação existencial" para todas as pessoas que participaram num estudo sobre vulnerabilidades em Lisboa, cuja condição permaneceu inalterada durante dez anos apesar dos esforços e das políticas públicas existentes.

O estudo, Barómetro de Pessoas em Situação Vulnerável, do Barómetro do Observatório de Luta contra a Pobreza na Cidade de Lisboa, decorreu entre 2011 e 2021 e teve por base quatro vagas de entrevistas com vista a acompanhar nestes dez anos um painel de 43 pessoas que se encontravam em situação de vulnerabilidade.

As conclusões, que vão ser partilhadas na sexta-feira, em Lisboa, na sessão de apresentação do livro que resulta do estudo, apontam que as trajetórias de pobreza, a sua gravidade ou a forma como as pessoas enfrentam a questão vão mudando consoante as conjunturas da vida.

"No entanto, apesar da diversidade de situações e de formas de vida, algo parece imutável ao longo destes dez anos: a manutenção na situação de pobreza", lê-se no documento, que acrescenta que esta "é a grande conclusão do estudo".

É dito de forma bastante clara que desde o início, "a maioria dos membros do painel estão numa condição de pobreza e permanecem nela apesar de todos os seus esforços individuais e das políticas públicas vigentes".

"É como uma condenação existencial", refere a publicação, sublinhando que a maioria das pessoas entrevistadas "vem de uma pobreza `hereditária`" e nos casos em que isso não acontece há em comum as "características de vulnerabilidade, de capitais culturais, económicos e simbólicos".

Destaca também que "poucos ultrapassam o limiar da pobreza", tendo isso acontecido apenas com sete pessoas e mesmo no caso dessas "administrativamente", uma vez que "as precárias condições de vida mantêm-se e a linha que os separa dos limiares da pobreza é ténue e instável".

O trabalho, uma iniciativa da Rede Europeia Anti-Pobreza (EAPN), revela que há duas grandes razões para isto acontecer, desde logo o "acumular de vulnerabilidades" e depois o facto de estas pessoas terem apenas acesso "às franjas do mercado de trabalho".

De acordo com o Observatório, "são, sobretudo, as frágeis habilitações escolares e profissionais que as condenam a um mercado marginal de trabalho", uma condição agravada quando há estados de saúde fragilizados.

"A associação entre saúde e pobreza revela uma estrutura de causalidade: a pobreza gera uma saúde deficiente e uma saúde deficiente gera pobreza", lê-se, acrescentando que "a saúde dos indivíduos espelha as desigualdades sociais que preconizam".

Além da saúde, o estudo salienta "o fracasso do sistema escolar na promoção de mecanismos de combate às desigualdades escolares e à promoção de uma educação com sucesso".

Acrescenta que as estas vulnerabilidades somam-se as relativas ao género e à etnia, sublinhando que quando há um contexto de pobreza a "posição desvantajosa da mulher (...) é ainda mais notória" e que as comunidades ciganas continuam afastadas de um processo de integração efetivo e transversal.

O estudo demonstra que nestes dez anos a forma como as pessoas inquiridas encararam a pobreza oscilou entre a acomodação e a resiliências, destacando que "quase todos os entrevistados estiveram inseridos no mercado de trabalho, embora de forma frágil e intermitente" e que o conseguiram "através do seu esforço pessoal e não através dos serviços públicos".

No que diz respeito às políticas de emprego e de ação social, o estudo aponta que há "falta de adequação, eficiência e eficácia no combate à pobreza e às múltiplas vulnerabilidades", e sublinha que o Rendimento Social de Inserção (RSI) é "o último refúgio possível para dar alguma proteção a situações de extrema pobreza".

O estudo deixa ainda três orientações, entre a criação de um modelo de desenvolvimento em que a produção e a redistribuição de rendimentos seja mais igualitária, acelerar o desenvolvimento económico para que os níveis salariais e as oportunidades de emprego aumentem e a garantia de que as políticas sociais assentam na capacitação e na inserção no mercado de trabalho.

