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8.8.23

Médicos portugueses perderam poder de compra e estão entre os que menos ganham na UE

Alexandra Campos, in Público

Entre 2010 e 2022, a remuneração média anual dos médicos especialistas em Portugal diminuiu de 57.021 euros para 42.401 euros por ano, contabiliza Eugénio Rosa.


As remunerações dos médicos portugueses, em termos reais (calculando o impacto da inflação), diminuíram desde 2010 e são actualmente “muito inferiores” às praticadas noutros países da União Europeia, conclui o economista ligado à CGTP Eugénio Rosa, que foi revisitar os dados disponíveis para fazer uma análise comparativa, numa altura em que os dirigentes das estruturas sindicais que representam os médicos continuam a negociar aumentos salariais com os responsáveis do Ministério da Saúde e das Finanças.

Para elaborar esta análise, o economista usa os dados mais recentes da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) que indicam que, entre 2010 e 2022, a remuneração média anual dos médicos especialistas em Portugal diminuiu de “57.021 euros” anuais (4075 euros ilíquidos por mês) para “42.401 euros” (3039 euros ilíquidos por mês). “Se entrarmos [em linha de conta] com a inflação neste período (20,5% segundo o INE) fica-se com uma ideia mais clara da degradação das remunerações dos médicos no nosso país”, enfatiza.

Eugénio Rosa compara a disparidade das remunerações praticadas em vários países não só da União Europeia mas também de outros países da OCDE. E conclui que, em 2021, os médicos especialistas portugueses ganhavam menos 44,4% do que os espanhóis, menos 71,3% do que os alemães, e menos 39% do que os eslovenos, só para citar alguns exemplos. Na lista limitada de países que elenca, a excepção é a Grécia, onde os médicos ganhavam em 2021 menos 3,5% do que os portugueses.

As remunerações dos médicos em Portugal também são mais elevadas do que em alguns países da América Latina, como o México e a Colômbia, refere o economista, observando que fica, assim, “clara a razão por que Pizarro [o ministro da Saúde] anunciou a intenção do governo de contratar médicos” oriundos de países daquela região.


Esta comparação entre países serve para destacar dados que não são novos. No último relatório Health at a Glance, divulgado no final de 2022, a OCDE já tinha assinalado que, enquanto na maior parte dos países da organização a remuneração dos médicos cresceu em termos reais entre 2010 e 2020, em Portugal, na Eslovénia e no Reino Unido aconteceu o contrário. E foi em Portugal que esta quebra se revelou mais acentuada.

De igual forma, na publicação mais recente sobre recursos humanos em saúde (da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa e patrocinado pela Fundação La Caixa), Pedro Pita Barros e Eduardo Costa deram conta da redução do "ganho médio mensal" dos médicos em Portugal na última década – que passou de 3729 euros mensais, em 2011, para 3 558 euros, em 2022. Uma diminuição da ordem dos 5%, contabilizam.

No ano passado, acrescentam, os médicos perderam "18%" do seu poder de compra face a 2011. A redução do ganho médio mensal ao longo do tempo pode ser explicada por diversos efeitos, um dos quais tem que ver com “o elevado volume de aposentações, que contribui para reduzir o ganho médio, uma vez que os profissionais com maiores níveis de senioridade têm também remunerações mais elevadas”, explicam.

"Subfinanciamento" do SNS

Na sua análise, Eugénio Rosa foi ainda olhar para outros dados que evidenciam que o “subfinanciamento crónico do SNS” está a verificar-se de novo em 2023. O economista cita os números mais recentes da Direcção-Geral do Orçamento (Ministério das Finanças) que indicam que a rubrica “despesa com o pessoal” (que inclui não só os médicos, mas todos os profissionais do SNS) cresceu, de Janeiro a Junho, 11,2%, bem acima do que estava previsto no Orçamento de Estado para este ano (2,3%) e que a fatia dos “abonos variáveis ou eventuais” aumentou ainda mais no primeiro semestre (20,3%) face ao que estava orçamentado.

Este último valor, especula o economista, foi “certamente determinado pelo recurso a horas extraordinárias devido à falta de pessoal” e não inclui “a contratação de médicos a empresas privadas cuja despesa deve ser contabilizada em ´aquisições de serviços`" .

Outro indicador que reflecte este subfinanciamento, refere ainda, é o do aumento da dívida total do SNS a fornecedores privados – que passou de 1618 milhões de euros em Dezembro passado para 1949, em Maio, de acordo com os dados do Portal da Transparência do SNS.


Ao mesmo tempo, os investimentos estavam neste período com uma taxa de execução muito reduzida – de Janeiro a Junho, apenas tinham sido gastos 101,8 milhões de euros, especifica. “É evidente que a maior parte do investimento inscrito no orçamento do SNS para 2023 não será realizado”, antevê.

O PÚBLICO perguntou ao Ministério da Saúde se confirmava os dados referidos nesta análise mas não obteve resposta.

4.8.23

Portugal oferece a médicos brasileiros um salário bruto de 2800 euros e “casa de função”

in Público

Dirigentes sindicais reclamam oferta de casas de função também aos médicos de família portugueses que trabalham em locais carenciados.

O recrutamento de médicos estrangeiros para o Serviço Nacional de Saúde (SNS) já está em curso. A Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) quer cativar médicos brasileiros para trabalharem em centros de saúde nas regiões com maior carência de médicos de família oferecendo-lhes um salário ilíquido de 2863 euros por mês, mais seis euros diários de subsídio de refeição, acrescidos de “casa de função” atribuída pela autarquia do local para onde forem contratados.

No “aviso” que está a ser divulgado no Brasil e a que o PÚBLICO teve acesso, a ACSS especifica que “o Ministério da Saúde está interessado em recrutar médicos para os cuidados de saúde primários”, oferecendo-lhes contratos com a duração de três anos em centros de saúde das regiões de Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve. A carga horária será de 40 horas semanais (“com possibilidade de concentrar a semana de trabalho em quatro dias”) e terão direito a 22 dias úteis de férias.

(...)

Sindicatos contestam

Por estes valores, dificilmente haverá interessados em vir para cá, antevê um médico brasileiro, lembrando que, com os descontos, a remuneração mensal oferecida baixa substancialmente – para pouco mais de 1800 euros líquidos - e que a média salarial praticada no Brasil, apesar de variar muito de região para região, é mais elevada.

Por que é que o Governo não dá casa também aos profissionais formados em Portugal? - perguntam os dirigentes das duas estruturas sindicais que representam os médicos e que têm convocado várias greves como forma de protesto pela não resposta às suas reivindicações de melhores condições de trabalho e aumentos salariais. “Vamos reivindicar casas de função para os jovens especialistas na próxima reunião com os representantes do Ministério da Saúde”, avisa Jorge Roque da Cunha, secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), lembrando que, em Lisboa, isso representa "mais mil euros por mês".

“Infelizmente o Governo, em vez de fazer a sua obrigação, que é a de cativar médicos portugueses para o SNS, pretende contratar no estrangeiro profissionais que, naturalmente, irão ser médicos assistentes dos governantes e dos seus familiares e assessores”, ironiza.

Frisando que a remuneração mensal agora oferecida aos brasileiros é semelhante à auferida pelos médicos especialistas no primeiro escalão em Portugal, quando os primeiros virão para cá como generalistas, Roque da Cunha lembra que há ainda outra diferença - "os especialistas portugueses não têm direito a casa de função".

Na mesma linha, a presidente da Federação Nacional dos Médicos (Fnam), Joana Bordalo e Sá, quer saber "por que motivo não dão também casa aos médicos cá”, defendendo que estas medidas são "discricionárias" e constituem "uma falta de respeito pelos médicos formados em Portugal".

“É com estranheza que vemos este tipo de anúncio. Não há falta de médicos em Portugal, há é falta de médicos no SNS. Temos cerca de 60 mil médicos inscritos na Ordem, mas só 31 mil estão no SNS. Isto só revela o desespero do Ministério da Saúde que não consegue contratar para o SNS. Mas há soluções: o Governo tem que investir nas condições de trabalho e na melhoria dos salários dos médicos que se formam em Portugal", reclama.

Esta tentativa de recrutamento de médicos no Brasil avançou ainda antes de ter sido publicado o decreto-lei - aprovado no início de Julho em Conselho de Ministros - que prevê um regime excepcional para o reconhecimento automático dos graus académicos que visa agilizar o recrutamento de médicos estrangeiros para reforço do SNS.

Previsto para vigorar até ao final de 2026, este regime vai simplificar e acelerar o demorado e complicado processo de reconhecimento das habilitações académicas pelo qual os médicos de países não comunitários são obrigados a passar antes de se poderem inscrever na Ordem dos Médicos e começarem a exercer a profissão. Para revalidarem o diploma numa das oito faculdades de medicina portuguesas, estes têm que submeter-se a várias provas.


Apesar de sublinhar que ainda "não há nenhuma decisão sobre os contingentes de médicos estrangeiros" que o Governo tem intenção de contratar para centros de saúde mais carenciados, o ministro da Saúde, Manuel Pizarro, esclareceu na comissão parlamentar de saúde que o número rondará entre "duas a três centenas" e que os profissionais serão recrutados em "vários países da América Latina".

O ministro tem repetido que o objectivo do decreto-lei que prevê este regime excepcional é trazer para os cuidados de saúde primários, de regiões como o Alentejo, o Algarve e Lisboa e Vale do Tejo, profissionais que possam ajudar a suprir temporariamente a falta de médicos de família, assegurando "consultas abertas nos centros de saúde".

Quanto às nacionalidades, Manuel Pizarro explicou que o Estado português "não pode ir" buscar médicos a países onde há falta destes profissionais, prevendo que apenas deverá ser possível recrutar em "Cuba, Colômbia e mais alguns países da América Latina". O ministro - que foi buscar médicos ao Uruguai e a Cuba em 2008 e 2009 quando era secretário de Estado da Saúde - tem insistido que o que está em causa não é nada de novo, recordando que sucessivos Governos recrutaram clínicos não só nestes dois países mas também na Colômbia e na Costa Rica.

O problema da falta de médicos de família tem-se agravado nos últimos anos porque está a ocorrer um elevado número de aposentações de especialistas em medicina geral e familiar e porque uma parte dos novos especialistas prefere não ocupar as vagas abertas nas regiões mais carenciadas. Além disso, com a chegada de imigrantes a Portugal, tem crescido o número de inscritos no SNS. A conjugação de todos estes factores faz com que o total de cidadãos sem médico de família continue a aumentar e que se tenha tornado de novo comum a acumulação de filas de pessoas, de madrugada, à porta de vários centros de saúde.


[artigo disponível na integra só para assinantes]


5.6.23

Processo de compra de vacinas concluído na próxima semana, afirma Ministério da Saúde

in Público


Resolução do Conselho de Ministros que autoriza a realização da despesa foi publicado esta sexta-feira. São mais de 46 milhões de euros.

O processo de aquisição de vacinas do Programa Nacional de Vacinação (PNV) para este ano só ficará concluído na próxima semana. A demora no processo, que permite que estejam disponíveis nos centros de saúde as vacinas que são dadas gratuitamente para a imunização de várias doenças, sobretudo em crianças, tem levado a alguns atrasos na vacinação, segundo reportam os profissionais de saúde. A resolução do Conselho de Ministros que autoriza a realização da despesa foi publicada esta sexta-feira.

