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28.8.23

Risco clínico das populações de cada unidade local de saúde vai determinar valor de financiamento

Alexandra Campos, in Público

O secretário de Estado da Saúde, Ricardo Mestre, diz que vai apresentar “a proposta final” para as unidades de saúde familiar e a dedicação plena na próxima reunião com os sindicatos.


Em 2024, o orçamento para o Serviço Nacional de Saúde (SNS) vai voltar a ser o maior de sempre, como já aconteceu este ano, garante o secretário de Estado da Saúde, Ricardo Mestre. A partir de Janeiro, o país deverá já estar todo coberto por unidades locais de saúde (ULS) – que integram os hospitais e os centros de saúde numa mesma instituição e direcção –, passando o financiamento a ser efectuado não por produção mas sim por “estratificação pelo risco”.

A população é dividida em três subgrupos — saudáveis, doentes crónicos e casos complexos — e as unidades locais passam a ser financiadas em função disso, em vez de receberem apenas pela quantidade de actos que fazem. Um dos objectivos é reduzir descompensações e agudizações e a necessidade de recurso às urgências. O SNS vai ainda ter um plano de actividades e orçamento integrado pela primeira vez, diz.

A nova equipa do Ministério da Saúde começou a trabalhar há quase um ano, em Setembro. O Governo diz que está em curso uma profunda reorganização do SNS, mas os problemas de acesso não desapareceram e nalgumas áreas até se agravaram...

É preciso contextualizar: nós entramos em funções num momento em que estávamos a sair da pandemia. Tínhamos um novo estatuto do SNS, estava a iniciar-se um processo de reorganização muito profunda e tivemos que preparar o orçamento de 2023. Depois, iniciámos um conjunto de reformas, algumas já com resultados visíveis. Começamos a desburocratizar o funcionamento do SNS. O primeiro despacho visou simplificar os processos relacionados com o investimento. Reequacionámos a forma como contratamos os profissionais: os especialistas de 2023 já beneficiaram deste processo de contratação mais rápido — em 15 dias colocámos médicos recém-especialistas no SNS. Também houve medidas para a população — uma muito visível foi a autodeclaração de doença para emissão de atestado até três dias.


Mas essa desburocratização não foi da iniciativa da direcção executiva do SNS?
É uma iniciativa do Governo que é operacionalizada pela direcção executiva e significa o alinhamento que temos na melhoria da resposta aos cidadãos.

Está a preparar o orçamento para 2024. O que vai mudar no próximo ano?
O SNS terá mais financiamento, mais investimento, mas também mais organização e capacidade de gestão da rede. [Este ano] tivemos o maior orçamento de sempre — quase 14 mil milhões de euros de despesa aprovada — e o orçamento do próximo ano também vai ser o mais elevado de sempre. O que estamos a fazer vai ser transformador. Do ponto de vista da organização, estamos a trabalhar para ter o SNS organizado em unidades locais de saúde (ULS) a partir de Janeiro.

Já em 2024 todo o SNS estará organizado em Unidades Locais de Saúde

Mas já temos ULS há muitos anos e há estudos que indicam que não provaram ser mais eficientes...
Estamos a criar um modelo de ULS que beneficia da aprendizagem das que existem, mas que as coloca noutro patamar. Já em 2024 todo o SNS estará organizado em ULS [de fora ficam só os três institutos de oncologia do país] e isso cria uma lógica diferente de funcionamento em rede, acompanhada por novos instrumentos de gestão, mais focados nas pessoas e na utilização eficiente dos recursos.

Dou-lhe o exemplo do instrumento de estratificação pelo risco que começará a ser implementado a partir de Setembro. Este permite identificar subgrupos de pessoas com necessidades semelhantes — saudáveis, doentes crónicos, casos complexos — e, a partir daí, poderemos financiar as ULS em função disso, em vez de pagarmos apenas a quantidade de actos que fazem.

Podemos também organizar respostas específicas para cada um destes subgrupos. Por exemplo, desenhar medidas que evitem descompensações, agudizações e outras situações que levam as pessoas a recorrer às urgências e, eventualmente, a ter que ficar internadas por condições de saúde que podiam ter sido controladas atempadamente.

Na prática, criamos condições para evoluir de um sistema reactivo e focado no tratamento da doença para uma dinâmica de intervenção mais pró-activa, que investe na promoção da saúde e na prevenção, que actua de forma antecipatória e que é mais sustentável.

Nos centros de saúde, o compromisso é passar todas as unidades de saúde familiar (USF) para o modelo B, em que a remuneração é associada ao desempenho. Quando é que isso vai acontecer?

Neste momento, temos 269 USF modelo A [que estão na fase de passagem para B] e temos 348 USF modelo B [a diferença entre modelo A e B está no grau de autonomia, sendo que as do modelo B têm mais, uma vez que podem aceder a incentivos financeiros mediante o cumprimento de objectivos pre-estabelecidos].


Estamos a criar um novo regime de dedicação plena [para os profissionais de saúde] de adesão voluntária e uma valorização da grelha salarial muito significativa

Ainda há 304 unidades de cuidados de saúde personalizados [o modelo tradicional]. Estamos a desenhar uma alteração legislativa, que continuamos a negociar com os sindicatos, e que permitirá generalizar as USF modelo B, sem as quotas anuais que até agora existiam.

Na próxima reunião, agendada para 11 de Setembro, o Governo apresentará aos sindicatos a proposta final para as USF e a dedicação plena. Vamos depois passar para outra fase em que os médicos possam beneficiar das alterações legislativas que estamos a preparar. Com a legislação aprovada, imediatamente disponibilizamos a possibilidade de todas A passarem a B.


E nos hospitais? Já disseram que haverá 100 centros de responsabilidade integrada (CRI) até final da legislatura. E até lá?
Neste momento, temos 45 CRI constituídos ou em fase final de implementação. E temos em curso um trabalho de preparação de um diploma para criarmos um regime remuneratório semelhante ao que existe para as USF – com remuneração-base, suplementos e incentivos associados ao desempenho.

Nos próximos dias, semanas, teremos os estatutos da direcção executiva do SNS


Mas isso vai demorar muito tempo, além de que não vai ser possível criar CRI em todas as áreas. E o que os sindicatos reivindicam é que haja de imediato um aumento substancial do salário-base...


Já dissemos que íamos actualizar os salários de todos os médicos, mas temos que alterar o paradigma. O que estamos a negociar é o reforço da grelha salarial, mas também queremos introduzir outros mecanismos que nos permitam valorizar o trabalho dos profissionais organizados em equipa. Todos os médicos poderão migrar nas USF e vamos alargar esse modelo aos CRIS.

Estamos também a criar um novo regime de dedicação plena de adesão voluntária e uma valorização da grelha salarial muito significativa. Tudo junto, no imediato representa um aumento de 24,7% e uma subida de nível remuneratório nos próximos dois anos. No total, será cerca de 30% de aumento salarial directo. Para os médicos internos, temos propostas de valorização salarial diferenciada em função do ano da sua formação — mais 3% no ano de formação geral, 4,75% nos três anos seguintes, e 7% nos últimos anos, aumentos que se somam à valorização transversal da administração pública.


O Conselho de Finanças Públicas fez vários alertas no último relatório sobre o desempenho do SNS em 2022. Desde logo, o défice foi superior a mil milhões de euros, além de que o saldo orçamental acumulado desde 2014 é muito negativo (5,2 mil milhões). E a execução do investimento tem sido sempre diminuta. O que vai mudar?

Do lado do Governo, estamos a criar as condições para que o SNS tenha uma operação equilibrada. Em 2024, vamos dar passos muito significativos nesse sentido. Continuando a reforçar o financiamento, aumentando o investimento, continuando a melhorar a organização e gestão.

Estamos a reforçar a gestão em rede dentro do SNS. Vamos criar um PAO [Plano de Actividades e Orçamento] global do SNS. Vamos criar esta figura para podermos ter um reforço da autonomia e da responsabilidade da gestão dos recursos do SNS. Um plano que possa ser usado pela direcção executiva do SNS para, em conjunto com as várias entidades, gerir em rede e de uma forma mais organizada e responsabilizante.


Quando é que a direcção executiva vai ter estatutos? Era suposto isso ter acontecido em até Junho.
Percebemos a questão do tempo e da forma, mas estamos muito focados no conteúdo dos estatutos e naquilo que é a sua articulação com as outras respostas do SNS. Nos próximos dias, semanas, teremos os estatutos da direcção executiva para passarmos depois para outra fase desta discussão: a do conteúdo. Uma reorganização com a profundidade da que estamos a fazer exige diálogo e articulação.

5500"Vamos lançar agora avisos para a construção de 5500 camas das várias tipologias de rede nacional de cuidados continuado"

Os fundos do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) para a saúde vão ser aproveitados na íntegra?
Estamos a executar um programa de investimentos muito abrangente nos cuidados de saúde primários, na saúde mental, na rede de cuidados continuados integrados, na transição digital e no investimento em equipamentos hospitalares. São investimentos de fundo, transformadores.


Vamos lançar agora avisos para a construção de 5500 camas das várias tipologias de rede nacional de cuidados continuados com fundos do PRR, a que se junta a reorganização do funcionamento da rede. Há uns meses, aumentámos o valor que vamos financiar por cama — passamos de 30 mil para 42 mil euros — e agora vamos lançar os avisos para a sua construção.

O que é que já avançou nos centros de saúde com os fundos do PRR?
Nos cuidados de saúde primários, já lançámos dois avisos e lançaremos em Setembro um terceiro para a construção e requalificação de centros de saúde. Inicialmente, tínhamos previsto criar 100 novos centros de saúde, mas, com a reprogramação, vamos criar 124. E iremos requalificar 357 centros de saúde, quando inicialmente estavam previstos 326.


Temos também um investimento significativo em equipamentos, que estão a chegar aos centros de saúde, como espirómetros [aparelhos de] raios X, e as primeiras viaturas eléctricas das 780 que adquirimos. No âmbito da reprogramação, introduzimos ainda uma nova linha de financiamento para equipamento médico pesado - estamos a investir na requalificação do parque tecnológico dos hospitais, com robôs cirúrgicos, novas ressonâncias, TAC.

Como está a evoluir o processo de transferência de competências para as autarquias?
Temos neste momento 141 autos de transferência de competências já assinados e temos um plano para alargar este número nas próximas semanas, há um trabalho muito próximo com as autarquias. Queremos que seja possível assinar com as 201. Já temos 70%, mas há compromissos assumidos para bastantes mais nos próximos dias.

21.8.23

O médico, amigo do doente

Miguel Oliveira da Silva, opinião, in Expresso


O médico é o amigo do doente. E, como dizia Aristóteles, a vida sem amigos não presta. Os nossos amigos — no sentido mais lato da palavra phylia — são aqueles que nunca nos abandonam. Sobretudo nas piores, mais adversas, mais imprevistas e desagradáveis circunstâncias.

É nosso amigo quem está sempre connosco quando dele necessitamos. Quem está mesmo quando o não chamamos.

Este é um clássico e beneficente valor e princípio de Filosofia da Medicina, coevo do próprio Hipócrates (460-370 a.C.), como tal ipsis verbis consagrado por Platão (428-348 a.C.) no seu belo diálogo “Lysis”.