20.5.22

A saída da pobreza é uma porta demasiado estreita

por Ana Tulha, in Notícias Magazine

Ana Cristina Matos libertou-se de décadas a fio de agressões e subjugação, arranjou trabalho e uma casa, mas nunca deixou de ser pobre. Está desempregada e de coração nas mãos. Tânia chegou a sustentar dois filhos com um salário mínimo. Hoje vive mais tranquila, mas deve-o em parte ao salário do marido. Osvaldo Pinto deixou a escola ainda antes de acabar o 1.º Ciclo, tem psoríase, chegou a viver dois anos numa carrinha, com a mulher e os filhos. Arranjar trabalho continua a ser um pesadelo. São três dos casos focados num estudo que, ao longo de dez anos, acompanhou dezenas de pessoas em situação de vulnerabilidade no concelho de Lisboa.

A dureza da vida de Ana Cristina Matos foi-lhe fadada logo aos primeiros anos de vida. Nasceu numa família humilde, o pai morreu-lhe aos sete anos, a mãe perdeu-se numa vida de desvario e alcoolismo. Ela começou a namorar aos 13 anos, ele era mais velho, já tinha 21, aquele amor havia de ser uma chaga para a vida toda. Pouco depois engravidou, saiu de casa, foi com o companheiro para casa de sogra, um cubículo de 14 metros quadrados cravado em Alfama, a casa de banho era uma pia em plena varanda, a higiene não morava ali. “Sempre vivi numa casa humilde, mas limpa. Depois, quando fui viver com a mãe do meu ex-marido, ela tinha uma série de complicações, desde esquizofrenia até um problema na bexiga, então havia naquela casa um imenso cheiro a urina.” E aquele odor nauseabundo que se lhe ia colando à pele e à vida não era o pior. Pior foi quando ao fim de uns meses ela, com os mil cansaços da gravidez, adormeceu a lavar roupa, caiu redonda por cima do alguidar, acordou com uma chapada tão grande que ainda hoje traz aquele estalido do ouvido a ecoar como assombro. “Foi a primeira vez que me bateu. Quis logo voltar para casa da minha mãe, mas ele pediu muita desculpa, e a minha mãe tinha medo dele, acabou por me entregar de mão beijada a um agressor”, atira. E a crueza destas palavras fica a pairar na conversa por segundos.

Foi a primeira de muitas chapadas. “Inventava coisas para me bater. Ou era porque queria outra camisa, ou era por ciúmes, porque sempre foi muito possessivo. Lembro-me de estar a dar mama ao meu filho e de ele me puxar os cabelos e dar murros na cabeça.” Como se não bastasse, fechava-lhe a porta de casa, não a deixava sair sozinha, quando engravidou da segunda filha, aos 15 anos, quase não a deixou ir às consultas. No final da gravidez, ele deu-lhe uma tareia tão grande que a cria acabou por nascer prematura. “Fui ter a minha filha num estado lastimável e as enfermeiras viram tudo, mas na altura a violência doméstica não era crime público [passaria a ser em 2000].” E a vida foi seguindo assim. Às vezes ela fartava-se e corria para casa da mãe, mas voltava sempre. Até porque ele ameaçava que lhe tirava os filhos. Então aguentava: os cortes de cabelo propositadamente “horríveis” para ela não ser tão bonita, as “interdições” de certas partes da casa – Ana Cristina viveu anos sem poder fazer algo aparentemente banal como sentar-se no sofá ou tomar um banho quente durante a semana -, a proibição de trabalhar, os insultos, as agressões. Com colheres de pau, com vassouras, com o que estivesse à mão. Até a sogra se metia ao barulho para a defender. “Um dia matas a rapariga”, dizia ao filho. Mas depois apanhava ela também.