A garantia foi dada esta sexta-feira pelo Ministério da Saúde, em comunicado enviado ao PÚBLICO: “O procedimento de aquisição de vacinas e tuberculinas no âmbito do Programa Nacional de Vacinação para o ano de 2023 está em curso, em fase avançada de adjudicação, e ficará concluído a meio da próxima semana.”

Esta sexta-feira foi publicada, em Diário da República, a resolução do Conselho de Ministros que “autoriza a despesa com a aquisição de vacinas e tuberculinas no âmbito do Programa Nacional de Vacinação para o ano de 2023” e que data de 18 de Maio. O valor autorizado, a que acresce o IVA, é de 46,2 milhões de euros. Da lista de entidades autorizadas a fazer esta despesa são as administrações regionais de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo e do Norte as que têm maior verba: 17,3 e 14,3 milhões de euros, respectivamente.

A 15 de Maio, a SIC noticiou que o Ministério das Finanças estava há seis meses para dar uma autorização ao Ministério da Saúde para que as vacinas do PNV fossem compradas e que sem essa autorização os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde – responsáveis pelas compras centralizadas – não podiam abrir o concurso nacional de aquisição.

Esta sexta-feira, o Expresso noticia que por causa da falta de aquisição das vacinas a vacinação está a ser feita “a conta-gotas” e que desde o início do ano os centros de saúde têm sinalizado várias falhas. Fonte da direcção da Ordem dos Enfermeiros disse ao jornal que “continuam a existir muitas falhas, por exemplo, nas vacinas contra o tétano e nas vacinas tetravalente e pentavalente, contra a difteria, tosse convulsa, poliomielite e haemophilus b”.

Também os médicos de saúde pública confirmaram problemas, adiantando que estavam a ser usadas vacinas que sobraram de aquisições anteriores. Em declarações à Rádio Renascença, Gustavo Tato Borges, presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, também referiu a falta de autorização por parte do Ministério das Finanças. Questionado pela rádio, o Ministério da Saúde disse que “não”, admitindo, no entanto, que faltava “antes do lançamento do curso”.

3.5.23

Gestação de substituição: Conselho de Ética admite que bebé tenha três pais no registo

Ana Maia, in Público



Se gestante revogar o contrato tem de haver uma “inequívoca identificação” dos deveres e direitos dos progenitores biológicos. Parecer pede clarificação da lei de gestação de substituição.


A proposta do Governo de regulamentação da gestação de substituição precisa de ser aperfeiçoada em vários pontos, considera o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV). No parecer, tornado público esta terça-feira, o CNECV defende que no caso de a gestante revogar o contrato, e de os progenitores biológicos quererem ter os seus nomes no registo da criança nascida, tem de haver uma “inequívoca identificação dos deveres e direitos que lhes assistem”. Nomeadamente no que diz respeito à filiação, admitindo o CNECV que a criança tenha três pais no registo se ambos os beneficiários tiverem dado gâmetas.

“A nossa primeira preocupação é a salvaguarda dos direitos da criança. O artigo 7.º da proposta do Governo, na alínea b diz que os beneficiários que contribuíram com gâmetas podem exigir à gestante [em caso de arrependimento desta] que um dos seus nomes conste do registo da criança. É preciso saber se se trata de apontar um nome ou se a indicação do nome da progenitura biológica acarreta direitos e deveres. É preciso saber se implica pagar o sustento do filho, direitos de visitação”, exemplifica Maria do Céu Patrão Neves, presidente do CNECV.


É sobre o que deve acontecer em caso de arrependimento da gestante que o parecer mais se foca, considerando que a redacção deste artigo deve ser melhorada, “por forma a tornar claro que há o estabelecimento de vínculos de filiação também face aos progenitores genéticos”. “Entendemos que a lei preveja que todos os intervenientes biológicos (genéticos) sejam considerados, nos termos da lei da filiação, como progenitores, mesmo que haja o exercício do direito de arrependimento”, lê-se no documento, que refere que no caso de um casal de pessoas de sexo diferente em que ambos tenham contribuído com gâmetas, “os beneficiários teriam o direito a inscrever no registo civil a sua progenitura (maternidade e paternidade) a par com a maternidade da mulher gestante (que exerceu o direito de arrependimento)”.

“Teríamos duas mães e um pai”, sugere o parecer, que refere que "no caso dos outros possíveis beneficiários – casais de mulheres ou mulheres sós – não se coloca esta hipótese de tríplice progenitura". O parecer refere ainda que competirá aos tribunais “dirimir a regulação das responsabilidades parentais, nos termos gerais, tendo em conta o superior interesse da criança e a manutenção de vínculos saudáveis com todos os progenitores”. Também o modo como a norma está escrita é considerado “inadequado” pelo CNECV, que diz que “seria eticamente censurável”, por não respeitar o superior interesse da criança, “que constar o nome no assento de um dos progenitores biológicos ficasse dependente da vontade dos progenitores”.

Para o CNECV é também fundamental que a regulamentação estabeleça “um prazo razoável para o exercício do direito ao arrependimento” – entre o nascimento e o registo do bebé que pode acontecer até 20 dias após essa data – e que fique claro o processo de entrega da criança por parte do casal beneficiário à gestante, caso esta revogue o contrato. “A gestante tem 20 dias para expressar arrependimento. Se os beneficiários ficarem com a criança e a registarem como sua no dia do nascimento e a gestante se arrepender dez dias depois, qual o processo? Haverá um novo registo? Quem vai buscar a criança a casa dos beneficiários?”, questiona a presidente do CNECV.

“Quando se faz uma regulamentação, é preciso dar uma resposta satisfatória às questões da vida real”, aponta Maria do Céu Patrão Neves, considerando que a proposta apresentada pelo Governo, apesar de conter avanços positivos em relação à proposta de anteprojecto de regulamentação que tinha sido inicialmente apresentada, ainda tem “riscos de vulnerabilidade acrescida para as partes envolvidas, nomeadamente a criança, e zonas de conflitualidade” que precisam de ficar esclarecidas.

O parecer também defende que deve haver “um reforço de meios humanos e de capacitação funcional” do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA) perante a atribuição de “novas tarefas e exigentes competências” e que os pareceres das ordens dos Médicos e dos Psicólogos, para o processo de aprovação dos processos de gestação de substituição, devem ter um carácter obrigatório.

Quanto à questão do direito à confidencialidade e à protecção de dados pessoais, previsto do artigo 2.º da proposta do Governo, o parecer salienta que “esta confidencialidade não obsta ao direito da criança nascida ao conhecimento das suas origens genéticas e da sua história pessoal”, incluindo a identidade dos dadores de gâmetas e da mulher gestante de substituição, “como resulta das imposições constitucionais e da lei geral”. “Assim, como é sabido, o processo que corre junto do CNPMA será devidamente conservado e deve estar prevista a possibilidade de consulta por parte da futura criança, após os 18 anos.”, lê-se.


Protecção de Dados dá OK

Além do CNECV, houve também um pedido de parecer ao CNPMA, a quem cabe a autorização dos processos de gestação de substituição. A presidente Carla Rodrigues explica que o parecer, que ainda está a ser elaborado, deverá ser enviado ao Ministério da Saúde até ao final da semana. A responsável adianta que, tendo em conta a data da reunião plenária do CNPMA, que se realizou na última sexta-feira, avisaram o ministério que não conseguiriam cumprir o prazo inicialmente indicado.

Também a Comissão Nacional de Protecção de Dados foi chamada a pronunciar-se sobre a proposta de regulamentação do Governo. Segundo o parecer, divulgado no seu site, a CNPD diz considerar que “as operações de tratamento de dados pessoais previstas pelo Projecto de Lei não põem em crise o regime jurídico de protecção de dados”.

Mas sugere alterações no artigo 2.º do projecto referente à questão da conservação dos dados pessoais dos vários intervenientes, referindo que ao CNPMA não foram dadas as “ferramentas indispensáveis ao cumprimento das suas obrigações legais enquanto responsável por delicados tratamentos de dados pessoais”. Salienta também que o artigo não faz referência expressa ao Regulamento Geral sobre Protecção de Dados, mas apenas à lei 58/2019.

1.2.23

Mais de 80% dos cuidadores informais ouvidos em estudo já se sentiram em burnout

Patrícia Carvalho, in Público online

Estudo sobre cuidadores informais diz que 78,5% consideram que o seu estado de saúde mental “influencia o desempenho do seu papel de cuidador”. “É quase um grito: precisamos de ajuda”, diz autora.

Um estudo sobre a saúde mental e o bem-estar dos cuidadores informais revela que 83,3% dos inquiridos já se sentiram em “burnout/exaustão emocional” e que 78,5% consideram que o seu estado de saúde mental “influencia o desempenho do seu papel de cuidador”. A psicóloga Ana Carina Valente, do ISPA – Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, que coordenou o trabalho, diz que estes dados nos obrigam “a uma reflexão profunda”, e avisa: “É quase um grito: nós precisamos de ajuda.”

Quase não há indicadores positivos nas respostas obtidas por Ana Carina Valente, a partir de um inquérito online a mais de mil cuidadores informais, realizado entre o início de Novembro e Janeiro deste ano. O que não surpreende a psicóloga do ISPA, reconhece, ao telefone: “Sabemos que níveis elevados e prolongados de stress vão contribuir para níveis muito elevados de sofrimento psicológico. Este estudo confirma isso.”

Porque, como também é visível no perfil do cuidador traçado neste estudo, estamos a falar de pessoas que convivem há muito tempo com a tarefa de cuidar do outro: 62% dos inquiridos são cuidadores informais há mais de quatro anos e, destes, mais de 30% já o eram há mais de dez. Fala-se, sobretudo, de mulheres (84,7%), e quase 80% têm mais de 45 anos, havendo uma percentagem considerável (20%) de cuidadores com 65 ou mais anos.

“Quando temos quase 80% dos cuidadores a dizerem que a sua saúde mental influencia o seu desempenho enquanto cuidadores, o que nos estão a dizer é, atenção, o que sinto é que a minha saúde mental interfere com o meu papel. Todos nós enquanto sociedade temos de reflectir nisto. Estas pessoas estão com muito sofrimento, exaustas, angustiadas e tristes. É preciso parar para pensar no que vamos fazer para as ajudar”, diz a psicóloga.

A presidente da Associação Nacional dos Cuidadores Informais (ANCI), Liliana Gonçalves, também não se mostra surpreendida com as conclusões do estudo encomendado pela Merck e que será apresentado nesta terça-feira no auditório do PÚBLICO, em Lisboa. “Não nos surpreende, de todo. Até porque temos uma grande franja de cuidadores de longa data, sem qualquer tipo de apoio, a prestar cuidados 24 sobre 24 horas, com grande carga financeira. Tudo isto é revelador de que a saúde mental vai ficar em risco. Os dados da saúde mental, em geral, não são famosos e, em termos dos cuidadores informais, sentimos que não houve um avanço no apoio psicológico”, diz.