Isto dito, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) vive um crescente acervo de problemas de cuja responsabilidade em bom rigor nenhum seu dirigente dos últimos anos está incólume, por mais que o tentem despudoradamente, quem sabe se para salvarem atuais e futuras carreiras públicas ou políticas.

Senão, vejamos: mau planeamento local e nacional, recursos logísticos nuns casos obsoletos e impróprios, prioridades adiadas, recursos humanos escassos e em fuga acelerada para o sector privado, salários baixíssimos, desumanas listas de espera, duplicação de exames complementares de diagnóstico e inexistência de um único e universal registo nacional de doentes (para todo o sistema de saúde: público, privado e social) com custos absurdos que só protegem interesses corporativos e prejudicam utentes, e outras coisas assim à proporção.

Perante este cenário dantesco, como devem os médicos dos SNS reagir quando — concordem ou não, na totalidade ou parcialmente — os seus doentes, as suas grávidas são transferidas para outros locais próximos do SNS, seja por motivo de obras seja por eventual concentração de serviços?

Note-se o caso das maternidades do SNS em Lisboa: com a atual demografia e oferta privada, será que Lisboa precisa mesmo de quatro maternidades abertas 24 horas por dia, 365 dias por ano, sobretudo quando a nova maternidade do HSM — o maior hospital universitário do país — vier a dispor de uma capacidade até 4500 partos anuais (atualmente são cerca de 2700)?

Esta questão tem que ser abordada desde já com seriedade e transparência.

Creio que, a menos que haja um baby boom de natalidade na população indígena nacional — improvável nas circunstâncias políticas e culturais atuais — um regresso do privado para o SNS (a que título?) e/ou um acréscimo descontrolado da já em curso imigração também de jovens grávidas africanas e asiáticas (indianas, nepalesas, paquistanesas, bangladexianas) — e quantas destas por cá ficarão, quantas cá vêm apenas buscar cuidados de saúde de qualidade e um visto para a Europa? — quando a nova maternidade do HSM estiver pronta, creio, poderão bastar três maternidades abertas em pleno no SNS em Lisboa.

E, no entanto, seja ou não assim o futuro próximo, importa agora que os médicos estejam onde estão os seus doentes, e que deles cuidem como sabem, neste caso das suas grávidas, independentemente de ser mais que legítimo debaterem com lealdade alternativas de eventuais metodologias e opções tomadas pelas autoridades atuais.

Não importa refugiarmo-nos agora em espúrios e pouco curiais argumentos, porque hoje já inúteis e ineficientes. O tempo atual é de o médico estar com os seus doentes, com as suas grávidas onde elas dele necessitam — e não faltarão oportunidades para se fazerem balanços e apurar responsabilidades e erros evitáveis sobre tudo o que de bom e mau ocorreu nas últimas semanas.

Obstetra no CHLN e professor catedrático de Ética Médica da FMUL

4.8.23

Portugal oferece a médicos brasileiros um salário bruto de 2800 euros e “casa de função”

in Público

Dirigentes sindicais reclamam oferta de casas de função também aos médicos de família portugueses que trabalham em locais carenciados.

O recrutamento de médicos estrangeiros para o Serviço Nacional de Saúde (SNS) já está em curso. A Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) quer cativar médicos brasileiros para trabalharem em centros de saúde nas regiões com maior carência de médicos de família oferecendo-lhes um salário ilíquido de 2863 euros por mês, mais seis euros diários de subsídio de refeição, acrescidos de “casa de função” atribuída pela autarquia do local para onde forem contratados.

No “aviso” que está a ser divulgado no Brasil e a que o PÚBLICO teve acesso, a ACSS especifica que “o Ministério da Saúde está interessado em recrutar médicos para os cuidados de saúde primários”, oferecendo-lhes contratos com a duração de três anos em centros de saúde das regiões de Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve. A carga horária será de 40 horas semanais (“com possibilidade de concentrar a semana de trabalho em quatro dias”) e terão direito a 22 dias úteis de férias.

(...)

Sindicatos contestam

Por estes valores, dificilmente haverá interessados em vir para cá, antevê um médico brasileiro, lembrando que, com os descontos, a remuneração mensal oferecida baixa substancialmente – para pouco mais de 1800 euros líquidos - e que a média salarial praticada no Brasil, apesar de variar muito de região para região, é mais elevada.

Por que é que o Governo não dá casa também aos profissionais formados em Portugal? - perguntam os dirigentes das duas estruturas sindicais que representam os médicos e que têm convocado várias greves como forma de protesto pela não resposta às suas reivindicações de melhores condições de trabalho e aumentos salariais. “Vamos reivindicar casas de função para os jovens especialistas na próxima reunião com os representantes do Ministério da Saúde”, avisa Jorge Roque da Cunha, secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), lembrando que, em Lisboa, isso representa "mais mil euros por mês".

“Infelizmente o Governo, em vez de fazer a sua obrigação, que é a de cativar médicos portugueses para o SNS, pretende contratar no estrangeiro profissionais que, naturalmente, irão ser médicos assistentes dos governantes e dos seus familiares e assessores”, ironiza.

Frisando que a remuneração mensal agora oferecida aos brasileiros é semelhante à auferida pelos médicos especialistas no primeiro escalão em Portugal, quando os primeiros virão para cá como generalistas, Roque da Cunha lembra que há ainda outra diferença - "os especialistas portugueses não têm direito a casa de função".

Na mesma linha, a presidente da Federação Nacional dos Médicos (Fnam), Joana Bordalo e Sá, quer saber "por que motivo não dão também casa aos médicos cá”, defendendo que estas medidas são "discricionárias" e constituem "uma falta de respeito pelos médicos formados em Portugal".

“É com estranheza que vemos este tipo de anúncio. Não há falta de médicos em Portugal, há é falta de médicos no SNS. Temos cerca de 60 mil médicos inscritos na Ordem, mas só 31 mil estão no SNS. Isto só revela o desespero do Ministério da Saúde que não consegue contratar para o SNS. Mas há soluções: o Governo tem que investir nas condições de trabalho e na melhoria dos salários dos médicos que se formam em Portugal", reclama.

Esta tentativa de recrutamento de médicos no Brasil avançou ainda antes de ter sido publicado o decreto-lei - aprovado no início de Julho em Conselho de Ministros - que prevê um regime excepcional para o reconhecimento automático dos graus académicos que visa agilizar o recrutamento de médicos estrangeiros para reforço do SNS.

Previsto para vigorar até ao final de 2026, este regime vai simplificar e acelerar o demorado e complicado processo de reconhecimento das habilitações académicas pelo qual os médicos de países não comunitários são obrigados a passar antes de se poderem inscrever na Ordem dos Médicos e começarem a exercer a profissão. Para revalidarem o diploma numa das oito faculdades de medicina portuguesas, estes têm que submeter-se a várias provas.


Apesar de sublinhar que ainda "não há nenhuma decisão sobre os contingentes de médicos estrangeiros" que o Governo tem intenção de contratar para centros de saúde mais carenciados, o ministro da Saúde, Manuel Pizarro, esclareceu na comissão parlamentar de saúde que o número rondará entre "duas a três centenas" e que os profissionais serão recrutados em "vários países da América Latina".

O ministro tem repetido que o objectivo do decreto-lei que prevê este regime excepcional é trazer para os cuidados de saúde primários, de regiões como o Alentejo, o Algarve e Lisboa e Vale do Tejo, profissionais que possam ajudar a suprir temporariamente a falta de médicos de família, assegurando "consultas abertas nos centros de saúde".

Quanto às nacionalidades, Manuel Pizarro explicou que o Estado português "não pode ir" buscar médicos a países onde há falta destes profissionais, prevendo que apenas deverá ser possível recrutar em "Cuba, Colômbia e mais alguns países da América Latina". O ministro - que foi buscar médicos ao Uruguai e a Cuba em 2008 e 2009 quando era secretário de Estado da Saúde - tem insistido que o que está em causa não é nada de novo, recordando que sucessivos Governos recrutaram clínicos não só nestes dois países mas também na Colômbia e na Costa Rica.

O problema da falta de médicos de família tem-se agravado nos últimos anos porque está a ocorrer um elevado número de aposentações de especialistas em medicina geral e familiar e porque uma parte dos novos especialistas prefere não ocupar as vagas abertas nas regiões mais carenciadas. Além disso, com a chegada de imigrantes a Portugal, tem crescido o número de inscritos no SNS. A conjugação de todos estes factores faz com que o total de cidadãos sem médico de família continue a aumentar e que se tenha tornado de novo comum a acumulação de filas de pessoas, de madrugada, à porta de vários centros de saúde.


[artigo disponível na integra só para assinantes]


26.7.23

Escolas médicas propõem época extraordinária para avaliação de estrangeiros

Alexandra Campos, in Público


Conselho de Escolas Médicas Portuguesas contesta criação de regimes excepcionais de reconhecimento de graus académicos de Medicina.

O Conselho de Escolas Médicas Portuguesas (CEMP), que integra as oito faculdades de Medicina públicas do país, olha para o decreto-lei que prevê um regime excepcional de reconhecimento de diplomas de médicos estrangeiros com muitas reservas. Contestando a criação de regimes excepcionais de reconhecimento específico de graus académicos de Medicina - como previsto no decreto-lei aprovado em Conselho de Ministros no início de Julho -, o organismo presidido por Helena Canhão propõe, em alternativa, uma “época extraordinária para a realização dos procedimentos de avaliação” previstos na legislação actual - que obriga os médicos estrangeiros a submeterem-se a várias e exigentes provas para terem a equivalência dos seus diplomas em Portugal.


“Há um largo número de médicos estrangeiros, a viver em Portugal, à espera de reconhecimento”, lembra Helena Canhão, num parecer sobre a proposta de decreto-lei elaborado a pedido do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior e a que o PÚBLICO teve acesso. Estes médicos “não poderão concorrer a esta época especial de reconhecimento do grau académica em Medicina?”, questiona. E avisa: “Caso seja este o entendimento do Governo, o diploma terá que o justificar, sob pena de não se garantir uma igualdade de oportunidades.” A proposta de realização de uma época extraordinária “pugna pela aplicação dos procedimentos de avaliação a todos os candidatos” nas mesmas condições, sublinha.

Helena Canhão também já propôs, em alternativa, que sejam estabelecidos “acordos directos com universidades estrangeiras credíveis e de qualidade reconhecida” para “dupla titulação”. “Ou seja, cursos partilhados com universidades estrangeiras”, o que implica uma alteração da legislação, uma vez que a lei “proíbe as escolas médicas de receber alunos internacionais, sendo as únicas escolas do país nesta situação”.


No início deste mês, quando foi anunciada a intenção de trazer médicos estrangeiros para Portugal, a presidente do CEMP não poupou nas críticas. Em declarações à TSF, defendeu que o actual sistema de validação e de adesão à Ordem dos Médicos pode estar a funcionar como “uma porta de entrada” de médicos estrangeiros para exercerem em outros países da Europa, sem ajudar a resolver o problema nacional da falta de clínicos.

evelou igualmente que o CEMP apresentou uma contraproposta ao Ministério da Saúde para a captação de médicos estrangeiros, ainda enquanto alunos, através dos referidos “acordos directos com universidades estrangeiras credíveis”. Como funcionaria esta solução? Seria “um ensino comum em que os alunos portugueses” passariam “um ou dois anos nas universidades estrangeiras e os estrangeiros também um ou dois anos em Portugal, ficando assim com “uma dupla titulação”, explicitou.