Uma vez, tinha Ana Cristina 18 anos, ele bateu-lhe com a vassoura na cara com tanta força que lhe rebentou o olho. “Rasgou-me a pálpebra e fiquei ali com tudo pendurado. Só me lembro do meu filho de cinco anos a meter as mãos nos olhos para não ver.” Aflito, o agressor lá assentiu que fossem para o hospital, mas foi a viagem toda a intimá-la. “Não digas que fui eu que ficas sem os teus filhos.” E ela voltou a calar-se. Inventou até uma história rocambolesca para justificar aquele episódio que a cegou para sempre. No hospital, descobriu que estava grávida de um terceiro filho. Daí em diante, também graças à intervenção de um padre que foi “como um pai”, ele não lhe voltou a bater. “Mas continuava a violência psicológica, estava constantemente a rebaixar-me.” Depois, era a miséria que lhes enformava os dias. “Ele ganhava o salário mínimo e era um gastador compulsivo. Às vezes conseguia gastar tudo num dia. E não me deixava trabalhar. Chegava a não ter um litro de leite para dar aos meus filhos. Mamaram todos até muito tarde por causa disso. Um deles até aos cinco anos. E volta e meia lá ia o meu filho mais velho pedir uma caneca de azeite para pôr nas batatas com ovos, que era o que comíamos. Não havia fruta nem legumes.” Muitas vezes, só a caridade alheia e a boa vontade das instituições de ação social lhes permitiam sobreviver.

O cenário agravou-se quando ele se viu forçado a meter reforma, após “sucessivas baixas psiquiátricas”, e acumulou dívidas junto de empresas de crédito, para responder aos indomáveis instintos de compras supérfluas. Uma vez, num corredor da casa que também lhe estava “interditado”, mas que por lapso ficou aberto, Ana Cristina foi descobrir uma tonelada de bugigangas acumuladas, quase todas por abrir, e um armário repleto de fatos Hugo Boss e sapatos das melhores marcas. “Além dos imensos quadros que comprava. Chegava ao ponto de ter quadros repetidos para o caso de um se estragar.” A situação tornou-se de tal forma insustentável que lá teve de aceitar que ela fosse trabalhar. A fazer limpezas, sobretudo. Primeiro conseguiu umas horas, depois um contrato. Só que os rendimentos continuavam a ser inteiramente monopolizados pelo marido. “Ele é que ficava com o meu cartão. Dava-me um euro por dia para tomar um café. E cheguei a ter de vestir as cuecas dele, porque entretanto fiquei obesa, já nada me servia e ele nem umas cuecas me comprava.”

Até que ao fim de anos e anos daquele martírio, Ana Cristina disse basta. Fez queixa, foi para uma casa-abrigo, encheu-se de coragem e recomeçou. Com a ajuda da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, conseguiu uma casinha só para ela, voltou a encontrar o amor, juntou-se com o novo companheiro. Por essa altura, era auxiliar de saúde num hospital de Lisboa. Mas, com a ideia de fugir aos preços exorbitantes das casas na capital, decidiram mudar-se, ela mais o novo parceiro, para Arganil (distrito de Coimbra), para casa de uma prima que não lhes cobraria renda. A princípio, com Ana Cristina a trabalhar num lar de idosos, ainda lhes pareceu uma solução airosa. Mas em fevereiro do ano passado perdeu o trabalho. Desde então tem vivido com o subsídio de desemprego, 460 euros por mês, mais coisa menos coisa. Isto apesar das várias formações que foi fazendo – primeiro, através do programa “Novas Oportunidades”, concluiu a escolaridade obrigatória, depois fez cursos de técnica auxiliar de saúde e de técnica auxiliar de infância. Para piorar, o subsídio de desemprego já termina em agosto. “Ando aqui com a coração nas mãos.” Ou como a sina da pobreza parece teimar em persegui-la.
De perfil em perfil, sem nunca saltar fora

Ana Cristina Matos, 54 anos, natural de Lisboa, é uma das dezenas de pessoas que durante dez anos integraram um “painel” estudado a fundo pelo Observatório de Luta contra a Pobreza da Cidade de Lisboa (iniciativa da EAPN Portugal/Rede Europeia Anti-Pobreza, com o apoio da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, da autarquia lisboeta e da Fundação Montepio) e pelo Centro de Estudos sobre a Mudança Socioeconómica e o Território (DINÂMIA’CET-IUL), do ISCTE. O resultado foi o “Barómetro de pessoas que se encontram em situação vulnerável no concelho de Lisboa”, que será publicamente apresentado a 29 de junho. Uma das principais conclusões é precisamente a dificuldade crónica em sair de uma situação de vulnerabilidade, a tal que tem marcado a vida de Ana Cristina, mesmo depois de ousar libertar-se de um agressor e entrar para o mercado de trabalho.