Pânico, nervos e descrença na sociedade

Olhando para diversos aspectos da situação psicológica dos cuidadores, o estudo revela, por exemplo, que mais de 74% dos inquiridos se sentem quase sempre ou muitas vezes tensos ou nervosos e que 84,3% dizem ter a cabeça cheia de preocupações muitas vezes ou até mesmo na maior parte do tempo. Há mais de 37% de respostas a indicarem que estas pessoas não cuidam como deviam do seu aspecto físico, enquanto 21,4% dizem que “quase nunca” pensam com prazer no que têm para fazer.

Há ainda uma percentagem muito elevada de pessoas a indicar que, de repente, enfrentam uma sensação de pânico (quase 33%), e são ainda mais os que desconfiam da capacidade da sociedade em contribuir para uma melhoria da situação actual: 45,6% dos inquiridos responderam “nunca” quando questionados sobre se acham que a sociedade é “um lugar bom, ou se está a tornar-se um lugar melhor para todas as pessoas”, enquanto 41,5% deram a mesma resposta – “nunca” – à pergunta sobre se pensa que a forma como a sociedade funciona faz sentido.

O único ponto positivo em todo o inquérito é quando os cuidadores são questionados sobre aspectos relacionados com a sua personalidade: 44,7% dizem que todos os dias, ou quase, gostam da maior parte das características da sua personalidade, 52,6% acreditam ter gerido bem as responsabilidades diárias sempre ou quase sempre e 46,5% apontam a mesma frequência quando lhe perguntam se no último mês tiveram experiências que os desafiaram a crescer e a tornarem-se pessoas melhores.

Algo que também não surpreende a responsável pelo estudo. “São dados que mostram que as pessoas acreditam em si próprias, que têm a sensação de que estão a fazer bem, a cuidar bem. Como se dissessem, ‘a pessoa de quem trato está bem tratada’. É quase uma missão”, diz Ana Carina Valente.

Mas isto não invalida, claro, que as pessoas reconheçam também que os problemas que enfrentam do ponto de vista mental são um desafio maior do que aquele que conseguem enfrentar sozinhas. E é nesse sentido que vai o último conjunto de dados resultantes do estudo. Segundo o documento, 77,9% reconhecem ter necessitado de apoio psicológico durante algum momento da sua actividade, mas apenas 42,1% procuraram esse apoio e 16,8% usufruem dele, efectivamente. Isto apesar de 69,7% dizerem que gostariam de poder contar com essa ajuda. “É muito baixa a percentagem de pessoas que têm apoio psicológico, quando olhamos para aquela dos que dizem que precisavam de o ter. Sabemos que Portugal não é um país com muitas respostas no âmbito da saúde mental. Claramente, não temos respostas suficientes”, diz a docente do ISPA.
Linha telefónica de apoio

Um bom ponto de partida – e que é também identificado pelos inquiridos –, defende, seria a criação de uma linha de apoio psicológico directamente dirigida a este grupo. Quando questionados sobre se gostariam de receber ajuda psicológica através de uma linha de apoio, com profissionais especializados, 83,9% dos inquiridos disseram que sim. E mais de metade (50,9%) escolheu o telefone como meio preferencial para aceder a essa linha. “Tentamos perceber que tipo de apoio seria mais confortável para estas pessoas e quase metade diz que uma linha telefónica já era muito bom: não é paga, está ao alcance de todos e também temos de pensar que falamos de pessoas que têm dificuldade em sair de casa, porque estão a cuidar de alguém. Havendo algum investimento nisto, era fácil de implementar e podia dar uma primeira resposta”, diz a psicóloga.

Liliana Gonçalves explica que a ANCI já tem uma psicóloga que dá apoio online, mas reconhece que era preciso muito mais do que isso. “O apoio psicológico é uma medida que está prevista no Estatuto do Cuidador e que não está a conseguir chegar às pessoas. Ainda se está muito na parte de implementação dos subsídios”, diz. Esse apoio, quando existe, afirma, está sobretudo a cargo de associações de doentes e de alguns municípios, com projectos nesse sentido. “Mas a resposta é muito escassa”, insiste.

A responsável pela ANCI diz que os últimos dados apontam para 23 mil pedidos feitos para obter o estatuto de cuidador informal, e cerca de 11 mil concedidos. Só esse reconhecimento permite o acesso às medidas de apoio, previstas no estatuto, como o direito ao descanso do cuidador. Tudo, diz Liliana Gonçalves, está a andar de forma lenta e o que existe não chega para um grupo de cidadãos que, lembra, “está exausto e com uma enorme sobrecarga financeira e emocional”.

22.12.22

Drogas e álcool saem das ARS e voltam a concentrar-se num organismo único

Natália Faria, in Público online

Manuel Pizarro prepara-se para concentrar as competências em matéria do uso problemático de drogas, álcool e jogo num único organismo, semelhante ao antigo Instituto da Droga e da Toxicodependência.

Dez anos depois, o Governo prepara-se para voltar a mexer no modelo organizativo para a área dos comportamentos aditivos e das dependências. O objectivo passará por retirar o tratamento da dependência do álcool e das drogas da alçada das administrações regionais de saúde, para onde foi canalizado quando, em 2011, a pretexto da necessidade de poupança imposta pela “troika”, o Governo liderado por Pedro Passos Coelho decidiu extinguir o Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT), onde se concentravam até então todas as competências.

Ao que o PÚBLICO apurou, o novo organismo poder-se-á denominar Instituto das Adições (IA) e, além das drogas e do álcool, abrangerá também as dependências ligadas ao jogo e aos ecrãs, mas, por enquanto, nada está fechado. Não se trata de ressuscitar o IDT, mas apenas a filosofia que vigorou até então e que mantinha aglutinadas numa única organização todas as competências na área dos comportamentos aditivos – da definição de estratégias e políticas à sua operacionalização, passando pelo tratamento dos utentes e respectiva reinserção.

“Foi-nos pedida uma proposta para a concretização da criação de uma estrutura única”, confirmou João Goulão, o director-geral do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), o organismo que herdou do ex-IDT a responsabilidade pela elaboração de políticas e de normas de actuação na área, enquanto os profissionais, o tratamento, a redução de danos e a reinserção social dos utentes foram pulverizados pelas cinco ARS existentes no país. Em cada ARS foi criada uma Divisão de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (DICAD), ao mesmo tempo que os centros de respostas integradas (CRI) substituíram os antigos centros de atendimento a toxicodependentes.

O novo modelo nunca funcionou, segundo o vaticínio generalizado dos profissionais do sector. Desde logo porque a propalada integração dos CRI (onde os toxicodependentes são tratados em regime de ambulatório) na rede de cuidados primários de saúde nunca saiu do papel. Mas também porque o facto de o organismo que desenha as políticas não ter tutela nem competências sobre quem as aplica – as cinco ARS – criou uma "direcção bicéfala", ou, como caracterizou o próprio Goulão, uma “terra de ninguém”, que conduziram à degradação das respostas e à debandada de muitos profissionais.

Ao longo dos últimos anos, perante o que consideraram ser a ameaça de colapso do célebre “modelo português” que tornou o país num exemplo à escala mundial, os profissionais do sector reivindicaram repetidamente o regresso ao anterior modelo.

Em 2016, 625 profissionais da área enviaram uma carta ao então ministro da Saúde, Adalberto Campos, em que pediam a recriação de “um serviço nacional, vertical e especializado” para responder ao problema das drogas e do álcool. Naquele mesmo ano, 13 coordenadores da DICAD da região Norte demitiram-se em protesto contra a “situação de ingovernabilidade” em que se diziam.

E o actual ministro da Saúde, Manuel Pizarro, chegou a subscrever, em Dezembro de 2019, uma carta aberta em que três ex-ministros da saúde, cinco bastonários, médicos e professores universitários exortavam o Governo a criar de novo uma instituição com autonomia e meios para responder ao uso problemático de drogas. Pizarro sustentou então, em declarações ao PÚBLICO, que a solução seria “criar uma instituição do tipo IDT, com autonomia” e equiparou a extinção daquele organismo a “um erro que tarda em ser corrigido”.

Em Outubro de 2020, Pizarro foi ainda mais contundente num artigo publicado na revista Dependências: "É urgente reverter a extinção do IDT. É imperioso dar relevo à política de combate às drogas. Em nome dos dependentes e das suas famílias e em defesa das comunidades que o consumo de droga assusta e perturba, não me calarei até que isso aconteça", prometeu.

Mais recentemente, no dia 5, a secretária de Estado da Promoção da Saúde, Margarida Tavares, reconheceu, em declarações à mesma revista, a necessidade de uniformizar a "manta de retalhos" em que se transformou a resposta ao uso problemático de substâncias. E prometeu aumentar as comparticipações do estado às comunidades terapêuticas que são actualmente de um euro por hora, estando há 14 anos sem qualquer actualização.

Neste cenário de fundo, Emídio Abrantes, médico e porta-voz do chamado “Grupo de Aveiro” que dinamizou a recolha de assinaturas entre os que reivindicam o regresso ao modelo antigo, diz-se expectante. “O processo de verticalização está em curso e estamos ansiosos que avance, mas importa que este trabalho de reconstrução envolva todos os profissionais”, declarou, sustentando que a nova estrutura terá de ter assegurada uma “coexistência pacífica” com os centros de saúde, os hospitais e os cuidados de saúde mental. “É importante que haja esse ambiente solidário, de profunda cooperação, porque precisamos todos uns dos outros”, enfatizou.

Numa altura em que, na antecâmara de mais uma crise social e económica se teme pelo recrudescimento dos consumos problemáticos (a última análise à situação do país em matéria de droga dá conta de 115 mortes por overdose de drogas e álcool, num aumento de 45% face a 2020), Goulão aplaude de pé a receptividade ministerial para fazer mudanças. “A grande vantagem é termos uma estrutura que tenha a responsabilidade de pensar as políticas e que passará a poder executá-las directamente, aproveitando a massa crítica dos profissionais de primeira linha”, concluiu.

31.8.22

Saída de Marta Temido foi “inesperada” e “injusta”. O que dizem antigos dirigentes da Saúde?

Daniela Carmo, in Público on-line

“Não foram tomadas medidas nos últimos anos, e não me refiro aos anos em que esta ministra esteve no cargo, para que isto pudesse não atingir estas dificuldades, que já eram previsíveis”, diz antiga ministra da Saúde Ana Jorge. Francisco George ironiza e desafia ministro das Finanças a acumular com a pasta da Saúde.

Uma saída “inesperada nesta fase”, mas “compreensível depois de uma grande pressão”. É assim que Ana Jorge – médica, antiga ministra da Saúde de 2008 a 2011 (durante os mandatos de José Sócrates) e actual presidente da Cruz Vermelha Portuguesa – descreve a demissão da ministra da saúde, Marta Temido. “Espero que esta saída não ponha em causa o princípio de defesa de um Serviço Nacional de Saúde (SNS) de qualidade”, defende em declarações ao PÚBLICO esta terça-feira. Já o antigo director-geral da Saúde, Francisco George, classifica, também em declarações ao PÚBLICO, a demissão como “injusta”. “Há um clima que foi criado que facilitou esta saída, mas é uma saída que não beneficia o sistema nem os portugueses”, refere.