Quanto à proposta de decreto-lei, no parecer o CEMP pede que o Governo esclareça o que quer dizer com “contingentes limitados” de médicos estrangeiros e questiona se será a Direcção-Geral do Ensino Superior a tratar destes processo sem recorrer às universidades. Lembrando que “o reconhecimento de grau académico de Medicina implica uma avaliação que nos anos anteriores tem tido uma taxa de aprovação muito baixa”, pergunta ainda se, “no pressuposto de um acordo entre Estados, [esta] aprovação deixa de ser necessária”.

[artigo disponível na íntegra só para assinantes aqui]



6.7.23

Primeiro dia de greve dos médicos com adesão de 90% a nível nacional, segundo o sindicato

Estimativa é da Federação Nacional dos Médicos, que convocou a greve. “A adesão de facto foi mesmo muito elevada, superior ao que aconteceu em Março, o que demonstra o descontentamento dos médicos”.

O primeiro dos dois dias de greve dos médicos registou uma adesão de cerca de 90% a nível nacional, afectando cirurgias programadas e consultas externas, adiantou esta quarta-feira o sindicato que convocou a paralisação.

"A adesão de facto foi mesmo muito elevada, superior ao que aconteceu em Março, o que demonstra o descontentamento dos médicos", adiantou à agência Lusa a presidente da Federação Nacional dos Médicos (Fnam).


Segundo Joana Bordalo e Sá, a adesão à greve "rondou os 90% a nível nacional", sendo mais elevada nos blocos operatórios, em que "95% pararam" relativamente à actividade programada, realizando apenas cirurgias de urgência.

"Os serviços mínimos foram cumpridos escrupulosamente e não houve qualquer tipo de problema", garantiu ainda a dirigente sindical, ao avançar que também aderiam ao protesto "praticamente 100%" dos médicos internos, ficando a trabalhar hoje apenas os que estavam de urgência.

Relativamente aos cuidados de saúde primários, a dirigente da Fnam adiantou que nas unidades de saúde familiar a "adesão foi muito elevada", chegando mesmo a "rondar os 100%".

Quanto ao Hospital de Santa Maria, o maior do país, os dados da federação sindical indicam uma adesão de 80% na consulta externa, com os "blocos operatórios parados", apenas funcionando os blocos de urgência.

Os médicos iniciaram às 00:00 de hoje dois dias de greve para exigir, de acordo com a Fnam, "salários dignos, horários justos e condições de trabalho capazes de garantir um Serviço Nacional de Saúde à altura das necessidades" da população.

Apesar de as duas últimas reuniões negociais com o Ministério da Saúde estarem agendadas para 07 e 11 de Julho, a federação decidiu manter a paralisação, que se estende até às 24:00 de quinta-feira, face "ao adiar constante das soluções" e "à proposta insatisfatória" que recebeu do Governo, não excluindo uma nova greve nacional na primeira semana de Agosto.

Esta é a segunda greve convocada pela Fnam este ano, depois da paralisação realizada no início de Março para exigir a valorização da carreira e das tabelas salariais, mas que não contou com o apoio do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), que se demarcou do protesto por considerar que não se justificava enquanto decorriam negociações com o Governo.

Após ter terminado o prazo inicialmente previsto para as negociações no final de Junho, na semana passada o SIM anunciou também uma greve nacional para 25, 26 e 27 de julho em protesto contra "a incapacidade" do Governo em "apresentar uma grelha salarial condigna".
 






15.6.23

Mais salário e horário flexível: a receita da OCDE para reter médicos e enfermeiros no SNS

Ana Maia, in Público online

Envelhecimento da população e aumento das doenças crónicas vão elevar pressão sobre o sistema de saúde e o acesso aos cuidados não é igual em todo o país, aponta a organização.

A saúde em Portugal “melhorou substancialmente nas últimas quatro décadas”, mas há desafios que têm de ser ultrapassados. O envelhecimento da população e o aumento das doenças crónicas vai elevar a pressão sobre o sistema de saúde e o acesso aos cuidados de saúde não é igual em todo o país, aponta a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE). Um dos motivos é a falta de recursos humanos, nomeadamente médicos de várias especialidades e enfermeiros. Aumentar salários e condições de trabalho que permitam conciliar a vida profissional com a pessoal são duas das sugestões dadas para atrair e reter profissionais no SNS.

De acordo com o relatório da OCDE Economic Survey of Portugal, divulgado nesta quinta-feira, “nos próximos anos o sistema de saúde irá enfrentar um aumento dos encargos relacionados com cuidados de saúde e pressão financeira” com o continuado envelhecimento da população. Uma situação que terá reflexo na “já crescente carga de doenças crónicas e degenerativas e em multimorbidades”, refere o documento, que aponta a existência de disparidades no acesso à saúde relacionadas com questões socioeconómicas e geográficas.

“A distribuição dos recursos da saúde, incluindo estabelecimentos e profissionais, é desigual entre as regiões e resulta na falta de especialistas em algumas áreas”, salienta o relatório, que dá como um dos exemplos a falta de médicos de família que é mais pronunciada nas regiões de Lisboa e Vale do Tejo e Algarve. Mas estas diferenças de acesso também estão relacionadas com a capacidade financeira das famílias, que lhes permite recorrer ou não a serviços privados de saúde.

A questão dos recursos humanos no SNS é um dos pontos abordados no relatório, que refere as alterações legislativas promovidas pelo Governo, com a criação da Direcção Executiva do SNS, e os investimentos previstos no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) para melhorar o acesso e o investimento na área da saúde. O documento salienta que o investimento previsto no PRR em equipamentos, instalações e ferramentas informáticas “ajudará a lidar com o baixo investimento anterior” no SNS.

Menos rendimento disponível

O relatório da OCDE salienta que a escassez de médicos afecta especialmente a área de medicina geral e familiar e que nos próximos anos haverá uma “onda” de aposentações. Apesar de o número de vagas para formação pós-graduada ter aumentado nos últimos anos e de o Governo ter aberto mais vagas para contratar recém-especialistas do que o número de médicos que terminou a especialidade em cada época, as reformas e a dificuldade do SNS em reter profissionais de saúde leva a que não exista um equilíbrio entre saídas e entradas, lê-se no documento.

“Condições de trabalho desvantajosas no SNS, incluindo baixos salários e poucas oportunidades de formação”, estão a tornar o sector privado e a emigração mais atraentes para os médicos, diz a OCDE, que refere que “entre 2010 e 2021, a remuneração real em euros caiu 21% para especialistas e 28% para médicos de família”. “Aumentar a remuneração para a média da OCDE e oferecer oportunidades de aumentos regulares, de acordo com o desempenho e a progressão das competências, daria maiores incentivos financeiros para trabalhar no SNS e recompensaria melhor o alto desempenho.”

Reduzir o número de horas extraordinárias e aumentar a flexibilidade de horários também podem ajudar a atrair e reter médicos, permitindo uma maior conciliação entre a vida profissional e a pessoal, aponta o relatório, que admite que esta solução poderia no imediato agravar a escassez de profissionais.

O relatório refere ainda que “há também uma margem significativa para aumentar o uso de enfermeiros”. “A formação e as qualificações dos enfermeiros abrangem actualmente um conhecimento vasto e substancial”, diz o documento, referindo que, apesar disso, o sistema de saúde “continua centrado nos médicos”. E acrescenta que as responsabilidades atribuídas aos enfermeiros em Portugal “também ficam aquém de alguns outros países da OCDE, apesar da sua rigorosa formação universitária de quatro anos”.

O relatório recorda uma recomendação de 2016 do Tribunal de Contas, que considerava que um maior relevo dos enfermeiros de família ajudaria a libertar os médicos de algumas funções. “A implementação desta recomendação pode ajudar a resolver a escassez de profissionais de saúde de maneira económica. De uma forma geral, a realocação de tarefas para aproveitar melhor as competências de farmacêuticos, nutricionistas e enfermeiros, ao mesmo tempo em que remunera essas profissões, pode ajudar a melhorar os resultados dos pacientes e o uso eficiente da força de trabalho em saúde.”

Mas o “sistema de saúde português conta com menos enfermeiros do que a média da OCDE”, aponta o relatório, salientando que 19% dos enfermeiros portugueses emigram à procura de melhores salários e condições de trabalho. Percebe-se o porquê. “Quando ajustado ao poder de compra, os enfermeiros portugueses recebem apenas cerca de 60% da remuneração média da OCDE”, lê-se no documento, que deixa recomendações para atrair mais enfermeiros para o sistema.

“Tal como para os médicos, o aumento da flexibilidade nos horários, o trabalho a tempo parcial e a gestão do trabalho em conciliação com a vida pessoal e familiar podem ajudar a aumentar a atractividade da profissão de enfermagem, especialmente para as mulheres, que representavam mais de 80% dos enfermeiros em 2021”, refere o relatório.

7.6.23

SNS na periferia: do serviço médico obrigatório ao “choque geracional”

Fábio Monteiro, in RR

Que faltam médicos no SNS é dado adquirido. Como, então, lutar contra o problema? Horácio Luís Guerreiro, do CHUA, defende que é preciso criar um mecanismo de serviço médico obrigatório “à periferia”. Eugénia Madureira, do CHN, nota que os médicos, em início de carreira, têm uma “remuneração-base que não é condizente com a responsabilidade da profissão”. José Luís Brandão, do CHBV, conta que jovens profissionais procuram “horários compactados”.


A asfixia de profissionais no SNS é uma maleita sem tratamento simples ou rápido. Existe, por isso, a necessidade de novos e mais incentivos à contratação. E equacionar um período obrigatório de dedicação exclusiva ao SNS para os médicos recém-formados.

Horácio Luís Guerreiro, diretor clínico do Centro Hospitalar do Algarve (CHUA) acredita que “não basta que as organizações tentem captar médicos”, dado que “não têm instrumentos suficientes para fazer”.

“É preciso uma redistribuição dos médicos no país”, diz à Renascença. Ou seja, é necessária uma mudança drástica.
“Acho que tem de existir uma redistribuição. Eu diria que forçada de alguma maneira. E tem de existir uma maior solidariedade entre os hospitais mais ricos e os mais pobres em recursos. Eles [os hospitais ricos] são mais eficientes, têm mais recursos, não têm estrangulamentos. Se em vez de 14 anestesistas tivesse 20, isso aumentava de imediato a minha produção de cirurgias em 25%”, argumenta.

Segundo o responsável do CHUA, a majoração das horas extraordinárias, que devia servir de atrativo para contratar médicos, é uma medida “mal concretizada”, pois não se aplica ao horário noturno e aos fins de semana. “Isso faz com que uma medida que seria positiva perca o seu efeito”, explica.

Dito de outra forma: não é financeiramente atrativo aos médicos (prestadores de serviços) deslocaram-se até unidades hospitalares distantes para fazer turnos mais “difíceis”, “menos preenchidos”. “Para só ganhar 12 horas majoradas, provavelmente não justifica ir ao Algarve.”