Para uma leitura mais clara dos resultados, importa explicar os contornos deste barómetro. Desde logo, sublinhar que se trata de um estudo longitudinal qualitativo (e não quantitativo), que começou por se debruçar sobre um total de 74 pessoas, distribuídas por duas áreas da cidade de Lisboa onde haviam sido detetados elevados índices de vulnerabilidade – zona histórica e orla norte – e com seis perfis diferenciados: desempregados, cuidadores informais, incapacitados para o mercado de trabalho, trabalhadores pobres, idosos e desafiliados. As primeiras entrevistas foram feitas em 2011, tendo-se repetido posteriormente em 2014, 2017 e, por último, em 2021. Neste último ano, “restaram” 43 dos 74 elementos iniciais do painel. “Ou porque mudaram de números e de morada e lhes perdemos o rasto, ou porque emigraram, ou porque houve uma situação de falecimento, ou simplesmente porque houve uma recusa efetiva em continuar a integrar o estudo”, esclarece Sónia Costa, coordenadora do estudo. E é nestes 43 que se alicerçam os resultados. O ex-companheiro de Ana Cristina Matos acertou-lhe em cheio com a vassoura num dos olhos e cegou-a para sempre

Voltando então à primeira grande conclusão do estudo. “Na maior parte dos casos que estudámos o que acontece é que as pessoas se vão movendo dentro dos vários perfis [os seis perfis de vulnerabilidade estabelecidos a priori, já mencionados] sem nunca conseguirem sair realmente da situação de pobreza”, destaca Sónia. A socióloga e investigadora do ISCTE adianta ainda que, mesmo nos casos em que o limiar de pobreza é ultrapassado (sete em 43), as condições destas pessoas continuam a estar envoltas em “grande fragilidade”. “Porque regra geral, quando isso acontece [quando um dado agregado familiar consegue superar o limiar da pobreza], há essencialmente duas razões que o explicam. Ou a acumulação dos rendimentos com certas prestações sociais ou alterações do agregado familiar. Um filho que sai de casa, por exemplo. Ou seja, os rendimentos não se alteraram, mas a fórmula de cálculo reduziu. E portanto há uma melhoria da situação, mas não é uma garantia efetiva de saída da condição de pobreza.”

Tânia (Tânia não é o nome verdadeiro, mas prefere ser chamada assim, até pelo estigma que vem com este assunto) é um dos sete elementos do painel que encaixa nos “saídos da pobreza”. Estudou até aos 16 anos, só foi até ao oitavo ano de escolaridade, nessa altura chumbou e não quis saber mais de escola. A mãe fez-lhe então um ultimato: “Se não queres continuar na escola, vais trabalhar”. E assim foi. Começou a trabalhar numa loja de perfumes, depois em lojas de roupa, e assim andou vários anos, sempre com o ordenado mínimo. Aos 17 casou, aos 18 teve o primeiro filho, aos 23 o segundo. Com 30 e poucos anos, separou-se e viu a vida a estreitar-se. Mas não se ficou. Concluiu o 3.º Ciclo do Ensino Básico e fez formação profissional, em auxiliar de geriatria, começou a trabalhar como ajudante de lar e centro de dia. Em 2011, ano em que foram feitas as primeiras entrevistas deste estudo, tinha ela 40 anos e dois filhos a cargo, auferia um salário de 620 euros, que complementava com uma pensão de alimentos (paga pelo pai) de 200 euros. Nessa altura, encaixava então no perfil de “trabalhadora pobre”. “Não era muito, mas tínhamos o pão nosso de cada dia, como eu costumo dizer.”