A antiga ministra Ana Jorge admite as “dificuldades existentes nos últimos tempos” com que Marta Temido esteve a braços, mas recorda que esses desafios “têm um histórico grande”. “Não foram tomadas medidas nos últimos anos, e não me refiro aos anos em que esta ministra esteve no cargo, para que isto pudesse não atingir estas dificuldades, que já eram previsíveis”, sublinha. Nos últimos meses o país viu serviços de urgência fechados, profissionais a pedirem escusa de responsabilidades ou médicos internos a recusarem-se a cumprir horas extraordinárias excessivas.

“Não sei quais foram as razões que levaram a senhora ministra a dizer chega e que já não tinha mais condições para continuar no cargo, podem ser de vária natureza. Mas os últimos tempos têm sido de uma grande pressão contra o próprio ministério”, explica Ana Jorge. Na óptica da antiga governante, as notícias relativas a fechos consecutivos de serviços de urgências de vários hospitais por todo o país “foram exploradas de uma forma muito negativa”. “Não beneficiaram o próprio sistema de saúde e isso cria um desgaste muito grande.”

E como agravante aponta ainda a falta de diálogo entre o Governo e os representantes dos profissionais de saúde para a tomada de medidas. “Obviamente que tem de haver maior capacidade de diálogo e da forma como as coisas ultimamente estavam a decorrer isto tornava-se difícil”, explica.

Entre as mudanças que defende como necessárias, Ana Jorge fala em “reformas na área da saúde”, que diz não serem “um problema exclusivo do Ministério da Saúde, mas sim do Governo e de todo o país”. “O Governo e os portugueses têm de perceber que não basta querer um Serviço Nacional de Saúde, é preciso perceber quais as condições necessárias para que esse serviço possa dar resposta àquilo a que os portugueses estão habituados e isso tem custos.”

O que a antiga ministra defende é, então, uma “valorização profissional”: “O mais urgente é regular o sistema, definir bem as carreiras, permitir que os profissionais possam ter vencimentos adequados às suas funções”, desenvolve.

“Quando a pessoa se diferencia e avança obviamente que tem de ter alguma remuneração adequada”, refere. Por outro lado, Ana Jorge diz não ter conhecimento do envolvimento do Governo nessa vertente “tão importante”, mas “obviamente que isto tem de ter por trás um grande apoio do Governo e político porque implica grandes alterações do sistema.”
“Podemos dizer ao ministro das Finanças que acumule com a Saúde"

Também Francisco George concorda com a visão de que são precisos aumentos salariais urgentes para os profissionais de saúde e, nesse campo, Marta Temido “não tinha poder para melhorar as condições salariais dos 150 mil trabalhadores que estão no ministério da Saúde”. Para o antigo director-geral da saúde, estes aumentos salariais são “essenciais” e “é o ministro das Finanças que tem de se interessar pela solução dos problemas”.

É, por isso, com ironia, que convida o actual ministro das Finanças, Fernando Medina, a acumular funções e assumir também a pasta da Saúde: “Podemos dizer ao ministro das Finanças que acumule com a Saúde porque grande parte da gestão do SNS tem a ver com esse ministério, sem o conjunto do Governo e sem o ministro das Finanças não é possível melhorar as condições de trabalho dos profissionais de saúde.”

E atira ainda a falta de apoio político do primeiro-ministro, António Costa, para com Marta Temido. “Sem dúvida que houve falta de apoio não só do primeiro-ministro como de outros ministros, porque naturalmente o salário dos médicos, dos enfermeiros, dos especialistas não são competência única da ministra Marta Temido. Estou a falar do ministério das Finanças e da grande responsabilidade que o ministro das Finanças tem na gestão do SNS.”

Além disso, Francisco George sublinha que Marta Temido “não tem qualquer responsabilidade directa” no caso da mulher grávida que morreu no sábado passado na sequência de uma transferência entre hospitais em Lisboa. “É preciso reconhecer que foi criado um clima que levou a esta situação que foi citada pelo primeiro-ministro de haver uma linha vermelha que tem a ver com os acontecimentos relatados sobre a morte de uma grávida que foi atendida no Hospital de Santa Maria e transferida para outro hospital e nessa transferência morreu e sobre a qual a ministra da saúde não tem qualquer responsabilidade”, defende ainda.
Ministra “foi vítima de um ataque organizado"

Já Francisco Ramos, antigo secretário de Estado Adjunto e da Saúde, é da opinião de que Marta Temido “foi vítima de um ataque organizado por parte de alguns sectores no sistema que há três anos reclamavam o aumento do orçamento para a saúde e que agora, naturalmente concretizado esse aumento, reclamam um lugar à mesa desse orçamento”. “Diria que a senhora ministra sai, no essencial, para proteger o sistema de saúde do ataque que estava a ser feito, agendado e programado.”

Além disso, Francisco Ramos refere que “as questões não se ficavam pela escassez de recursos ou pelos problemas no SNS”. “Diria que há muita gente interessada em sentar-se à mesa de um novo Orçamento do Estado, que vem aí em 2023, e quiseram afastar quem ao longo dos últimos quatro anos entendeu que o serviço público e o espírito de missão pública deveria estar acima.”

“Quando vemos grupos de profissionais de saúde a terem reuniões, a programarem reuniões com outras entidades para forçar a que isso seja notícia, isso evidencia que não estamos a falar apenas de episódios da vida do quotidiano, mas de um sistema programado e planeado com determinados objectivos que não me compete identificar”, sublinha.

O antigo secretário de Estado diz também que “a encruzilhada está entre escolher pessoas que optem por consolidar uma política de saúde que privilegie a solidariedade característica do SNS ou uma política de saúde que privilegie outros elementos”. “Preocupa-me a baixa prioridade que a saúde continua a ter e que é revelada por esta decisão de, apesar da demissão de Marta Temido, não ser considerado prioritário encontrar um novo titular da pasta que possa desenvolver uma política de saúde que o Governo anuncia que é a mesma.”

Também Fernando Leal da Costa, ex ministro da saúde durante o segundo mandato de Pedro Passos Coelho, comentou a demissão de Temido à Antena 1. Para o antigo governante, a ministra “não deveria ter continuado no cargo para um segundo mandato” tendo em conta que “as condições de governabilidade que ela iria encontrar no pós covid seriam insustentáveis, como a realidade o demonstrou”.

“A questão não se põe apenas na mudança da pessoa, põe-se no facto de as condições políticas, estruturais e até funcionais do ministério da Saúde e do SNS não permitirem uma governação eficaz, fosse quem fosse que lá estivesse.”





26.8.22

Famílias portuguesas nunca gastaram tanto com a saúde como em 2021

Alexandra Campos, in Público on-line

A despesa directa das famílias com saúde ascendeu a quase 6,8 mil milhões de euros no ano passado. Portugal é um dos países da OCDE em que a percentagem dos gastos directos das famílias com a saúde é mais elevada.

As famílias portuguesas nunca gastaram tanto dinheiro do seu bolso para suportar despesas de saúde como em 2021. Foram quase 6,8 mil milhões de euros, 906 milhões de euros mais do que em 2020, ano em que os pagamentos directos das famílias diminuíram, invertendo a tendência para o crescimento contínuo que se verificava desde 2014, de acordo com os dados preliminares adiantados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE). Apesar de o Serviço Nacional de Saúde (SNS) ser público e tendencialmente gratuito, Portugal continua, assim, a ser um dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) em que a percentagem da despesa que as famílias pagam do seu bolso (out of pocket) é mais elevada.

Os pagamentos directos correspondem aos gastos das famílias sobretudo com consultas na medicina privada, por não haver resposta em tempo útil no SNS, com a realização de análises e exames não cobertos pelo apoio estatal, com a compra de medicamentos (apesar de uma parte importante ser comparticipada pelo Estado), com cuidados de saúde oral, entre outros.

Depois de atingir um valor e uma percentagem recorde em 2019 (ano em que representou 30,6% da despesa total com saúde), a factura das famílias diminuiu em 2020 (para 27,8% do total), devido ao aumento dos gastos associados à pandemia de covid-19 que foram suportados pelas entidades públicas (do Ministério da Saúde e os municípios, entre outras), nomeadamente em compras de máscaras, desinfectantes, testes, etc, explica o INE. Nesse ano, a despesa das famílias diminuiu 6%, em resultado do decréscimo na procura de consultas e cirurgias no sector privado e, em muito menor escala, devido à abolição do pagamento de algumas taxas moderadoras no SNS.


Aumentar

Em 2021, os gastos das famílias dispararam de novo. No ano passado, aliás, a despesa total corrente em saúde aumentou substancialmente - ultrapassou os 23,6 mil milhões de euros, reflectindo “o aumento dos gastos associados ao combate à pandemia” e “a retoma da assistência nas áreas não covid-19”, assinala o INE. Mas enquanto a despesa pública aumentou 11%, a privada cresceu ainda mais - 14,7% -, segundo os dados preliminares da conta satélite da saúde.

Os portugueses continuam, assim, a ser dos que têm mais encargos directos com a saúde comparativamente com os habitantes de outros países da OCDE. Basta ver que em 2020 a média da factura out of pocket nos países da OCDE era de 18%.

Há “vários aspectos que historicamente levam a essa situação”, explica o economista e especialista na área da saúde Pedro Pita Barros. “O Serviço Nacional de Saúde não cobre adequadamente algumas áreas, e o seguro privado também não”, sublinha o professor na Nova SBE, dando o exemplo dos cuidados de saúde oral que “são tradicionalmente um ponto fraco de cobertura de seguro público (SNS) ou privado”.

Além disso, o SNS “obriga a despesa das famílias, sendo aqui sobretudo relevante a despesa com medicamentos (mesmo tendo ocorrido desde 2012 descidas importantes nos preços finais de muitos medicamentos)” e este “é um efeito quantitativamente mais importante para as famílias do que a obsessão política com as taxas moderadoras”. “Se houver mais consultas, que levem a mais prescrição, haverá maior despesa das famílias nas farmácias e, logo, maior despesa directa das famílias em cuidados de saúde”, sintetiza.

Além disso, acrescenta, “apesar da existência do SNS, há uma tradição de grupos da população recorrerem a prestadores de cuidados de saúde privados, pagando directamente esses serviços - seja consultórios privados de médicos, seja meios de diagnóstico e terapêutica”.

“Portugal é, cronicamente, um dos países em que o out-of-pocket é mais elevado. Os cidadãos tendem, cada vez mais, a utilizar serviços privados porque o serviço público não responde com rapidez”, corrobora o economista e ex-secretário de Estado da Saúde Manuel Delgado. “A despesa com a saúde oral é também elevada e aqui há uma grande iniquidade no acesso, só quem tem dinheiro é que pode pagar uma consulta”, exemplifica.

Manuel Delgado sublinha ainda o peso nesta factura de “outra componente” – a dos medicamentos. “Há uma política de comparticipação elevada quando os medicamentos são sofisticados e caros, mas, quando o Estado aumenta a comparticipação destes medicamentos, retira-a noutros, os de uso mais comum, por exemplo, quando deixa de ser necessário ter receita médica [para os comprar]”.

No mais recente “Perfil de saúde” de Portugal (2021), elaborado pelo Observatório Europeu dos Sistemas e Políticas de Saúde em colaboração com a OCDE, frisa-se que, em termos globais, Portugal tinha em 2019 uma das percentagens mais altas de pagamentos directos, representando 30% das despesas totais de saúde, o dobro da média da União Europeia.