E mais: os hospitais têm liberdade para pagar deslocações e alojamento aos profissionais, o que faz com que os hospitais “mais ricos” ultrapassem os periféricos.

O diretor clínico do Centro Hospitalar Universitário do Algarve entende que, como no passado, devem ser criados “incentivos específicos e uma certa obrigatoriedade de colocar médicos mais à periferia”, assim como aconteceu enquanto Leonor Beleza, ministra da Saúde entre 1985 e 1990, tutelou a pasta.
“No meu tempo [de formação], nós tínhamos de fazer um serviço médico à periferia, precisamente para preencher as lacunas nos Centros de Saúde. Tínhamos de fazer um ano até antes de entrar na especialidade. Portanto, há vários mecanismos. Agora tem de haver mecanismos. Deixar por conta das instituições, como está a acontecer neste momento, a capacidade de atrair médicos é difícil. Os mais pobres têm mais dificuldade em atrair do que os mais ricos, não é?”, atira.


Menos obrigações, mais contratações

Eugénia Madureira, diretora clínica do Centro Hospitalar do Nordeste (CHN), é avessa à ideia de algum tipo de obrigatoriedade no SNS.

Por isso mesmo, nota: “Tudo aquilo que vem como imposição não resulta muito bem” junto da classe médica. Para captar profissionais, o interior (qualquer distrito que não Lisboa ou Porto, leia-se) tem de “ser discriminado de forma positiva.”

Medidas como o subsídio de interioridade – um apoio de cerca de 1100 euros anuais, pagos durante um período de seis anos, para médicos que se mudem que optem por ocupar vagas em hospitais no interior no país – “ajuda qualquer coisa, é certo, mas também não é por esse valor que as pessoas vêm”.

Aliás, o subsídio de interioridade cria um problema.
“Imagine: eu sou de Bragança, fui para Bragança por opção, gosto da minha cidade, gosto de lá estar. Tenho uma remuneração X. E vem um outro colega que vai ter as mesmas responsabilidades, o mesmo trabalho, as mesmas tarefas que eu e porque vem de outro local já tem um incentivo. Isso aí nunca é solução. Cria mau ambiente. E é uma discriminação que não é positiva. Se disserem [aos médicos] que há na faixa litoral um pagamento de horas até X, mas se estão na faixa interior essas mesmas horas são pagas a um X + Y, acho que aí sim. Haver discriminação positiva do interior pela positiva. Acho que é uma mais-valia. E pode ser um atrativo”, explica.

De acordo com a diretora clínica do CHN, mais importante que a majoração das horas extraordinárias era “ter uma remuneração base para todos os médicos”. Em particular, os jovens médicos têm uma “remuneração base que não é condizente com a responsabilidade da profissão”.

Um médico especialista em início de carreira, com um horário de 35 horas e sem exclusividade com o SNS, ganha cerca de 1876 euros mensais brutos. Já com dedicação ao serviço público, aufere 2605 euros mensais brutos.
A nova geração de médicos

José Luís Brandão, diretor clínico do CHBV, tem uma visão ligeiramente positiva que a da responsável de Bragança. Mas em muitos pontos expressa a mesma opinião.

As medidas de incentivo económico – como a majoração das horas extraordinárias - que foram tomadas “desde o último verão têm tido resultados positivos”. Ainda assim, “são soluções que muitas vezes têm um caracter um pouco paliativo”, enquanto o que é necessário é algo “estrutural”, aponta o diretor clínico do CHBV.

“O incremento que foi feito na hora extraordinária paga aos profissionais teve um impacto francamente positivo. Havia escalas na área da medicina interna e cirurgia que tinham bastantes lacunas. E agora são escalas que estão completas”, diz.

Num ponto todos os diretores clínicos ouvidos pela Renascença estão de acordo. A cultura de trabalho da classe médica mudou nos últimos anos. A compatibilização da vida profissional com pessoal passou a ser uma prioridade.
“Qualquer medida tomada meramente económica ou outras que se afaste deste objetivo de conciliação está condenada ao fracasso”, sublinha José Luís Brandão.

“Eles não iniciam uma carreira, uma especialidade, a pensar que têm de estar naquele horário normal, de segunda a sexta, e depois ter o seu período de urgência. Atualmente, até em especialidades mais técnicas, [os médicos] procuram horários mais condensados, para depois terem liberdade de ação, flexibilidade”, nota Eugénia Madureira.

A compactação de horário, que “nalgumas áreas é possível, noutras não”, tornou-se comum. Muitas das “contratações bem-sucedidas têm sido feitas na base desse acordo com o profissional”, admite José Luís Brandão, lembrando, em todo o caso, que há especialidades que a concentração de horas de trabalho “é totalmente contraproducente”.
“Estamos a passar por um choque geracional e conceitos como o que é o serviço público, o que é dedicação pública estão claramente a sofrer uma transformação. E a sociedade, a tutela, tem de estar atenta a isso”, conclui.

22.5.23

Obrigado à Joana Marques, e desculpas aos enfermeiros

Gustavo Carona, opinião, in Público



Estar do lado certo da história implica lutar pelo que está certo, mas também lutar contra o que está errado, e a Joana Marques, com a sua equipa de investigação de patetas, fá-lo como ninguém.


Eu acho que ainda não ouvi a Joana Marques a ser elogiada por aquilo que eu mais valorizo no Extremamente desagradável: a curadoria da imbecilidade e da estupidez da sociedade que insiste em proliferar, e que faz mal às pessoas e quase sempre também à sua carteira.

Claro que o facto de nos fazer rir é por si só serviço público quando se tem o brilhantismo da Joana Marques e se é tão “desagradavelmente” bem acompanhada pela Inês Gonçalves e pela Ana Galvão. Mas temos que dissecar a importância dos conteúdos desta paródia de patetices. Se por um lado há conteúdos maravilhosos sobre temas que são simplesmente algo ridículos, como a cobertura da TVI do casamento da Lili e do Bruno Carvalho, por outro há conteúdos que deviam ser “patrocinados” pelas tutelas da saúde e da educação pelo bem que trazem a Portugal e ao mundo.

Não é por acaso que a Joana Marques recolhe inimigos premium, como p.e. os negacionistas da pandemia, porque o humor consegue ser mais eficaz do que todos os consensos científicos quando se trata de explicar a leigos o quão ridículo é acreditar no ridículo. Pegando em apenas alguns exemplos mais recentes, porque a paródia é infinita como a estupidez humana, ela foi extremamente pedagógica ao apresentar-nos: os youtubers que foram ao Parlamento e confundem visualizações com credibilidade; a entrevista num programa principal da TV a uma taróloga clínica; ou uma ex-advogada a quem a pandemia serviu para mudar de rumo profissional e agora vende reiki online, em vídeos, a grupos, inclusive crianças e adolescentes que são divinamente tratados por esta “terapeuta holística” que vê luzes nas pessoas e recebe a informação no cérebro antes de as coisas acontecerem.


Estar do lado certo da história implica lutar pelo que está certo, mas também lutar contra o que está errado, e a Joana Marques, com a sua equipa de investigação de patetas, fá-lo como ninguém. Parabéns e obrigado. Serviço público.

A semana passada cometi um erro, e como tal devo um pedido de desculpas aos enfermeiros e a quem o quiser aceitar. Podia dizer que me compreenderam mal, mas prefiro assumir com humildade o erro de me ter explicado mal, ao não ter sido claro na separação dos meus dois pontos da crítica com níveis de substância incomparáveis. 1) Sou contra a retirada do médico obstetra do parto “normal, sem complicações”, e isto em nada abala a minha enorme admiração e respeito pelas competências teóricas, técnicas e humanas dos enfermeiros, em particular dos enfermeiros especialistas em obstetrícia (ESMO).

Os argumentos a favor da retirada do médico obstetra são organizacionais e economicistas, e não são argumentos de somenos importância, no entanto, eu pauto as minhas opiniões principalmente por argumentos clínicos. Argumentos estes que são no essencial obstétricos, mas não só, pois no bloco de partos há que pelo menos acrescentar o posicionamento dos anestesistas e pediatras (neonatologistas) e a forma como funcionarão, ou não, as alas com médicos e as alas sem médicos (foi com esta designação que recebi vários relatos de mulheres portuguesas muito insatisfeitas com o atendimento que tiveram durante o parto no Reino Unido). Podem discordar ou acusar-me de várias coisas, mas nunca de corporativismo, pois nunca o fui, já recusei sê-lo, já muito mais vezes fui vocal pela causa dos enfermeiros do que qualquer outra, e é bem provável que nunca mais volte a ser médico. Logo, eu não defendo os médicos, eu defendo, mal ou bem, os cuidados de saúde e as pessoas.


Quanto ao ponto 2) da minha crítica, na crónica anterior, prende-se com a negação da ciência, negação dos cuidados de saúde, e esta recente campanha de desinformação concertada que advoga de uma forma fanática o parto “natural”. Todas as áreas da saúde estão a ser atacados pelas terapias que ou não fazem nada ou fazem mal, mas foi na obstetrícia que esta ignorância muito atrevida ganhou o seu maior cavalo de batalha: o parto “natural” que faz dos médicos obstetras uns carniceiros maquiavélicos que estudaram 13 ou 14 anos apenas para maltratar mulheres e bebés.

Foi na obstetrícia que esta ignorância muito atrevida ganhou o seu maior cavalo de batalha: o parto 'natural', que faz dos médicos obstetras uns carniceiros maquiavélicos que estudaram 13 ou 14 anos apenas para maltratar mulheres e bebés

A medicina e os cuidados de saúde, dos quais a enfermagem é uma parte muito importante, foram sendo concebidos e os saberes acrescentados para contrariar a natureza que nos leva à morte cedo demais, ou ao sofrimento evitável. Se há mulheres que querem ter filhos no meio do mato, elas têm essa liberdade e esse direito, mas que o façam a saber que a probabilidade de morrerem aumenta em flecha, e a probabilidade de o bebé sair sem vida aumenta mais ainda.


E esta luta pela boa informação, pela literacia na saúde, tem de ser feita por todos os profissionais de saúde e, na minha opinião, todos estes profissionais, sejam médicos, enfermeiros ou outros, que sejam coniventes com este retrocesso de mandar de volta os partos para as cavernas desde que tenham música a gosto são cúmplices das mortes que estas teorias patéticas causam à nossa volta, e não são poucas.

O meu sincero pedido de desculpas por não ter sido claro no ponto 1) e na sua diferenciação da minha crítica reiterada e frontal a todas as pessoas que contribuem para o ponto 2), crítica para a qual temos também o incrível trabalho da Joana Marques e da sua equipa, mas não chega. Temos todos de remar com força contra a maré da estupidificação das massas.

Eu não escrevo em benefício próprio, nem escrevo preocupado se vou fazer amigos ou evitar inimigos. Eu escrevo na luta pela ciência, pela medicina, pela humanidade, e se pelo meio conseguir fazer crescer a vontade necessária para que nos sintamos cidadãos do mundo, eu fico contente por apresentar dados e emoções sobre seres humanos que ninguém quer ver.

Aqui fica mais um: “4,5 milhões de mulheres e recém-nascidos morrem todos os anos durante a gravidez, o parto, e as primeiras semanas pós-parto, o equivalente a uma morte a cada 7 segundos, de causas maioritariamente preveníveis ou tratáveis, se existissem cuidados de saúde adequados.” (relatório da ONU de 9 de Maio de 2023).