Entretanto, em 2012, reconciliou-se com o ex-marido, teve até um terceiro filho. Pelo que, em 2014, o segundo momento do estudo, encaixava já no curto leque dos “saídos da pobreza”, muito graças ao salário do companheiro, trabalhador na área da construção civil, que já na altura auferia 1500 euros. Desde então, mesmo com o cancro do marido (entretanto recuperou) e alguns problemas de saúde do filho mais novo, tem vivido acima do limiar da pobreza. Continua a ganhar pouco mais do que o salário mínimo, mas faz parte dos quadros da instituição para a qual trabalha. E isso não é de somenos. “Se fosse à procura de outro trabalho sei que provavelmente ganharia mais, mas corria o risco de ao fim de um tempo chegar ao fim do mês e não receber. Tenho colegas que vão para uma coisa melhor e depois corre mal. Ou porque o lar é ilegal e fecha. Ou porque deixam de receber. A estabilidade é muito importante.” E o marido, que passa grande parte do tempo a trabalhar no estrangeiro, continua a ganhar bem, o que lhes permite, a ela e aos dois filhos com que ainda vive, um certo desafogo. “Temos uma vida muito estável”, considera. Sónia, a coordenadora do estudo, admite que o caso de Tânia é, entre todos os que foram considerados no barómetro, a “situação mais estável”, mas mostra que mesmo esta estabilidade é relativa. “Bastaria aqui uma nova rutura com o marido para voltar à mesma situação”, argumenta, para ilustrar a fragilidade de que falava há pouco.
Uma teia intrincada de fragilidades

Outra das grandes conclusões apontadas por este estudo, salienta Sónia Costa, é que há, em todos estes casos, um “acumular de vulnerabilidades” que dificultam a saída da situação de pobreza. Habilitações profissionais frágeis, problemas de saúde (dos próprios ou de alguém do agregado familiar), baixa escolarização. Como uma teia castradora que parece arrastá-los insistentemente para a precariedade e as dificuldades financeiras. A coordenadora do estudo dá particular ênfase a uma “relação muito forte entre a pobreza e a saúde”. “Por um lado, a saúde condiciona a vida das pessoas, pela vulnerabilidade que comporta, também a nível profissional, por outro, a vulnerabilidade destas pessoas também condiciona a saúde.” Porque as dificuldades com que vivem acabam por empurrá-los para a aceitação de trabalhos que, não raras vezes, lhes agravam as complicações de que já padecem. É um intrincado círculo vicioso.

A investigadora aponta ainda o “fracasso do sistema escolar”. “Percebemos nitidamente que nos casos de pessoas que advêm de famílias com percursos de pobreza, a escola não ajudou a combater as desigualdades, pelo contrário. A escola acaba por transformar as desigualdades sociais em desigualdades escolares. E depois há aqui uma dimensão fulcral, relacionada com o trabalho.” Que se prende com a forma como as baixas qualificações destas pessoas se traduzem numa inserção no mercado de trabalho muito débil. “É um contingente desqualificado, que tem uma inserção no mercado de trabalho precário, com ausência de contratualização, com trabalho mal pago. E o domínio da formação profissional é outra das fragilidades. Há poucos exemplos do nosso painel em que a formação profissional se converteu em oportunidades de emprego reais.”

O caso de Osvaldo Pinto, 36 anos, de etnia cigana, é um bom exemplo da tal teia de vulnerabilidades. Sofre de psoríase grave, largou a escola sem sequer concluir o 1.º Ciclo do Ensino Básico porque teve de ajudar em casa, tem poucas qualificações profissionais. Foi vendedor ambulante durante dez anos, casou com 22 anos, teve dois filhos logo a seguir, hoje já são três. Viveu primeiro com os sogros, depois passou uns tempos numa casa ocupada ilegalmente, até ser expulso e ter de se mudar, ele mais os filhos, para uma carrinha. “Passámos mal. Fome não, porque as minhas vizinhas são muito boas senhoras, mas para os banhos e tudo era muito complicado. Tínhamos de ir aos balneários públicos.” Só em 2019 garantiu, por fim, uma habituação social.