O crescimento da despesa directa das famílias com a saúde em Portugal também mereceu destaque no relatório Health at a Glance 2021 da OCDE - que compila indicadores de saúde dos vários países que integram a organização. Analisando a evolução dos pagamentos out-of-pocket, a OCDE recordou que foi nos anos a seguir à crise financeira e económica que a parte da despesa com a saúde suportada directamente pelas famílias mais aumentou em vários países europeus – e esse acréscimo foi de seis pontos percentuais na Grécia, de cinco em Portugal e de três em Espanha.

Em Portugal, diz o relatório, o peso das despesas em saúde no bolo total dos gastos das famílias chega aos 4,7%. Era o quinto país com o valor mais alto neste indicador, ficando apenas atrás da China e do Chile (ambos com 4,8%), Coreia do Sul (5,3%) e Suíça (5,8%). A média dos países da OCDE era de 3,1%.

18.7.22

“Aumento de salários” gera “discórdia” entre médicos e governo

in Rádio Voz da Planície

A reunião do Ministério da Saúde com os sindicatos médicos foi suspensa. Aumentos salariais, propostos pelas estruturas sindicais, falta de equipamento e condições de trabalho geraram desentendimento nas negociações, que regressam no dia 26 deste mês.

“A proposta que o Ministério da Saúde colocou perante os sindicatos não respondeu ao que era básico, nomeadamente uma discussão sustentada em relação às questões estruturais”, disse aos jornalistas o secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), à saída da reunião com o Ministério da Saúde, onde estiveram também representantes das Finanças.

Jorge Roque da Cunha salientou como positivo o facto do processo negocial ter começado, mas sublinhou que “questões como a organização do trabalho médico, a organização na urgência e uma grelha salarial são essenciais para que os médicos continuem no Serviço Nacional de Saúde (SNS)”.

Em declarações aos jornalistas, Noel Carrilho, presidente da Federação Nacional dos Médicos (FNAM), considerou “absolutamente essencial” o facto do objeto desta negociação excluir “as condições base para os médicos permanecerem no SNS”.

“Estamos a falar de temas importantes como a valorização do trabalho em serviço de urgência, da dedicação aqui chamada plena, mas que preferimos chamar exclusiva, da organização e disciplina do trabalho médico, isto é o que é proposto [pelo governo]. Para nós é essencial que se trate da base, nomeadamente da valorização transversal remuneratória na carreira”, afirmou o responsável, insistindo que “sem se falar disso, tudo o resto será ineficaz para manter os médicos no SNS”.

Noel Carrilho reconheceu que “há outras condições essenciais para manter os médicos no SNS”, mas sublinhou que a valorização do vencimento base dos médicos “tem de estar incluída no protocolo negocial”.

“Não havendo condições para chegar a esse entendimento nesta reunião, ficou suspensa para haver uma decisão por parte do governo para esse tipo de evolução”, afirmou.

Questionado sobre se o governo não quer incluir aumentos salariais nesta negociação, Roque da Cunha respondeu: “o que estamos aqui a falar é de criar as condições para ultrapassarmos os problemas que são evidentes perante toda a gente: aumento das listas de espera de cirurgias e consultas, o caos que existe nas urgências e um continuo de saída de médicos do SNS”.

“Há 10 anos que a grelha salarial não é atualizada (…) e ao mesmo tempo há uma falta de investimento no SNS. Não são só questões salariais, são questões de falta de equipamentos e de condições de trabalho”, acrescentou.


Médicos sem especialidade: Ministério está a criar SNS mais vulnerável

Isabel Santos, Jaime branco e Vasco Mendes, in Observador

Alertamos para o erro que está a ser cometido e que terá repercussões no sistema de saúde. Fragiliza-o, porque o desregulam. Descredibiliza-o, porque promove diferenciação dissociada da qualidade.

A manhã de consultas está a meio. A última consulta acabou um pouco mais tarde, mas nada é em vão quando se trata de explicar a um utente, até que este compreenda, os cuidados de saúde alimentares e como tomar a medicação. A médica de família levanta-se e dirige-se agora ao gabinete de enfermagem, onde o Dinis já começou a ser observado pela enfermeira.

Tem 4 anos. Sentado na marquesa com brinquedos novos, compenetrado, não fala com ninguém, mas a mãe diz que “é normal”. Os olhos clínicos desta médica especializada em medicina geral e familiar já viram milhares de crianças e algo não parece bem. Após um conjunto de questões, descobre que não é habitual o Dinis ter uma conversa recíproca, nem brincar com outros meninos da sua idade. A mãe descreve-o como tímido. Na verdade, é mais do que isso: estes são alguns sinais do espectro do autismo. Pede-se uma avaliação da Psiquiatria da Criança e do Adolescente. Ainda se vai a tempo de estimular o Dinis.

Segue-se uma senhora de 74 anos que se diz confusa com a toma da medicação. A especialista analisa os dados: a última consulta foi antes da pandemia. Com a depressão que desenvolveu, associada aos problemas do sono, hipertensão arterial, diabetes, insuficiência cardíaca e hipotiroidismo, a polifarmácia tornou-se um problema para Adelaide. Após consulta, acorda-se um ajuste na medicação.

O seguimento dos utentes tem-se tornado cada vez mais exigente: diagnostica-se mais e com maior precisão e trata-se mais cedo e melhor. E isso só se consegue com o acompanhamento por médicos especializados em tratar, seguir e vigiar problemas de saúde de natureza diferente em simultâneo. É o que faz a Medicina Geral e Familiar, desde 1981. Com a formação específica, conjugada à experiência clínica, esta médica responde a necessidades diversas. O tipo de resposta dada por outro médico, sem especialidade, não teria os mesmos resultados. Porém, o Ministério da Saúde propõe agora – numa norma do OE já em vigor – que estes cuidados de saúde a utentes como o Dinis ou a Adelaide sejam prestados, sem supervisão, por estes médicos que não se formaram em MGF.

Daqui, para onde iremos? Não há obstetras no SNS, colocam-se os especialistas de Medicina Interna a prestar esses cuidados? Não há cirurgiões cardiotorácicos, colocam-se cirurgiões gerais a fazer o seu trabalho? Todos os doentes devem ser atendidos por especialistas devidamente preparados.

O que se pretende com esta medida é tapar os olhos aos cidadãos, que têm assistido ao aumento de utentes sem médico de família: são hoje já 1,4 milhões, um número que duplicou desde que Marta Temido iniciou funções, em outubro de 2018. Percebe-se, assim, mais uma vez, que o Ministério da Saúde e todo o Governo desconhecem o impacto dos Médicos de Família e dos Cuidados de Saúde Primários para os bons indicadores em saúde e para a regulação do sistema. O que tanto apregoam defender é o que mais atacam com as medidas avulsas que decidem tomar.

Como médicos de família, especialistas das demais especialidades e enquanto estudantes de medicina alertamos para o erro que está a ser cometido e que terá repercussões no sistema de saúde. Fragiliza-o porque se tomam medidas que o desregulam. Descredibiliza-o porque se promove uma diferenciação salarial dissociada da qualidade do desempenho. Os profissionais ficam ainda mais desmotivados e, no final, os cidadãos são os mais prejudicados.

Esta não-solução é o agravar de uma escalada de degradação dos cuidados de saúde em Portugal.


19.4.22

SNS com mais 396 milhões de euros. E vai ter uma direcção executiva

Alexandra Campos, in Público

O Governo decalcou da proposta de Orçamento do Estado para 2022 chumbada no ano passado os valores destinados ao sector da saúde. Não há mais um cêntimo para a saúde mas o montante previsto para a despesa continua a ser o maior de sempre. São 13.578 milhões de euros de despesa total consolidada, um acréscimo de 5,6% em comparação com a execução provisória do orçamento do ano passado (mais 724 milhões de euros do que em 2021).

Ainda assim, quando se olha apenas para as transferências previstas para o Serviço Nacional de Saúde (SNS), percebe-se que o valor estimado corresponde agora apenas a mais 396 milhões de euros do que em 2021, um aumento de 3,7% face ao valor executado no ano anterior. As transferências totalizam 11.011 milhões de euros, exactamente o mesmo montante que surgia no documento chumbado.


A diferença é que, na proposta agora apresentada, são adiantados os dados da execução provisória do OE para 2021, ao contrário do que acontecia em Outubro, quando se incluía apenas a estimativa inicial para esse ano – e, nessa comparação, o acréscimo das transferências para o SNS era superior, ascendendo a mais 6,7%, um aumento de quase 700 milhões de euros face a 2021.

Mas o Governo opta por destacar, à semelhança do que fazia primeira proposta, a diferença face ao OE inicial de 2021 e repete, assim, que o orçamento para o sector da saúde “aumenta 703,6 milhões de euros (6,7%)” este ano.

Seja como for, o orçamento projectado para o SNS continua a ficar muito abaixo do que tem sido reclamado pela Convenção Nacional de Saúde (que inclui as diversas entidades do sector público, privado e social do sector) e que tem reivindicado um total de pelo menos 12 mil milhões de euros para o SNS, tendo em conta o diagnóstico das “reais necessidades dos portugueses”.

Como novidade, o executivo revela que a despesa prevista com a pandemia de covid-19 na área da saúde este ano vai diminuir para um total 879,7 milhões de euros, depois de ter ascendido a 1290 milhões de euros em 2021.
 
Nova direcção executiva do SNS e dedicação plena

Com o acréscimo das verbas para o sector, o Governo propõe-se, de novo, contratar mais profissionais de saúde, aumentar o investimento em instalações e equipamentos e “robustecer a capacidade de resposta do SNS”, prosseguindo, em suma, com “o ciclo de reforço orçamental” dos últimos anos, mas visando em simultâneo “maior eficiência da despesa”.

Para ajudar nesta tarefa complexa, surge já nesta proposta de OE a criação da Direcção Executiva do SNS (que estava prevista no novo Estatuto do SNS) e que terá o papel de “dirigir o SNS a nível central”, coordenando a resposta assistencial e o funcionamento em rede e “monitorizando o seu desempenho”.

Na despesa com pessoal, que representa uma fatia importante do orçamento para a saúde (38,5% do total), haverá mais 51 milhões de euros este ano, um aumento de 1% face ao valor executado em 2021, o que se afigura escasso para acomodar todas as medidas elencadas para reforço dos recursos humanos no SNS.

A este nível, o Governo retoma a intenção de avançar, de forma progressiva, com a concretização do regime de trabalho em dedicação plena, a iniciar pelos médicos “numa base voluntária” e sujeito a negociação sindical.

Neste documento inclui também a valorização das carreiras dos enfermeiros, através da “reposição dos pontos perdidos aquando da entrada na nova carreira de enfermagem”, além da criação da carreira de técnico auxiliar de saúde.

Compromete-se ainda a avançar com as condições necessárias para substituir gradualmente o recurso a “tarefeiros” (prestação de serviços), nomeadamente nos serviços de urgência, mas retoma uma medida que foi criticada com veemência pelos sindicatos que representam os médicos - quer pagar mais 50% aos que fizerem acima de 500 horas extraordinárias por ano nas urgências hospitalares ou mais 25% aos que cumprirem entre 251 e 499 horas extra anuais.