Obrigado Joana Marques, e as minhas sinceras desculpas aos enfermeiros que leram nas minhas palavras uma crítica à sua competência.

As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel da Mota a favor dos Médicos sem Fronteiras

18.5.23

Só houve candidatos para 40% das 900 vagas abertas para médicos de família no último concurso

Ana Maia, in Público

Ministério da Saúde abriu 978 vagas para contratar recém-especialistas de medicina geral e familiar, mas só se candidataram 395. Em saúde pública houve 20 candidatos.


O Ministério da Saúde colocou a concurso 978 vagas para contratar recém-especialistas de medicina geral e familiar e especialistas que terminaram a formação em épocas anteriores e que não tinham contrato com o SNS, mesmo sabendo que muitas não seriam ocupadas. Ainda é cedo para saber quantos contratos efectivos vão resultar daqui, mas já é conhecida a lista de médicos que concorreram e foram admitidos: são 393.

Segundo a Lusa, que analisou dados do Portal da Transparência do SNS, o número de utentes sem médico de família aumentou 29% num ano, ascendendo agora a quase 1,7 milhões. Isto porque, em Abril de 2022 havia um total de 1.299.016 milhões utentes que não tinham médico de família atribuído, número que aumentou para 1.678.226 um ano depois. Os profissionais ouvidos consideram que a situação se deve às aposentações e à falta de capacidade do SNS para atrair especialistas.

A lista ordenada dos médicos candidatos admitidos e excluídos do concurso para a área de medicina geral e familiar foi publicada na terça-feira em Diário da República. Foram admitidos 393 candidatos e excluídos dois - por não cumprirem o ponto um do aviso de abertura do concurso que determinava que os candidatos não podiam ter uma relação jurídica de emprego por tempo indeterminado em vigor com o SNS -, o que resulta em 395 candidatos.

Embora o número seja bastante inferior ao número de vagas colocadas a concurso – representa 40% dos lugares disponibilizados –, terá conseguido ir buscar candidatos de outras épocas que estavam fora do SNS. Isto porque, segundo dados da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), 330 recém-especialistas de medicina geral e familiar terminaram a sua formação esta época.

Esse era, aliás, um dos objectivos assumidos pelo Ministério da Saúde. “Vamos abrir concurso para todas as vagas existentes no país, mais de 900. Isto é, em todos os locais do país onde falta um médico de família”, disse o ministro Manuel Pizarro, numa entrevista ao PÚBLICO. A mensagem foi reforçada no diploma que abriu o concurso: “É especialmente relevante reconhecer a necessidade de atrair médicos especialistas de medicina geral e familiar para exercício de funções em unidades funcionais dos agrupamentos de centros de saúde onde se identifica maior número de postos de trabalho a preencher, com vista a assegurar a satisfação das necessidades em saúde da população.”

Na mesma entrevista, quando questionado sobre a diferença entre o número de médicos de família que terminaram a formação nesta primeira época e o número de vagas abertas, o ministro referiu que o que estava “em causa é a percentagem desses 350 que vamos conseguir atrair e se alguns dos que até agora optaram por ficar fora do SNS aceitam regressar”. Numa Comissão Parlamentar de Saúde, Manuel Pizarro disse esperar contratar 200 médicos de família nos próximos meses.

Além de vagas com incentivos – dos lugares colocados a concurso, 275 são vagas classificadas como carenciadas –, o concurso deste ano tem 20 lugares com acesso a mobilidade, permitindo que médicos que concorram a esses lugares na região de Lisboa e a Vale do Tejo possam posteriormente ser transferidos para o Norte.

Há muito que os médicos lembram que é preciso melhorar as condições de trabalho e salariais para que a capacidade de retenção e fixação do SNS aumente. Está a decorrer um processo negocial entre os sindicatos médicos e o Ministério da Saúde, cujo calendário termina no final de Junho. Uma das questões mais reclamadas é que o gabinete de Manuel Pizarro apresente uma proposta de revisão da grelha salarial. Outra questão em negociação é a da dedicação plena que trará melhorias financeiras de acordo com o cumprimento de objectivos.
Vagas desertas em saúde pública

A tentativa de ir buscar médicos de família, e de outras especialidades, não é de agora. Nos últimos anos, o ministério tem opção por abrir mais vagas do que o número de recém-especialistas que terminaram a formação. Mas têm ficado sempre algumas vagas sem candidatos. No concurso da primeira época do ano passado, o ministério colocou a concurso 432 lugares e concorreram 379 médicos (houve um excluído). Em 2021 foram disponibilizadas 459 vagas que tiveram 448 candidatos (também houve um excluído).

O aviso publicado terça-feira em Diário da República traz também a lista ordenada de candidatos admitidos e excluídos do concurso para a contratação de jovens médicos de saúde pública. Foram colocadas a concurso 29 vagas – dez das quais com direito a incentivos – e admitidos 20 candidatos. Não houve clínicos excluídos. Ou seja, dois terços dos lugares tiveram candidatos. Terminaram esta época a sua formação 21 clínicos de saúde pública, de acordo com a informação prestada pela ACSS.

Os resultados agora apurados não se traduzem necessariamente no número de médicos que vão ser contratados pelo SNS. Se não existirem opositores aos resultados, o passo seguinte é o processo de escolha da vaga, de acordo com a ordenação, e pode haver desistências durante esse período. Mesmo os que fazem contrato têm posteriormente um período experimental, durante o qual podem sair. No ano passado, o secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos, Jorge Roque da Cunha, contabilizou, recorrendo ao historial, que cerca de 20% dos candidatos não aceitam a vaga e cerca de 5% acabam por sair durante o período experimental.

8.5.23

DGS perde competências e técnicos

Vera Lúcia Arreigoso, in Expresso

Peritos afirmam que o ministério vai extinguir a autoridade de saúde. E alertam: não há uma resposta integrada para a vinda do Papa

Os médicos de saúde pública garantem que “se afigura uma deliberada asfixia institucional da Direção-Geral da Saúde (DGS) e uma incerteza em torno dos seus serviços em Portugal”. A equipa ministerial está a retirar-lhe funções, com a perda sucessiva de profissio­nais, e os especialistas estão preocupados. Gustavo Tato Borges, presidente da Associa­ção Nacional dos Médicos de Saúde Pública, alerta que nem sequer está garantida “uma resposta integrada de saúde pública para a Jornada Mun­dial da Juventude”.

Em pouco tempo, a autoridade nacional de saúde perdeu a liderança das relações internacio­nais, da saúde sazonal, da saúde mental e, há perto de uma semana, do envelhecimento ativo e saudável, que, neste caso, fica sob a alçada da Secretaria-Geral do Ministério da Saúde. A DGS ficou sem a intervenção operacio­nal e está cada vez mais confinada ao papel técnico-normativo.

Com o esvaziamento de funções e a falta de atratividade, vão saindo também os profissionais. Pelos relatórios de atividade, 20 a 30 elementos por ano abandonam a DGS, com reduzidas substituições. “Todos os técnicos superiores que vão para a DGS perdem vencimento, cerca de €600 mensais, porque ficam sem suplemento de disponibilidade”, explica Jorge Roque da Cunha, presidente do Sindicato Independente dos Médicos. “As carências de recursos são transversais a todas as áreas. No entanto, a DGS tem contado com peritos e consultores em áreas específicas e grupos de trabalho”, responde a DGS.

Das quatro direções de serviços da DGS, apenas a de Informação e Análise tem diretor, que termina funções no próximo ano. “Neste momento, se houver um novo surto no verão ou na Jornada Mundial da Juventude, não temos autoridade de saúde no Norte e no Alentejo para ­atuar”, diz um especialista, que pede anonimato. “Os delegados regionais de saúde nas duas re­giões terminaram há muito as comissões de serviço e não foram reconduzidos ou substituídos formalmente, portanto não têm poder”, explica.

Em situação semelhante está a própria diretora-geral da Saúde, já aposentada, mas no cargo até ser substituída. Graça Freitas vai de férias em breve e não deverá regressar. “É inconcebível que, desde novembro, Graça Freitas não tenha sido substituída. Aliás, nem o concurso foi ainda aberto pelo ministério. Demonstra bem a falta de interesse e mostra claramente que quer o fim da saúde pública”, afirma Gustavo Tato Borges. O gabinete ministe­rial diz que não: “O processo de abertura do concurso para a substitui­ção da diretora-geral da Saúde, que se encontra em plenitude de funções, está em curso de modo que não haja nenhuma descontinuidade”.

Gustavo Tato Borges reforça as críticas: “O ministro da Saúde [Manuel Pizarro] ainda não era ministro e já criticava a DGS, dizendo que deveria existir, sim, uma Direção-Geral para a Promoção da Saúde. A Agência de Promoção da Saúde que vai criar estará na secretaria de Estado e não na DGS, como deveria ser.” Diz até que o Governo está a ir contra a estratégia internacional de reforço das várias autoridades nacionais de saúde pedida após a pandemia e do serviço europeu de saúde pública que deverá ser criado. “O ministério está a ir em sentido contrário. A saúde pública vai ser espartilhada, sem qualquer capacidade de intervir.”

Os problemas agravam-se também a nível regional e local. “A saúde pública está integrada nas administrações regionais de saúde (ARS) e nos agrupamentos de centros de saúde e não sabemos o que vai acontecer, porque as próprias ARS vão ser extintas”, recorda Tato Borges. “A DGS precisa de ser reforçada de profissionais, grande parte tem 60 anos, e financeiramente, para que as pessoas tenham mais qualidade de vida.” As carências são muitas: “Vamos para os locais com papéis, porque não nos dão tablets, e temos de esperar por uma brecha para conseguirmos uma viatura. Durante a pandemia, a DGS teve de arranjar verbas, o orçamento não chegava para pagar o sistema trace-covid aos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, entidade igualmente pública, não faz sentido.” O sindicalista Roque da Cunha revela que “já foram feitas várias reu­niões com a secretária de Estado da Promoção da Saúde, mas é preciso falar ao ministro”. Os especialistas realizaram um fórum médico esta semana e a própria Ordem dos Médicos vai intervir.

Ao Expresso, o Governo garante que não há razões para alarme. “O Ministério da Saúde acolhe todos os contributos para este importante debate, não se justificando nenhum alarmismo em relação ao futuro de uma instituição imprescindível e necessária ao país. Não existe qualquer esvaziamento da DGS. Pelo contrário, está em curso um amplo trabalho para a reforçar. Ainda esta semana decorreram diversas reuniões com esse mesmo objetivo, sendo disso exemplo as reuniões realizadas no contexto da internalização do processo de vacinação.”

O ministério adianta ainda que, “ao mesmo tempo, está em atividade a Comissão para a Reforma da Saúde Pública, com a missão de proceder à elaboração de uma proposta de lei da saúde pública”. A estratégia irá no sentido de cumprir “os compromissos internacionais na área da saúde pública assumidos, nomeadamente, junto da Organização das Nações Unidas, da Organização Mundial da Saúde, do Conselho da Europa e da União Europeia nas áreas da proteção e promoção da saúde, bem como da prevenção da doença”.