Osvaldo Pinto está desempregado e tem sobrevivido à custa do RSI

Em 2011, data da primeira entrevista, estava desempregado, recebia RSI, frequentava o programa “Novas Oportunidades” e um curso de jardinagem. Em 2014, continuava sem trabalho, ia fazendo uns biscates aqui e ali, tinha concluído o quinto ano de escolaridade. Entre 2016 e 2020, teve por fim um trabalho estável, como jardineiro, a tempo inteiro e com vínculo contratual. Mas depois veio a covid e voltou para as malhas do desemprego. O subsídio esfumou-se há dois ou três meses, continua só a receber o RSI, a mulher nunca trabalhou, não chegou sequer ir à escola. “Tenho sobrevivido com isto até conseguir mais alguma coisa.” Para piorar, a psoríase atacou em força, Osvaldo jura que tem grande dificuldade “em mexer as mãos e os pés”.

Para já, o plano é voltar a estudar, tentar pelo menos acabar o 9.º ano (só tem o 5.º). Depois, gostava de trabalhar como “mediador de escolas”. “Ajudar os miúdos de etnia cigana a andar na linha”, especifica. Mas continua a sentir que o estigma lhe fecha inúmeras portas. “Muitas vezes têm anúncios a dizer que precisam de funcionários e quando lá vou dizem-me que entretanto já arranjaram.” A história de Osvaldo valida outro aspeto salientado pela coordenadora do estudo. O facto de haver variáveis que “inflacionam ainda mais” as condições de vulnerabilidade destas pessoas. Uma delas é a etnia. Outra prende-se com o género. O que se percebe no caso das cuidadoras informais, por exemplo. E quando se conjugam as duas variáveis o fenómeno exponencia-se. “Basta ver que as duas mulheres ciganas que temos no estudo não sabem ler nem escrever.”

Sónia Costa realça ainda uma terceira grande conclusão: a “desarticulação entre as políticas de emprego e de ação social”. Tanto a nível quantitativo como qualitativo. “Por um lado, há uma desadequação dos montantes auferidos, por outro, uma fraca qualidade de afetação dos recursos disponibilizados”, concretiza a investigadora, que põe o dedo na ferida. “Há um conjunto de recursos muito formatados, com uma intervenção de cariz assistencialista, como a disponibilização de bens alimentares, as prestações pecuniárias. Mas nada disto é suficiente para que a pessoa possa dar um salto. É necessário um outro tipo de acompanhamento que toque em diferentes áreas e potencie a reinserção.”

Osvaldo Pinto gostava de acabar a escolaridade obrigatória e de ser “mediador de escolas”

Isabel Guerra, também investigadora do DINAMIA’CET-IUL, além de consultora do estudo, chama ainda a atenção para outras nuances particularmente relevantes. “Há quase sempre uma tentativa de culpabilizar os mais pobres por não estarem inseridos no mercado de trabalho. A questão é que o emprego é um fenómeno estrutural que escapa ao controlo individual e até dos países, porque as ofertas de emprego dependem hoje das dinâmicas globais.” A investigadora faz notar, por exemplo, que, ao longo dos dez anos sobre os quais incidiu o estudo, praticamente todos os elementos do painel estiveram inseridos no mercado de trabalho, “por sua própria iniciativa”, sobretudo no período que se sucedeu à crise. “Ficámos espantados porque mesmo as pessoas com problemas de saúde acabaram por conseguir. Isto mostra que quando há uma oferta adequada, essas pessoas têm capacidade e vontade de se inserir no mercado de trabalho.”

Isabel Guerra alerta ainda para o facto de haver muitos casos, sobretudo envolvendo pessoas que têm mais handicaps (“Por exemplo, as mulheres que têm pessoas a cargo”), em que o mercado trabalho formal não funciona. “A oferta simplesmente não se adequa. Em termos de horários, de rendimentos, de localização. Muitas vezes não se adequa sequer às outras tarefas que recaem sobre as mulheres.” Este ponto acaba por estar em linha com um outro, que se prende com o facto de haver uma percentagem muito significativa de trabalho informal. Empregadas de limpeza, trabalhadores da construção civil, transportadores (como os estafetas da Uber, por exemplo). “Depois, não tendo laços formais não têm medidas de proteção. Isto foi muito nítido no período da covid.” E assim a pobreza vai seguindo ao ritmo de um rolo compressor.