Para melhorar a cobertura por médico de família, e numa altura em que há mais de 1,2 milhões de inscritos sem médico assistente no SNS, dispõe-se a “avaliar os incentivos” e promete “prosseguir o trabalho de revisão e generalização do modelo das USF”.
Novo centro de PMA no Algarve

No plano dos investimentos projectados, volta a surgir “a construção de novos hospitais centrais ou de proximidade”, como os de Lisboa Oriental, Seixal, Sintra, Alentejo e Algarve - “que se encontram em diferentes fases de maturação” - e repete-se o anúncio de vários investimentos, como “a requalificação do edifício do Centro Hospitalar Póvoa de Varzim/Vila do Conde”, o centro ambulatório de radioterapia de Viseu, a ampliação do Instituto Português de Oncologia de Lisboa e do Hospital de Setúbal, entre outros.

Mas há uma novidade: prevê-se que a região do Algarve tenha um novo centro de procriação medicamente assistida (PMA), que se irá juntar aos nove centros com técnicas de PMA já existentes no país.

De resto, o Governo faz um copy paste da maior parte das medidas anunciadas na anterior proposta de OE. Além da renovação do anúncio do alargamento de exames de diagnóstico “mais frequentes” nos centros de saúde, como está previsto no Plano de Recuperação e Resiliência, prometem-se mais consultas e rastreios, e destaca-se a aposta na melhoria dos sistemas de comunicação com os cidadãos, “acelerando a disponibilização de atendimentos telefónicos automáticos, de agendamentos online e de respostas de telessaúde”.

1.3.21

O valor do que é raro

Carmen Garcia, in Público on-line

Ter um filho diferente é uma prova muito dura. Ter um filho tão diferente que não há forma de saber o que nos espera é o corolário da solidão. Sabiam que há pais que nunca chegam a ter um nome para a doença dos filhos?

Devia ter-se chamado Ana Raquel, mas como nasceu a 13 de Maio, numa reviravolta inesperada, acabou por ficar Lúcia Jacinta. Não me lembro de muitas coisas sobre a doença dela porque, com seis anos, as minhas preocupações estavam centradas em saber se podia ser a Navegante da Lua na brincadeira do recreio ou se, mais uma vez, teria de me contentar em ser a Navegante de Júpiter. Mas lembro-me de um dia lhe perguntar porque é que não tinha unhas. Ela encolheu os ombros e disse que não sabia e, a bem da verdade, aquilo pouco me chateou. Imagino que, na minha cabeça de criança, as unhas não fossem uma coisa assim tão importante.

Há uns tempos, andava em arrumações e encontrei uma daquelas clássicas fotografias de turma em que aparecemos alinhados em duas filas. E lá estava ela. Mas agora, já adulta, os meus olhos viram o que a inocência de criança nunca me deixou ver: o rosto dela era o típico rosto de gnomo que associamos à síndrome de Williams. A boca larga, os dentes pequenos, os olhos grandes e puxados... E depois lembrei-me de que ela cantava muito e quase sempre. E esta é, também, uma das características típicas desta alteração no cromossoma 7. Vinte e nove anos depois de entrar para a escola primária percebi que a minha colega de turma era uma raríssima. Mais uma entre tantas que celebramos hoje.

Não sei porque é que a Lúcia não tinha unhas, uma vez que nada do que li atribui essa característica aos portadores desta condição. Mas consigo imaginar que esta síndrome não vivesse sozinha naquele corpo franzino de menina que falava demais (portadores de síndrome de Williams são, em regra, extremamente sociáveis e conversadores — há quem diga, inclusivamente, que esta síndrome é o oposto do autismo). Não sei onde a Lúcia está agora, o que faz da vida, como foi o seu desenvolvimento ou qual foi o diagnóstico exacto que lhe atribuíram em criança. O que sei é que ela faz, seguramente, parte dos 6% da população portuguesa que sofre de uma doença rara.

Utilizando a definição da União Europeia, são consideradas doenças raras as que afectam menos de cinco pessoas em cada dez mil. E estão, actualmente, descritas cerca de seis a oito mil doenças deste tipo. Algumas delas, dentro da “raridade”, acabam por atingir um número significativo de indivíduos, mas outras são tão absolutamente raras que o seu diagnóstico é quase sempre tardio, o prognóstico desconhecido (por existirem tão poucos casos no mundo que não é possível prever a evolução da doença) e a experiência de as vivenciar, como portadores ou como pais, acaba por se assemelhar a uma travessia no deserto.

Ter um filho diferente é uma prova muito dura. Ter um filho tão diferente que não há forma de saber o que nos espera é o corolário da solidão. Sabiam que há pais que nunca chegam a ter um nome para a doença dos filhos? E, por experiência própria, garanto-vos que ter um diagnóstico grave é muito doloroso. Mas é infinitamente pior viver sem ter diagnóstico nenhum. Porque isso impede que se façam planos, que se tracem metas realistas, que se antecipem problemas. Viver na escuridão é estabelecer morada num purgatório de onde desapareceram todas as certezas.

O meu primo Tiago tem vinte e cinco anos. E há cerca de vinte e três que os pais lutam, todos os dias, para lhe dar uma boa vida. Não sei quantas especialidades o seguem neste momento nem quantos tratamentos diferentes já foram tentados. Sei que o diagnóstico definitivo não aparece. Tem epilepsia, tem défice cognitivo, tem problemas hormonais severos e perdeu a capacidade de andar. Mas tem sido impossível juntar todos os sintomas e chegar a uma conclusão. Tudo o que parece nunca é. Todas as suspeitas caem em saco roto. E os pais do Tiago, filhos únicos, desesperam pelo dia em que faltem ao filho.

Este desespero é, aliás, transversal a todos os pais de “raros” com quem falei. Se de um lado existe sempre o horror dos números que diz que 30% das crianças com doenças raras morrem antes dos cinco anos, do outro existe o medo pelo futuro dos filhos no dia em que os pais lhes faltarem. Ser raro, neste contexto, está longe de ser uma mais-valia. Ser raro é uma prova de fogo.

Todos os anos, no último dia de Fevereiro, se celebra o Dia Mundial das Doenças Raras. E o objectivo do dia de hoje é sensibilizar a população para este tipo de doenças e para as dificuldades que os seus portadores enfrentam para obterem um diagnóstico, um tratamento ou, quando possível, uma cura. E por falar em tratamentos e curas, sendo que um dos objectivos da indústria farmacêutica passa pelo lucro, é óbvio que existe uma enorme relutância em desenvolver medicamentos para estas doenças, uma vez que o pequeno mercado a que se destinam dificilmente conseguirá retornar a quantia investida na investigação e no desenvolvimento dos fármacos.

Quem é que não se lembra do caso da pequena Matilde, a bebé portuguesa com atrofia muscular espinhal tipo 1, que viu um país inteiro unir-se ao esforço dos pais para adquirir o Zolgensma, que custa a módica quantia de 1,9 milhões de euros? E se é certo que o fármaco acabou por ser comparticipado pelo Estado, também é certo que existe um longo caminho a percorrer no que toca aos medicamentos órfãos — é esta a designação dos fármacos que têm como função específica o tratamento de doenças raras. Ainda que na União Europeia exista, desde 1999, uma política comum sobre os medicamentos órfãos e que se tenham implementado incentivos para que as empresas de saúde e tecnologia se dediquem a esta área, do ponto de vista puramente comercial o desenvolvimento e a investigação destes fármacos continuam a ser pouco atractivos. Tal como quase tudo na doença, não é?

A doença é incómoda, repele e fica mal nos feeds coloridos do Instagram. Também não origina grandes comentários no Twitter. Até porque, na época em que vivemos, é quase de bom-tom não trazermos alguns assuntos para cima da mesa. Porque a gente até sabe que eles existem, mas gosta de poder esquecer-se deles em paz. E é isso que o dia de hoje tenta combater.

É imperativo que paremos com a “coitadinhização” dos doentes raros e famílias ao mesmo tempo que encolhemos os ombros e soltamos um “o que é que eu posso fazer, não é?”. Porque a verdade é que podemos fazer muita coisa. E a primeira de todas é olharmos com atenção para as Lúcias Jacintas desta vida e pararmos para lhes perguntar, a elas e às suas famílias, o que sentem ou do que é que precisam. É que elas até podem ter nascido a 13 de Maio e ter o nome de duas das pastorinhas que viram Nossa Senhora. Mas estão longe, muito longe, de terem sido abençoadas.


11.9.20

Ministério da Saúde lança campanha para reduzir taxa de suicídio

in Público on-line

A Campanha Nacional de Prevenção do Suicídio foi apresentada pelo psiquiatra Paulo Barbosa, também coordenador da iniciativa, que explicou que a campanha pretende “reduzir a taxa de suicídio em Portugal e “juntar toda a sociedade nesta missão”.

O Ministério da Saúde lançou esta quinta-feira, Dia Mundial da Prevenção do Suicídio, uma campanha nacional que visa reduzir a taxa de suicídio em Portugal, onde diariamente três pessoas se suicidam e muitas outras tentam fazê-lo.

“O suicídio é um problema de saúde pública que representa um grande desafio em todo o mundo. Em Portugal, cerca de três pessoas morrem por suicídio em cada dia e muitas mais tentam fazê-lo”, disse a psiquiatra Sónia Farinha Silva na apresentação da campanha num webinar promovido pelo Ministério da Saúde.

É um fenómeno que “não escolhe classes, género, idade ou região geográfica”, sendo um problema particularmente importante em homens, em pessoas mais velhas, em zonas rurais, como o Alentejo.

Mas também é um problema importante em alguns grupos mais específicos como, por exemplo, os adolescentes, a população LGBTI, em algumas profissões de risco, como os profissionais de saúde ou as forças de segurança, a população prisional ou pessoas que vivem em condição de sem abrigo, apontou a psiquiatra.

Perante esta realidade, e à semelhança do que já acontece em outros países, surgiu “a necessidade de se criar uma resposta nacional e coordenada para combater este problema”, defendeu uma das coordenadoras do projecto, sublinhando que “cerca de 90% das pessoas que morrem por suicídio tinham uma doença mental”.

A Campanha Nacional de Prevenção do Suicídio foi apresentada pelo psiquiatra Paulo Barbosa, também coordenador da iniciativa, que explicou que a campanha pretende “reduzir a taxa de suicídio em Portugal e “juntar toda a sociedade nesta missão”.


“Desenvolvemos esta campanha com três desafios em mente: alcançar a população, mudar as atitudes das pessoas em relação ao suicídio e à doença mental e promover mudanças na sociedade que sejam significativas e duradouras e permitam melhor qualidade de vida e melhor saúde”, sublinhou.

Trata-se de uma campanha multicêntrica assente numa acção coordenada de entidades parceiras a nível local e regional, sob a liderança do Programa Nacional para Saúde Mental.

O objectivo é “chegar às pessoas” através dos parceiros locais e regionais que conhecem as necessidades de cada população específica, de cada grupo, e podem disponibilizar-lhes informação, para “aumentar a literacia destas pessoas em saúde mental e para lutar contra o estigma”.