2.5.23

Saiba o que tem que fazer para pedir uma baixa de curta duração no SNS 24

Alexandra Campos, in Público online

Direcção Executiva do SNS, que criou nova solução em articulação com o Ministério do Trabalho, explica como vai funcionar a autodeclaração de baixa por doença até três dias.

Bastaram "quatro meses" para concretizar uma medida que era solicitada pelos médicos “há mais de vinte anos”, sublinha a Direcção Executiva do Serviço Nacional de Saúde, num texto que explica em detalhe, com perguntas e respostas, o que fazer para pedir uma autodeclaração de doença para baixa de curta duração (até três dias consecutivos), que passa a poder ser feita pelo próprio trabalhador no portal do SNS 24.

A medida entra em vigor na segunda-feira, data a partir da qual deixa de ser necessário ter um atestado médico para justificar ausências de curta duração ao trabalho.

A autodeclaração de doença pode ser requerida por qualquer trabalhador com idade igual ou superior a 16 anos, sob compromisso de honra. Esta é “a proposta mais relevante na desburocratização dos cuidados de saúde” e era “algo solicitado pelos médicos há mais de 20 anos”, destaca a Direcção Executiva que, em articulação com o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social e os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS), construiu esta solução para"facilitar a vida das pessoas” e evitar muitas das "mais de 600 mil consultas" agendadas por ano para a emissão de atestados médicos para ausências ao trabalho até três dias.

O PÚBLICO reproduz aqui as perguntas e respostas que vão estar disponíveis no site do SNS 24 para os cidadãos. Pode consultar também os esclarecimentos, em maior detalhe, que serão disponibilizados aos utentes e aos profissionais no pdf em anexo.
O que é uma autodeclaração de doença?

É uma declaração, sob compromisso de honra, comunicada pelo trabalhador para justificar a ausência ao trabalho por motivo de doença.


Autodeclaração de doença Descarregar
Quem tem direito a requerer?

Qualquer trabalhador com idade igual ou superior a 16 anos pode requerer uma autodeclaração em caso de doença.
Como se deve requerer?

A autodeclaração deve ser requerida preferencialmente através dos canais digitais do SNS 24 (portal SNS 24 ou app SNS 24, ou área pessoal do Portal do SNS 24), ou, na sua impossibilidade, através da linha SNS 24 (808 24 24 24).
Quando é possível requerer?

A autodeclaração pode ser requerida a partir do primeiro dia de ausência por doença, sendo o prazo alargado até um máximo de cinco dias. Por exemplo: um doente que necessite do documento de segunda a quarta, pode requerê-lo entre segunda e sexta.
Quantas autodeclarações cada trabalhador tem direito a requerer?

É possível requerer duas em cada ano civil.
Como proceder se já tiver usado as duas autodeclarações no ano?

Quem estiver impossibilitado de comparecer no local de trabalho por motivo de doença e já tiver requerido duas autodeclarações no ano corrente, deverá ser avaliado em consulta médica.
Uma autodeclaração justifica quantos dias de ausência ao trabalho?

Cada documento justifica até três dias consecutivos de ausência ao trabalho. No caso do trabalhador regressar ao trabalho antes do decurso do prazo da autodeclaração, apenas lhe são descontados os dias de ausência.
Como proceder se o trabalhador se mantiver doente e com incapacidade para o trabalho após os três dias da autodeclaração?

O trabalhador deverá recorrer a consulta médica para avaliação clínica. Caso se verifiquem critérios de incapacidade para o trabalho por motivo de doença, deverá ser emitido, pelo médico, um Certificado de Incapacidade Temporária (CIT) inicial. Na transmissão das autodeclarações e dos CIT para a Segurança Social, os períodos de vigência destes documentos serão encadeados automaticamente.
A autodeclaração é equiparada ao CIT para efeitos de carreira contributiva?

Sim, tem o mesmo estatuto legal que o CIT em termos de carreira contributiva.
Quando a autodeclaração é substituída por CIT, é anulada em termos de contabilização para as duas autodeclarações possíveis no ano civil?

Não. Após a emissão, a autodeclaração é contabilizada independentemente de ter sido substituída por CIT.

20.2.23

Professores, médicos, polícias - Quando os preços das casas lhes mudam a vida

Ana Maia (texto), Sónia Trigueirão (texto), Idálio Revez (texto), Daniel Rocha (fotografia) e Nelson Garrido (fotografia), in Público online

Os preços das casas levam oficiais de justiça e polícias a ponderar deixar a profissão. Fazem médicos fugir de Lisboa. Obrigam professores a partilhar apartamentos como quando eram estudantes.

Os custos com a habitação dispararam e estão a levar funcionários públicos a abandonar cidades como Lisboa. Outros optam mesmo por mudar de profissão. Estamos a falar de carreiras essenciais, como as das forças policiais, os médicos, os oficiais de justiça, os enfermeiros. Em algumas, não há opção: faz parte da missão ser “deslocado”. Muitos assumiram compromissos com empréstimos que começam a ter dificuldades em pagar. Há quem esteja prestes a emigrar. Na semana em que o Governo anunciou um grande pacote para atenuar a crise da habitação, fomos ouvir histórias de actuais ou antigos funcionários do Estado para quem a casa se tornou um problema.

Fomos alertados pelo gestor da conta que a Euribor a 12 meses — a revisão vai acontecer em Maio — ia subir. Em vez de 800 euros, a mensalidade passaria para 1300.
Carlos Santos
Médico

Decidiu emigrar. Tem sonhos para concretizar

Em Setembro, Carlos Santos deixa Portugal rumo à Noruega para não desistir do sonho de ser médico especialista. Parte com o plano de regressar, no máximo, em dez anos, mas sem a certeza das voltas que a vida ainda pode dar. E a sua já deu várias. A última foi impulsionada pelo custo da habitação, que primeiro fez com que saísse da zona da Grande Lisboa e em breve o empurrará para fora do país.

O sonho teve início aos 33 anos, já depois de ter tirado dois cursos na Escola Superior de Tecnologias da Saúde, em Lisboa: Saúde Ambiental e Radiologia.

Carlos Santos, agora com 39 anos, começou a trabalhar aos 15, enquanto estudava, para ajudar os pais. Tinham vindo de Angola no pós-25 de Abril “sem nada”, viviam no Seixal, precisavam e ainda precisam do seu apoio.

Sempre estudou e trabalhou em simultâneo, até ir para o Algarve, em 2016, estudar Medicina. Vendeu o que tinha para suportar os gastos e regressou a Lisboa para terminar o curso quando a filha entrou para a escola primária. Primeiro alugou um T1 por 560 euros mensais na zona do Seixal e depois, ainda com o apoio do seu pé-de-meia, em 2019, comprou um T2 em Almada, com uma mensalidade ao banco de 450 euros mensais.

Fez o ano comum no Hospital Garcia de Orta, a ganhar cerca de 1200 euros líquidos, e em 2021 conseguiu entrar na especialidade de Medicina geral e familiar, “na unidade que queria e com a tutora que queria”. Aos pouco mais de 1300 euros que ganhava como interno, juntou um rendimento extra de 500 euros mensais — entretanto diminuiu para 350 euros — das aulas que passou a dar na mesma escola superior onde se formou inicialmente.

Com este rendimento extra podia pagar um pouco mais e eu e a minha namorada começámos a pensar em comprar uma casa para a família. Começámos a ver casas, mas não conseguimos encontrar um T3 que pudéssemos pagar. Era tudo perto dos 400 mil euros.

Decidiram apostar em Torres Vedras, onde fizeram um contrato de compra de uma moradia T4 por 340 mil euros, com uma mensalidade de 800 euros. Em Maio do ano passado concretizaram a compra. “Mas logo a seguir recebemos a notícia que a minha namorada ia ser despedida.” Entre os gastos da casa, pensão de alimentos da filha, alimentação e transportes e um rendimento a dois de cerca de 2700 euros, “já não tínhamos margem para fazer grande coisa”.

A “grande reviravolta” veio pouco depois. “Fomos alertados pelo gestor da conta que a Euribor a 12 meses — a revisão vai acontecer em Maio — ia subir. Em vez de 800 euros, a mensalidade passaria para 1300. Não temos possibilidade de pagar este valor, eu com o salário de interno e ela estando desempregada. Tive de tomar uma decisão em dez dias. Rescindi contrato com o SNS, desisti da especialidade que sempre quis e tornei-me prestador de serviço de clínica geral."

Ainda não conseguiu vender a vivenda para voltar a um apartamento na zona de Almada. Mas estar como prestador de serviço (os chamados "médicos tarefeiros" que não têm que ter a formação de uma especialidade concluída) dá-lhe uma “vida tranquila” em termos financeiros. Tem cinco empregos, faz um “um pouco mais de 40 horas semanais” e traz para casa entre 2500 e 4 mil euros líquidos.

Como prestador de clínica geral, é o único médico de uma extensão do Centro de Saúde de Torres Vedras, que atende cerca de 2 mil utentes, e ganha o dobro do que ganhava. E esse é um dos seus lamentos. “Apercebi-me de que as condições de futuro no SNS não são boas. Não é uma questão de querer ser rico. É de ter dinheiro para pagar as contas e dar uma boa vida à família.”

Por isso vai emigrar. “Portugal não me oferece a possibilidade de ser o médico que quero. A Noruega dá-me a possibilidade de escolher uma especialidade de acordo com o meu currículo.” Vai apostar em Radiologia.

Já contactou com a embaixada, com portugueses a residir naquele país, já tem a aplicação onde vai vendo a oferta de internatos e tem emprego garantido como médico de clínica geral. Receberá um salário entre os 7 mil e os 8 mil euros por 37,5 horas semanais. “Vai garantir-me dinheiro para apoiar os meus pais e a minha filha e voltar com a segurança de que posso estar cá a trabalhar como especialista sem estar preocupado com estas questões.”

Segundo os últimos dados disponíveis no “bilhete de identidade” dos cuidados de saúde primários, em Janeiro deste ano havia mais de 1,5 milhões de utentes sem médico de família atribuído. Destes, cerca de 1 milhões na região de Lisboa e Vale do Tejo. Também tem sido nesta região que muitos hospitais do SNS têm mostrado dificuldades em conseguir completar escalas para as urgências.

Voltei a casa dos pais, mas pelo menos não ando a contar o dinheiro, porque tenho menos despesas...
Vasco Coelho
Ex-oficial de Justiça

A casa consumia-lhe boa parte do salário, voltou a viver com os pais

Vasco Coelho tem 37 anos, é licenciado em Direito e está prestes a concluir o estágio no Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT), onde vai ser técnico superior, em Coimbra. Para trás deixa a carreira de oficial de justiça no distrito de Lisboa. “Gostaria muito de ser oficial de justiça, fui colocado num sítio perto da praia, mas depois de pagar a renda e as despesas não tinha dinheiro para nada.”

Quando, em 2017, foi colocado no Tribunal de Cascais, encontrou alojamento em Alcabideche, a menos de seis quilómetros de carro. Pagava 380 euros mais despesas por um T0, mas rapidamente o senhorio decidiu subir a renda para 400. O que se tornou incomportável para um salário de pouco mais de 700 euros.

Procurou outra solução. Um quarto numa casa partilhada foi o melhor que conseguiu. Pagava 350 euros mais despesas, mas estava em Carcavelos, a dez quilómetros do tribunal, mas pelo menos podia ver o mar.

Quando parecia estar mais ou menos estável, a sua situação no trabalho começou a tornar-se difícil. “Eu era o tapa-buracos. Como havia falta de funcionários, passava a vida a mudar de secção. Aquilo que um dia foi uma paixão estava a tornar-se num martírio.” O baixo salário contribuiu para o desamor.

Carlos Almeida, presidente do Sindicato dos Oficiais de Justiça, explica que os funcionários judiciais, “em primeira nomeação, são obrigados a aceitar os lugares para onde são nomeados”. “São colocados onde fazem falta, em Lisboa, nomeadamente na Comarca de Lisboa Oeste, que abrange tribunais como Sintra e Cascais, por exemplo.” Os altos preços das casas consomem-lhes boa parte do salário.

Foi nestas circunstâncias, “de um desgaste emocional e psicológico”, que Vasco começou a concorrer para outros ministérios. Conseguiu um lugar no Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social (IGFSS), mas, em vez de melhorar a sua condição, piorou. “Não conseguia casa em Lisboa. Então fiquei onde estava [Carcavelos], mas passei a ter mais despesa com transportes”, nos quais perdia várias horas por dia.

Acabou por concorrer a um lugar no IMT, em Coimbra, e foi colocado. “Voltei a casa dos pais, mas pelo menos não ando a contar o dinheiro, porque tenho menos despesas...”

No país todo faltam mais de mil funcionários judiciais. Só nas três comarcas de Lisboa faltam 483, segundo os sindicatos do sector.

Se queria ir a casa ver a minha mãe, eram mais uns 200 euros em viagens.
Teresa Fernandes
Oficial de Justiça

“Lágrimas nos olhos.” Só vê o marido aos fins-de-semana

“Vivo em solidão, entre quatro paredes, para ganhar pouco e em prol de uma carreira em que não somos valorizados.” É assim que Tânia Fernandes, de 31 anos, descreve o que sente por ser oficial de justiça, profissão que abraçou em 2019 e que a fez deixar Braga.

Licenciou-se em Solicitadoria e Administração, trabalhou numa loja de vestuário e depois numa empresa de contabilidade, mas tinha um fascínio que não sabe bem descrever, que a puxava para a Justiça. Sabia que em início de carreira os oficiais de justiça são, por norma, colocados onde há mais necessidade, nomeadamente no distrito de Lisboa, mas tinha uma amiga que, ao fim de três meses, tinha conseguido uma permuta e regressara para perto de casa. “Pode ser que eu tenha a mesma sorte...”, pensou. “Entre amigos, dizíamos que lhe tinha saído o Euromilhões. Hoje, quase quatro anos depois, percebo o verdadeiro significado dessa frase e também percebo como é difícil ganhar esse Euromilhões...”

Veio de Braga, portanto, para ocupar um lugar de oficial de justiça no Tribunal de Sintra. Começou por ganhar pouco mais do que 700 euros por mês. Teve de se contentar com um quarto pelo qual pagava 360 euros por mês, mais despesas e sem recibo. “Se queria ir a casa ver a minha mãe, eram mais uns 200 euros em viagens.”

Hoje recebe cerca de 900 euros. Paga 300 já com despesas incluídas e vive numa casa com melhores condições, que partilha com mais duas pessoas. Ou seja, na prática, continua a viver num quarto. E longe de casa. “Gosto muito do meu trabalho, mas a minha família é a minha família. Perdi o meu pai cedo e a minha mãe fez muitos sacrifícios por mim e pela minha irmã. Se ela precisar de mim, o que tenho para lhe dar?”

No ano passado, casou-se. Os domingos à tarde são passados “de lágrimas nos olhos e coração apertado”. Regressa a Lisboa e deixa o marido em Braga. “E só o volto a ver na sexta-feira seguinte.”

Tânia diz que tem sonhos que quer concretizar e que só serão compatíveis com o facto de ser oficial de justiça se conseguir colocação no Porto. O próximo concurso é em Abril. “Quero construir uma casa e quero muito ser mãe, mas só conseguirei isso se for para mais perto de casa”, afirmou, revelando que o marido, que trabalha numa carpintaria, também ponderou vir para Lisboa. Candidatou-se à PSP e à GNR e foi chamado, mas acabou por desistir. “Percebemos que com os preços das casas em Lisboa e mesmo nos arredores, Sintra e Amadora, seria muito difícil para nós e, além disso, um primo do meu marido, que é da PSP, explicou-lhe o que era estar deslocado.”

Tânia sabe o que é estar deslocada e ganhar pouco: “É levar comida numa marmita para o tribunal para não gastar a ir comer fora, é ir para casa ao fim do dia, muitas vezes depois de muitas horas de trabalho porque há falta de oficiais de justiça, é chegar a um quarto vazio e ficar sozinha durante cinco dias e ansiar por sexta-feira para fazer sete horas de viagem num autocarro e chegar a casa às 23h e abraçar o meu marido.”

Se em Abril, quando concorrer ao próximo movimento de oficiais de justiça, não lhe sair o tão esperado “Euromilhões”, provavelmente desiste e escolhe a família, ser mãe e construir uma casa.

Os casos de desistência são, de resto, comuns. Hugo Ornelas, de 26 anos de idade, licenciado em Direito, ganha 900 euros, paga uma renda por um quarto de 350 euros em Rio de Mouro e só pensa voltar à terra, na Madeira. “A falta de funcionários judiciais na zona de Lisboa é gritante e isso dificulta os movimentos para outras zonas do país”, diz. Conta que tem um colega que decidiu mesmo abandonar a profissão e outro que está de baixa já há uns seis ou sete meses. “Tem 44 anos e tem a família na Madeira. Foi-se abaixo. Gosto muito de ser oficial de justiça, mas sinto que estou a pagar um preço pessoal muito alto.”

Só se fala dos professores, mas também passamos dificuldades.
Sónia Gomes
Oficial de Justiça

Vive num quarto de 450 euros, vale-lhe a ajuda dos pais

Sónia Gomes, de 32 anos, natural de Santa Maria da Feira, está há quatro anos e meio colocada como oficial de justiça no Tribunal de Cascais. Sabia que não estava a enveredar por uma profissão fácil. Os protestos e reivindicações destes profissionais por melhores salários e uma valorização da carreira já têm décadas e parecem repetir-se num sem-fim ao longo dos anos, sem resolução à vista.

“Mas há sempre uma esperança”, diz com confiança. Afinal, já está no terceiro ano do curso de Direito e os sacrifícios que faz ao tentar conciliar estudos com o trabalho têm de ter um retorno.

No início da carreira, recebia pouco mais de 700 euros, agora são 980, mas, mesmo assim, é complicado gerir o dinheiro com tantas contas para pagar. “Os preços das casas também sobem e os alimentos... Desde que cheguei não consegui passar de um quarto. Pago 450 euros com despesas à parte e não tenho recibo. Vivo no Estoril para estar perto do tribunal. Mais longe, pagaria também mais em transportes”, conta. Vale-lhe a ajuda dos pais. Sempre que pode ir a Santa Maria da Feira, traz comida da casa de família.

Comer fora é um luxo para o qual o meu salário não chega”, diz. “Não temos uma copa ou uma sala onde fazer refeições e por isso almoçamos na secretária”, prossegue. “Só se fala dos professores, mas nós, os oficias de justiça, também passamos muitas dificuldades.

Sónia não esconde que já pensou deixar a profissão. “Viver num quarto, estar sempre a contar o dinheiro e olhar para as mãos e vê-las cheias de nada não é vida”, sublinha. “Com 32 anos, é muito complicado e cansativo estar a partilhar casa com desconhecidos e a viver na precariedade.”

Tenho colegas que trocaram a farda por um camião
José Luís
Polícia

"O alojamento deve ser acautelado pelo Estado"

As dificuldades em pagar uma casa em Lisboa, aliadas aos baixos salários, são uma realidade para muitos funcionários públicos que, pelas características da sua profissão, estão deslocados em todo o país, muitas vezes longe das famílias. Aos oficiais de Justiça juntam-se, por exemplo, polícias e professores.

Na PSP, o problema do alojamento arrasta-se há muito, diz Paulo Santos, presidente da Associação Sindical dos Profissionais da Polícia (ASPP/PSP). Em Lisboa, onde dados recentes mostram que o valor das rendas já é superior ao registado em cidades como Madrid, é especialmente grave. “Um polícia, quando termina o curso, é colocado em Lisboa e na quase totalidade dos casos permanece lá muitos anos”.

“A ASPP/PSP considera necessário olhar o problema da pré-aposentação de forma integrada com as admissões, para que tenha reflexos também na mobilidade. Se assim acontecer, evitamos ter polícias em Lisboa por tanto tempo, mitigando o problema do alojamento”, prossegue. Para além disso, “o alojamento deve ser acautelado pelo Estado, face às especificidades que decorrem da condição policial, e há condições para tal, através do muito património do Estado que existe”.

Recentemente, o Governo anunciou que esperava disponibilizar, “até à Primavera”, entre 240 e 280 vagas de alojamento para polícias em três residências na região de Lisboa, que vão permitir aos agentes deslocados aceder a habitação a preços controlados. Paulo Santos alega que é um número “manifestamente insuficiente”.

José Luís, nome fictício, tem 25 anos e é do Porto, só beneficiou do alojamento dos serviços sociais da PSP durante um ano. “Quando acabamos o curso, ninguém nos disse que havia essa possibilidade de ter um alojamento dos Serviços Sociais e na altura recorremos a uma imobiliária para encontrar uma casa. Fiquei com três colegas num apartamento. Dava uns 300 euros a cada um, mas sem contar com as despesas. E, quando iniciei funções, recebia à volta de 809,13 euros mensais. Como era muito caro, começámos a procurar outra solução e foi aí que soubemos que havia casas dos serviços sociais, mas só podemos ficar um ano”, relatou.

Segundo este agente, nos serviços sociais pagava 125 euros já com despesas. Depois encontrou um quarto por 200 euros sem despesas e sem factura, mas mesmo assim diz-se grato porque, a este preço, “é um achado”.

O seu objectivo é sair de Lisboa e conseguir colocação no Porto — “O custo de vida em Lisboa é muito alto.” Já “meteu os papéis” e com sorte, diz, em sete ou oito anos terá resposta. “As colocações, às vezes, demoram anos. Por exemplo, mudar para Viana do Castelo demora mais. Tenho colegas que esperaram 20 anos. Depende do sítio.”

“Chegou-se à conclusão de que o desinvestimento no alojamento dos polícias foi um erro. Porquê? Porque 100% dos polícias que saem do curso vêem trabalhar para Lisboa e ficam cá muitos anos”, diz o presidente do Sindicato Nacional da Polícia (Sinapol), Armando Ferreira. Ficam, ou desistem. “Há cada vez mais colegas a colocar licenças sem vencimento e vão para o estrangeiro e não voltam. Tenho colegas que trocaram a farda por um camião. Ganham mais, muito mais”, diz José.

Estava cansada de trabalhar só para as despesas
Natacha Abreu
Médica

Saiu de Lisboa porque estava cansada de trabalhar só para as despesas

“Tenho saudades de muita coisa, mas já não seria capaz de viver em Lisboa”, confessa Natacha Abreu, de 42 anos.