“Queremos que as pessoas saibam que há uma opção, que é pedir ajuda, encontrar tratamentos para a sua doença mental e melhorar a sua qualidade de vida, fazendo com que o suicídio não seja uma opção”, disse, destacando “o papel importante” que os amigos, a família, os colegas de trabalho ou mesmo desconhecidos podem ter nesta missão e que são chamados de “porteiros sociais”.

“São pessoas que no seu dia-a-dia podem encontrar-se com alguém que está em risco e que podem encaminhar essa pessoa para os serviços” de saúde e “salvar uma vida”.


A campanha tem como públicos-alvo a comunidade, os profissionais de saúde e os jornalistas e é assente em três eixos: o mês da Prevenção do Suicídio (Setembro), a formação de uma rede parceiros e um website que já está disponível.

“Queremos chegar aos profissionais de saúde para capacitá-los para esta resposta dos serviços de saúde e também queremos chegar aos jornalistas que têm uma missão muito importante na prevenção do suicídio, porque através do seu trabalho podem ter um impacto positivo ou negativo na vida das pessoas”, salientou Paulo Barbosa.

Presente no webinar, a directora-geral da Saúde afirmou que “numa altura em que as consequências da pandemia sobre a saúde mental são um dado adquirido toda esta questão se torna ainda mais premente”. “Os dispositivos de saúde são fundamentais no planeamento, mas por si só são insuficientes na implementação das medidas de prevenção”, disse Graça Freitas.

No seu entender, serviços de atendimento telefónico de linha directa, programas de prevenção de suicídio, grupos de apoio, entre outros, são respostas igualmente importantes, juntamente com “a limitação do acesso a meios letais e a continuidade de cuidados após a alta hospitalar”.

“Foi um compromisso do Programa Nacional para a Saúde Mental da Direcção-Geral reactivar o Plano Nacional de Prevenção do Suicídio e mesmo neste ano tão difícil conseguimos avançar com a organização desta campanha nacional de prevenção do suicídio”, frisou.

7.9.20

Doentes não urgentes regressam em força aos hospitais. “São dezenas e dezenas por dia”

Alexandra Campos e Rui Barros, in Público on-line

A procura das urgências está a aumentar numa altura em que se aproxima a época em que estes serviços são habitualmente sujeitos a grande pressão. Em alguns hospitais tenta-se que os doentes ligeiros sejam encaminhados para consultas nos centros de de saúde, mas muitos não aceitam.

“Erupção cutânea na região anal com um ano de evolução”, “escabiose [sarna] diagnosticada há duas semanas e que não melhorou”, “dores de pescoço há meses”, “ardência a urinar”. Estes são alguns dos casos que vão desaguando em catadupa no serviço de urgência do hospital de São João (Porto), numa altura em que a situação ainda está calma mas em que o número de atendimentos, mais de 400, se aproxima já da média diária anterior à pandemia. “É isto todos os dias. São dezenas e dezenas de doentes com queixas deste tipo e não podemos deixar de os receber”, relata Nelson Pereira, coordenador deste que é um dos maiores serviços de urgência do país, enquanto observa o monitor do computador onde a percentagem de doentes triados com pulseiras verdes, azuis e brancos (não prioritários) está a aumentar. Somando todas as regiões do país, em Agosto os doentes não prioritários nas urgências dos hospitais representavam 45% do total, quando em 2019, em média, rondavam 42%.

A pressão destes casos na urgência do São João “até tem sido um bocadinho superior” à que se verificava noutros anos, lamenta a directora do serviço, Cristina Marujo. E neste Outono e Inverno, à sobrecarga habitual dos serviços de urgência pela gripe sazonal e outros vírus respiratórios juntar-se-á a necessidade de abordar os doentes com sintomas similares como potenciais infectados pelo novo coronavírus. Os casos suspeitos de covid-19 deverão aumentar já com o regresso dos alunos às escolas e de muitas pessoas aos locais de trabalho. “De todas as áreas do Serviço Nacional de Saúde (SNS), os serviços de urgência são os que mais vão sofrer a pressão porque não será possível distinguir sintomas. Mesmo que haja menos casos de gripe graças ao uso de máscaras e ao distanciamento físico, se tiverem sintomas ligeiros, como febre, as pessoas não vão poder ficar em casa. Não vai ser legítimo fazer de conta que não se passa nada. Se tiver sintomas, a sociedade exige-me e merece que eu seja testado”, enfatiza Nelson Pereira, que advoga o reforço dos cuidados de saúde primários e da linha SNS 24.

Um principais problemas identificados no São João tem sido a incapacidade de alguns centros de saúde darem resposta aos utentes, apesar de esta não ser a única explicação para o regresso em massa, em números absolutos, dos casos ligeiros. “Pergunto aos enfermeiros na triagem e eles respondem: os doentes dizem que vão aos centros de saúde e não são recebidos ou que telefonam para lá e ninguém atende”. À semelhança de outros hospitais, o São João tem protocolos com agrupamentos de centros de saúde (como os de Maia e Valongo) para que os casos não prioritários possam ser encaminhados para lá. “Explicamos às pessoas que podem ir a uma consulta com hora marcada, almoçar com calma, descansar”, descreve Cristina Marujo. Não adianta, porém. “Muitos não aceitam.”


Quando se olha para o portal da Monitorização Diária dos Serviços de Urgência do SNS, que já inclui dados de Agosto, ainda provisórios e que necessitam de ser rectificados, observa-se um ligeiro aumento das percentagens de verdes, azuis e brancos em todas as regiões do país, à excepção de Lisboa e Vale do Tejo, onde se verifica uma tendência inversa. Uma das explicações para este acréscimo tem sido a falta de resposta de alguns centros de saúde do país – um fenómeno muito assimétrico, porque alguns estão já a funcionar bem e outros mal – agravada pelo problema, que se arrasta há anos, do não atendimento dos telefones, que já levava muitas pessoas ao desespero antes da pandemia. Basta consultar o Portal da Queixa: está recheado de protestos de pessoas que garantem ter estado horas e por vezes dias a fio a telefonar para os centros de saúde sem que ninguém atenda. Reconhecendo um problema que já está identificado há anos, o Ministério da Saúde adianta agora que vai disponibilizar 30 mil telemóveis e 30 mil telefones fixos aos centros de saúde. Resta saber se chegarão a tempo do desafio deste Outono e Inverno.


FotoCristina Marujo e Nelson Pereira já notam as diferenças nos casos que chegam à urgência NELSON GARRIDO
Onde estão os casos graves?

Recuemos uns meses. Quando os primeiros casos de covid-19 foram anunciados em Portugal e a população ficou fechada em casa, a afluência aos serviços de urgência caiu a pique. O confinamento e o medo do contágio combinaram-se para produzir um a quebra sem paralelo, um fenómeno que os especialistas interpretaram como positivo, por um lado, e como preocupante, por outro. Se o desaparecimento, em números absolutos, de milhares e milhares de doentes triados com pulseiras verdes, azuis e brancas (os tais casos pouco e não urgentes que poderiam ser vistos noutros locais) aliviou estes serviços de elevada complexidade e vocacionados para receber doentes graves, a quebra da procura dos urgentes e muito urgentes (amarelo e laranja) deixou os especialistas deveras preocupados. Onde estão os casos graves, como os enfartes e os AVC?, questionavam.

Os meses foram passando, o desconfinamento foi decretado e a procura dos serviços de urgência começou de novo a crescer, de mês para mês. Em Julho, segundo os últimos dados disponíveis no portal da transparência do SNS, a afluência ainda estava longe da média dos anos anteriores. Em Julho, 382.499 pessoas recorreram aos serviços de urgência do SNS, mais 57% do que em Abril, mês em que o número de episódios atingiu um valor mínimo nunca antes registado (o portal da transparência tem dados desde 2013). Mas em Agosto já se estava a aproximar dos valores habituais em vários hospitais, sobretudo no Norte do país.

No topo da lista das unidades hospitalares em que os atendimentos mais estão a crescer, sete são do Norte. O Hospital de Vila Franca de Xira (da região de Lisboa e Vale do Tejo) que na semana passada se viu obrigado a reencaminhar doentes urgentes para outros hospitais por causa de um surto de covid-19, é a excepção, surge em sexto lugar. À cabeça desta lista surge a Unidade Local de Saúde (ULS) de Matosinhos (que inclui o hospital e os centros de saúde do concelho), onde a diferença entre o total de urgências em Agosto deste ano era de apenas 926 — 30 por dia — em relação ao mesmo mês do ano passado, segundo os dados provisórios.

Para o presidente do conselho de administração da ULS de Matosinhos, Taveira Gomes, o problema não se justificará aqui pela falta de resposta dos centros de saúde, uma vez que mais de metade dos doentes que procuraram a urgência entre Maio e Julho deste ano tinham tido consultas nos cuidados de saúde primários na semana anterior ou mesmo na semana em que vieram ao serviço, numa percentagem até superior à registada em 2019. “Não parece tanto ser um problema de acesso aos cuidados de saúde primários. Isto pode decorrer mais do efeito da suspensão da actividade programada em muitos casos e do facto de [o doente] sentir que o seu problema não ficou resolvido [nos centros de saúde]. As pessoas estão à procura de uma resposta [consulta] de especialidade e fazem batota, até porque confiam nas urgências, onde fazem radiografias e outros exames. No Reino Unido se o doente não tiver uma carta do médico de família não entra na urgência, a não ser que desmaie à porta. Mas não podemos julgar as pessoas de imediato, isto está muito interiorizado na nossa cultura”, observa.
Ministra manda encaminhar para centros de saúde

A percentagem de verdes e azuis também terá crescido porque em Maio, alarmadas com a quebra dramática da afluência, as autoridades de saúde fizeram questão de enfatizar que estes serviços locais são muito seguros, recorda Taveira Gomes. O médico lamenta que haja obstáculos à alteração do modelo actual. Em Matosinhos, foi criado um circuito próprio para aliviar o serviço destes casos. “Tínhamos duas internas de medicina geral e familiar que aceitaram fazer seis horas de urgência por dia e que só viam verdes e azuis. Mas, quando acabaram o internato, propusemos a sua contratação e o pedido veio indeferido.” Quanto ao encaminhamento de casos ligeiros para os centros de saúde, metade não aceita.

Outro hospital em que as urgências estão a crescer é o de Santo António (Centro Hospitalar e Universitário do Porto), que, em Agosto, de acordo com os dados fornecidos pela direcção clínica, estava ainda fazer menos 17% dos atendimentos do que no mesmo mês do ano anterior. Mas observa-se uma tendência para o aumento de “verdes” (23% em Agosto contra uma média de apenas 17% em todo o ano passado) e dos azuis (que são agora de 3%, mais 1% do que em 2019), que “poderá ter alguma relação com dificuldades de acesso aos centros de saúde ou aos consultórios privados, mas [isso] não é certo”, interpreta o director clínico, José Barros, com esperança de que “o respeito pelo conceito de verdadeira urgência hospitalar adquirido por muitos cidadãos durante a pandemia” ajude a atenuar um Outono e Inverno mais complicados.

No serviço de urgência geral do hospital de Santa Maria, em Lisboa, onde os atendimentos oscilam entre os 400 e os 500 diários, mas que já chegou a ter picos de 700 casos, os números ainda estão muito longe do habitual. “Sabemos que há muitas urgências que são desnecessárias. O aumento da procura dos verdes e azuis é o tipo de recuperação que não gostaríamos que acontecesse”, assume Luís Pinheiro, director clínico do Centro Hospitalar e Universitário de Lisboa Norte (que inclui o Santa Maria e o Pulido Valente). Mas muitos “são quadros respiratórios, potenciais casos de covid-19 e têm que ser testados”, nota. De resto, a epidemia potenciou a articulação com os centros de saúde de Lisboa Norte, com marcação e agendamento de consultas, assegura.

Em Maio, no despacho em que determinou que as instituições do SNS tinham que retomar a actividade por fazer durante o início da pandemia, a ministra da Saúde deu ordem para que os triados com cor branca, azul ou verde nas urgências fossem referenciados para os centros de saúde ou “outras respostas hospitalares programadas, com agendamento directo por hora marcada”. Mas muitas pessoas não aceitam e os médicos de família, assoberbados por várias tarefas, acentuam que não têm capacidade para receber tantos casos.

31.7.20

Centros de saúde não conseguem atender telefones. Quebra nas consultas presenciais é de três milhões

Alexandra Campos, in Público on-line

Ministra da Saúde diz que se fizeram menos 1,1 milhões de consultas nos cuidados de saúde primários, mas Ordem dos Médicos só leva em conta na contabilidade que faz entre Março e Maio os atendimentos presenciais, não pelo telefone, e defende que a diminuição é superior a três milhões.

Começou por tentar marcar pela Internet uma consulta presencial com o seu médico assistente no Centro de Saúde de Oeiras, em Junho, como costumava fazer antes da pandemia, mas não conseguiu. Uma mensagem no ecrã do computador esclarecia que o médico não tinha “agenda disponível para este tipo de consulta” e mandava contactar “directamente” o centro de saúde se o problema fosse “grave” ou não pudesse “esperar pelo contacto”.

Tentou telefonar vezes sem conta, sem sucesso. Ninguém atendia do outro lado. Foi então que decidiu ir ao centro de saúde para marcar uma consulta que seria feita pelo telefone. O episódio pode parecer inverosímil mas o homem, que pede para não ser identificado, garante que nesse dia eram várias as pessoas na sala de espera que se tinham deslocado expressamente ao centro de saúde para marcarem teleconsultas.

“Então pedem-nos para sermos responsáveis, para evitarmos deslocações desnecessárias, para ficarmos em casa, para não irmos aos centros de saúde por causa da covid, e afinal obrigam-nos a ir lá para marcar uma consulta pelo telefone?”, revolta-se.

Diz que alertou para o problema a Direcção-Geral da Saúde, o Ministério da Saúde e a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, sem obter resposta. Do centro de saúde explicam que o problema é da central [telefónica]: “Nesta fase pandémica, há uma sobrecarga da central, há muitos telefonemas, há que insistir.”

O problema foi ultrapassado, entretanto, já é possível marcar de novo consultas através da Internet neste centro de saúde, mas fica uma pergunta. Os cuidados de saúde primários são a porta de entrada no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e começaram já a retomar a actividade assistencial normal, mas quantas pessoas terão ficado sem acesso por esbarrarem no silêncio do outro lado, quantas terão desistido de tentar telefonar, quantos atendimentos ficaram por fazer?

A resposta a esta pergunta diverge substancialmente se o autor for o Ministério da Saúde ou se for a Ordem dos Médicos. É uma questão de interpretação porque os dados são basicamente os mesmos. Na semana passada, a ministra da Saúde revelou na Comissão Parlamentar de Saúde que houve menos cerca de 1,1 milhões de consultas nos cuidados de saúde primários (sendo que, durante todo o ano de 2019, se fizeram 31 milhões de consultas, enfatizou) mas os números que a Ordem dos Médicos (OM) contabilizou, entre Março e Maio (os que estão disponíveis no portal da transparência do SNS), são bem superiores: menos cerca de três milhões de consultas nos centros de saúde do que em 2019. Dados fornecidos ao PÚBLICO pelo Ministério da Saúde indicam que em Junho já houve uma recuperação assinalável (ver infografia).

A explicação para uma diferença tão exuberante é simples: o Ministério da Saúde agrega tudo, as consultas não presenciais e as feitas pelo telefone, enquanto a OM só leva em conta a quebra das consultas presenciais por considerar que muitos dos atendimentos pelo telefone não terão sido consultas médicas propriamente ditas.

O gabinete da ministra sublinha que a retoma da actividade prevê não só o recurso "a meios não presenciais, utilizando mecanismos de telesaúde”, mas também “desfasamento de horários de atendimento e o agendamento por hora marcada”, além da deslocação ao domicílio do utente, quando tal se revele necessário. 

Só dá para atender três chamadas em simultâneo

Sejam quais foram os números contabilizados, a diminuição de atendimentos nos cuidados de saúde primários é muito relevante. Abril passado, aliás, foi o mês com o número mais baixo de consultas, tanto presenciais como não presenciais, desde 2017. A situação está a melhorar, em Junho já se notou uma inversão da tendência e em grande parte dos centros de saúde a actividade normal foi retomada, mas há locais onde as dificuldades de acesso subsistem e estão a levar ao desespero de doentes e familiares.

Maria João Pereira, que só tinha elogios a fazer à Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados de Agualva, onde a sua mãe está inscrita desde Março – “era espectacular, mesmo não tendo a minha mãe médico de família marcavam a consulta para o dia seguinte” –, não consegue desde há semanas contactar a médica, apesar de a sua mãe ter entretanto sofrido “uma síncope” no início deste mês e de ter saído do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra, onde foi atendida, com indicação para fazer com urgência um ecocardiograma e um holter (um exame para medir os batimentos do coração). “Dizem, por email, que as consultas programadas continuam suspensas, que, se quisermos, temos que vir à consulta não programada às 8h de dia, e que o critério de urgência é do médico”, lamenta.

No Agrupamento de Centros de Saúde de Sintra, a que pertence esta unidade, nã0 foi possível falar com a directora, porque esta estava de férias, mas um funcionário assumiu que, no caso de o contacto ser urgente, é necessário alguém deslocar-se à unidade pela manhã, e recomendou à utente o envio de um email para o gabinete do cidadão.

Numa rápida incursão pela plataforma “Centros de saúde” não é difícil, aliás, encontrar críticas ao funcionamento de muitos centros de saúde. Só um exemplo: esta semana, João Triunfo, utente do Centro de Saúde de Algueirão Mem-Martins, relatava que nesta unidade “os médicos estão sem trabalhar desde Março e que há pessoas na rua à espera de uma consulta que nunca acontecerá”. E criticava, agastado: “Não existe a possibilidade de se realizar agendamentos perante as prioridades! Doentes de risco sem medicamentos. Médicos sem disponibilizarem agenda!”. Mas os exemplos multiplicam-se em muitos noutros centros de saúde do país.

As dificuldades no atendimento telefónico já eram um dos principais problemas dos cuidados de saúde primários antes da pandemia, e, com o extraordinário aumento das consultas pelo telefone, naturalmente a situação piorou, admite o presidente da associação nacional das Unidades de Saúde Familiares (USF-AN), Diogo Urjais. O problema é que “o sistema instalado não permite que fique gravado na nuvem que o utente ligou” e a maior parte das unidades não têm linhas nem postos telefónicos suficientes e só é possível atender três chamadas em simultâneo, explica. A agravar, acrescenta, as unidades não têm telefonistas, só secretários clínicos que são os profissionais mais em falta, mais até do que médicos de família.

Não foi possível fazer videoconsultas

Outro grande problema com que os profissionais dos centros de saúde agora se debatem é o da sobrecarga que representa o seguimento dos casos positivos e suspeitos de covid-19, uma plataforma informática designada Trace-covid que os obriga a todos os dias, ao longo de 14 dias, telefonar para estas pessoas. E são milhares os casos activos, frisa Rui Nogueira, presidente da Associação Nacional de Medicina Geral e Familiar, para quem os exemplos de mau funcionamento serão episódicos, “saem da regra”. Os centros de saúde até estão a dar uma resposta “incrível”, defende. E avança com os últimos dados: as consultas programadas aumentaram 65% e as não programadas (que incluem contacto telefónicos, renovação de receituário, ver exames) subiram subiram 8,7% de Abril para Junho.

Se Abril foi o pior mês, em Junho já houve alguma recuperação. “Os números do primeiro semestre até me surpreenderam. No total houve menos cerca de 6% de contactos, de 15,5 para 14,6 milhões, o que “até é razoável, apesar de tudo”. Mas Rui Nogueira está obviamente preocupado com o que ficou por fazer. O que o preocupa são os doentes que não podem esperar, como os que tem insuficiência cardíaca, doenças oncológicas, pé diabético, exemplifica. E apesar de este cálculo ser difícil, se por exemplo não tivesse sido feito nada em Março, Abril e Maio, teria havido menos 15 mil diagnósticos oncológicos. 

Há máscaras, mas não há pensos e compressas

“Estamos a fazer o melhor possível e a pandemia veio pôr a nu algumas limitações e problemas que já existiam”, diz. “Já andávamos com sapatos apertados para os pés que temos e agora os pés incharam e os sapatos são os mesmos”, ilustra. “A verdade é que neste momento não temos recursos nem condições para dar respostas a todas as solicitações”, admite. Apesar de a medicina à distância ter sido uma das soluções preconizada neste período, os centros de saúde não receberam telemóveis, os computadores disponíveis não têm câmaras e por isso não foi possível fazer videoconsultas. A falta de equipamentos é de tal ordem que os médicos e enfermeiros têm usado muitas vezes os seus próprios telemóveis, exemplifica Rui Nogueira.

Diogo Urjais está convencido de que parte da actividade não realizada em Março, Abril e Maio dificilmente será recuperada.

“Houve unidades que compraram telemóveis com cartões pré-pagos, algumas ARS [administrações regionais de saúde] deram um telemóvel para o coordenador da unidade, foram reactivados equipamentos que não estavam a funcionar, mas alguns profissionais trouxeram telemóveis antigos de casa”, corrobora Diogo Urjais, que reconhece que há falta de resposta e problemas em várias unidades do país mas faz questão de dizer há muitos outras onde a retoma está a correr bem.

“Apesar de ser um país pequeno, Portugal tem assimetrias regionais gigantes. Infelizmente há locais em que se continua a ter salas de espera vazias e ruas cheias. Mas está-se a fazer todas as consultas de grupo de risco ou vulneráveis, diabéticos, grávidas, hipertensos. Todos os outros casos serão mais espaçados numa retoma gradual”, explica.

Ao contrário de Rui Nogueira, Diogo Urjais está convencido de que parte da actividade não realizada em Março, Abril e Maio dificilmente será recuperada. “Houve muitos diagnósticos que ficaram por fazer. Os meios complementares de diagnóstico e terapêutica pararam na rede dos convencionados e os hospitais privados deram uma resposta quase nula.” E há um problema que o preocupa sobremaneira agora. Nos centros de saúde, em geral, não há falta de equipamentos de protecção para fazer face à covid, nomeadamente máscaras, mas “há uma falta gritante de material básico, como pensos e compressas”.