Natural do Funchal, tirou o curso de Medicina em Coimbra, onde fez também o ano comum. A especialidade, fê-la em Lisboa, que trocou por Sever do Vouga no início de 2021, onde conseguiu comprar uma casa e ganhar outra qualidade de vida.

Os primeiros tempos vividos em Lisboa foram num T1 alugado com o namorado — e depois marido — que estava a estagiar para advogado. Pagavam 650 euros mensais de renda, que depois passaram a 800 quando se mudaram para um T2 +1 com a chegada do primeiro filho. O segundo nasceu em 2012. “O meu marido trabalhava em casa [onde recebia alguns clientes como advogado] e, na altura, eu era interna da especialidade a ganhar cerca de 1200 euros. A renda do apartamento eram 850. Com a crise, ele começou a perder alguns clientes, outros não conseguiam pagar, precisávamos de uma empregada por causa dos meninos, mas era difícil mantê-las, algumas ganhavam mais do que eu à hora como interna. Vimos creches: o mais barato que encontrei eram 500 euros por cada criança.”

Nasceu o terceiro filho. Arranjaram um T2 no Bairro Alto por 1150 euros. “Era praticamente o meu ordenado, mas foi o mais barato que encontrámos”, diz. Os três filhos dormiam em beliches. Um dos quartos era o escritório do marido, onde atendia clientes. Ganhava 2000 euros brutos, mais coisa, menos coisa. Mas com o boom do turismo tiveram de sair. “Levar os miúdos à escola era um inferno e era insustentável estar a fazer noites e depois não conseguir descansar com o barulho na rua.”

Foram para um T3 alugado no Lumiar, por 1600 euros. Mais uma vez, “foi o mais barato” que conseguiram arranjar, com a vantagem de conseguir levar os filhos a pé para a escola.

Em 2019, Natacha Abreu terminou a especialidade e passou a receber um ordenado líquido de 1800 euros, quase tanto como a renda de casa. “Estava cansada de trabalhar só para as despesas. Não sabíamos se a senhoria ia subir a renda ou não e para tentar ter mais algum dinheiro tinha também de fazer serviço no privado. Mas, assim, não dava tempo para estar com os meus filhos.”

Em 2021, aproveitando as aulas online que aconteceram durante um período da pandemia e o quererem estar com a mãe do marido, que estava doente, ela e a família foram para Sever do Vouga. “Começámos a pensar que até nos dávamos bem aqui. Arrumámos a trouxa e viemos embora”, diz. Para trás deixou o lugar que ocupava num hospital do SNS na zona da Grande Lisboa. “Acabámos por arranjar uma casa mais perto do centro da vila. Pagamos 650 euros ao banco. É uma casa gigante. Temos um quarto para cada um, mais um para visitas, uma sala de estar, uma sala de jantar, um sótão e uma cave que está a ser arranjada para ser o escritório do meu marido. Temos um quintal com árvores de fruto, batatas...”

Rescindiu com o SNS e tornou-se prestadora de serviços. Em vez de estar cada vez mais pressionada pelas horas extras que tinha de fazer, consegue gerir o horário e trabalhar entre 30 e 35 horas por semana. Ganha à volta de 3700 euros líquidos. Por ter uma especialidade hospitalar, faz muitos quilómetros para trabalhar nas três unidades onde presta serviço. Mas nem esse esforço e os cerca de 900 euros que gasta em gasóleo e portagens a fazem recuar. “Acho que o balanço compensa.”

É a primeira vez na vida que partilho casa
Sandra Conceição
Professora

Partilhar casa e sair antes do Verão começar

Duas educadoras de infância deram um salto do tamanho do país: saíram de Chaves para leccionar em Albufeira. Onde encontrar casa para alugar, numa terra com milhares de apartamentos vazios? A pergunta poderá parecer descabida, mas faz sentido. “Os apartamentos existem, mas estão à espera dos turistas”, diz Sandra Conceição, adiantando que acabou por encontrar alojamento a três quilómetros da praia da Falésia.

A escola onde dá aulas situa-se na aldeia de Paderne, no interior do concelho. “É a primeira vez na vida que partilho casa”, diz, abrindo a janela da sala com vista para a piscina. “As aparências iludem...” O aluguer da casa acaba uma semana antes de as aulas terminarem. “Não sei para onde ir morar...”, diz, com preocupação. Alugar quarto num hotel? “O ordenado de um professor é inferior a 1200 euros, mal dá para as despesas...”

Mariana Silva, a colega de coabitação e de escola, já passou pela experiência de se ver na contingência de ficar sem tecto. Aconteceu há dois anos, quando esteve a dar aulas em Portimão. “Vivia num apartamento de umas pessoas amigas, mas chegou o fim de Junho, tive de agarrar na mala e partir...” Conseguiu alugar um T1 em Alvor, por 1000 euros, no mês de Julho. “Valeu-me a minha irmã, que veio passar férias e pagou metade da renda.”

A situação é recorrente: “Os senhorios não fazem contratos anuais”, lamenta Sandra. Quando o Verão se aproxima, chegam os turistas “disponíveis para pagar por uma semana de férias mais do que um salário de um docente”.

Da panela ao lume, na cozinha, solta-se um cheirinho a legumes frescos. “Estou a fazer sopa”, esclarece Mariana Silva. Não há vizinhos nas proximidades. As persianas das janelas, nas casas em redor, estão todas corridas, portas trancadas. “No Carnaval, tal como se verificou no Natal/Passagem de Ano, isto ganha alguma vida, o resto dos meses de Inverno é o deserto.”

O preço da renda, 500 euros por mês, “foi um achado”. Porém, há uma dúvida que não lhe sai da cabeça: “Para onde vão morar na última semana de Julho?” A colega partilha as mesmas preocupações e anseios: “Estabilidade profissional, e alojamento a preço acessível”.

Se tiverem a sorte de ficarem colocadas na mesma escola para o ano, e quiserem permanecer na mesma habitação, já foram avisadas: “A casa só estará disponível a partir do dia 10 de Setembro.”.

O filho de Sandra, que veio com a mãe, sonha vir a ser artista. Agarra na guitarra e desata a dedilhar. Das músicas preferidas, destaca: Encostas-te a mim, de Jorge Palma. “Socializa com muita facilidade”, diz a mãe. De resto, acrescenta, foi essa sua característica que lhe tem permitido “adaptar-se à vida que a mãe leva, “a saltitar de um lado para o outro”. No ano passado, exemplifica, só foi colocada em Fevereiro e esteve em três escolas diferentes: Lourinhã, Póvoa de Varzim e Vila Real. “Gostava de aproximar-me mais da minha área de residência [Chaves, onde está a pagar uma casa ao banco], mas sei que, neste momento, é impossível.”

Na terra podíamos ter uma horta, em cinco minutos chega-se a todo o lado, não ia pagar uma creche privada e a casa seria metade do que custa aqui.
Susana Nunes
Enfermeira

Enfrenta a subida do preço da casa com um pé-de-meia

É o trabalho de “formiga” dos últimos anos que está a permitir à enfermeira Susana Nunes e ao marido, que é polícia de segurança pública, enfrentar a subida galopante dos juros sem um enorme sobressalto. Mas sair de Lisboa para regressarem à terra natal de ambos — a Guarda — é um desejo. “Viver em Lisboa é mais difícil ao nível económico e faz-nos falta a família.”

Susana e o marido, na altura namorado, vieram para Lisboa depois de terem tirado os cursos. “Sempre quis ter acesso a muita informação e a Guarda é um meio mais pequeno. Na altura, muitos enfermeiros estavam a ir para o estrangeiro e optei por vir para Lisboa. Não me arrependo, mas agora, se pudesse, já lá estava. Pela qualidade de vida, para não estar longe dos pais e porque os custos também pesam”, conta. “Na terra podíamos ter uma horta, em cinco minutos chega-se a todo o lado, não ia pagar uma creche privada e a casa seria metade do que custa aqui.”

Em 2005, quando começou a trabalhar, Susana optou por “fazer duplo”. “Trabalhei em dois hospitais em simultâneo, num 35 horas semanais e noutro 40. O foco era juntar o máximo de dinheiro para não ter a corda ao pescoço. Na altura em que estamos, se não tivesse feito o que fiz, estaríamos pior”, conta. Em 2010, o casal avançou para a compra de uma casa, um T3 que, se fosse hoje, não conseguiriam adquirir. Há anos que os preços das casas sobem dramaticamente. No terceiro trimestre do ano passado, o preço mediano das casas vendidas em Portugal fixou-se em 1492 euros por metro quadrado, mais 13,5% face a igual período do ano anterior.

Em 2018, Susana trocou o trabalho num hospital público por um centro de saúde na sequência de um problema de saúde que surgiu com a gravidez e aproveitando um concurso de contratação para os cuidados de saúde primários aberto na altura. “Dava a oportunidade de entrar na função pública, de ficar com 35 horas semanais — no hospital estava com 40 —, ficava com um horário fixo e podia ter ADSE. Era a oportunidade de ter uma carreira, coisa que não tinha acontecido no hospital. Comecei em 2005 e nunca me aumentaram o ordenado...”

O vencimento só registou uma melhoria em 2019, quando passou a enfermeira especialista na área médico-cirúrgica. Sem descontos feitos, ganha um pouco mais de 1400 euros. Ainda está à espera de ser reposicionada na carreira – tem 23 pontos, o que lhe permitirá subir dois escalões e ficar com um vencimento de 1800 euros. “O que já me deixa muito confortável. Lisboa é uma cidade cara.”

Em relação à casa, começaram por pagar ao banco um valor mais elevado nos dois primeiros anos. “Desde sempre que tentámos fazer um pé-de-meia, para juntar mais algum dinheiro porque não sabíamos as despesas que íamos ter. Em Fevereiro do ano passado, o gerente ligou e aconselhou-nos a retirar algum dinheiro do PPR para amortizar na casa porque a mensalidade ia aumentar muito. Apontava para os 600 euros”, recorda. Foi o que fizeram. Ficaram a pagar 420, mas agora o valor já ronda os 500 euros.

Ainda tem margem para fazer frente a mais alguma subida, mas não dá para fugir do plano de despesas estipulado. A filha mais velha está na escola pública e o mais novo, com 11 meses, entrou agora para a creche privada, cuja mensalidade ronda os 350 euros. “Não conseguimos uma vaga no programa Creche Feliz. Pesquisámos vagas de berçário em Lisboa e não há...”

As actividades para a filha, a creche para o filho, a mensalidade ao banco, a água, luz, gás e alimentação representam “cerca de quatro quintos do orçamento familiar”, contabiliza. Fizeram as contas e foi a diferença de custos da alimentação de Janeiro de 2022 para este ano que mais a surpreendeu: “Aumentou mais ou menos 200 euros.” Reduziram-se as idas à Guarda, as refeições fora, as idas ao cinema ou ao teatro.

O marido fez o pedido de transferência em 2009, mas ainda não teve resposta, e Susana teria de pedir mobilidade, mas, por pertencer à função pública, acredita que seria mais fácil. Se optasse por trabalhar no privado, “ganharia quase o dobro”. Mas a realização profissional, assume, não seria a mesma, nem a bagagem formativa que o SNS garante.