Vera Lúcia Arreigoso, in Expresso
Peritos afirmam que o ministério vai extinguir a autoridade de saúde. E alertam: não há uma resposta integrada para a vinda do Papa
Os médicos de saúde pública garantem que “se afigura uma deliberada asfixia institucional da Direção-Geral da Saúde (DGS) e uma incerteza em torno dos seus serviços em Portugal”. A equipa ministerial está a retirar-lhe funções, com a perda sucessiva de profissionais, e os especialistas estão preocupados. Gustavo Tato Borges, presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, alerta que nem sequer está garantida “uma resposta integrada de saúde pública para a Jornada Mundial da Juventude”.
Em pouco tempo, a autoridade nacional de saúde perdeu a liderança das relações internacionais, da saúde sazonal, da saúde mental e, há perto de uma semana, do envelhecimento ativo e saudável, que, neste caso, fica sob a alçada da Secretaria-Geral do Ministério da Saúde. A DGS ficou sem a intervenção operacional e está cada vez mais confinada ao papel técnico-normativo.
Com o esvaziamento de funções e a falta de atratividade, vão saindo também os profissionais. Pelos relatórios de atividade, 20 a 30 elementos por ano abandonam a DGS, com reduzidas substituições. “Todos os técnicos superiores que vão para a DGS perdem vencimento, cerca de €600 mensais, porque ficam sem suplemento de disponibilidade”, explica Jorge Roque da Cunha, presidente do Sindicato Independente dos Médicos. “As carências de recursos são transversais a todas as áreas. No entanto, a DGS tem contado com peritos e consultores em áreas específicas e grupos de trabalho”, responde a DGS.
Das quatro direções de serviços da DGS, apenas a de Informação e Análise tem diretor, que termina funções no próximo ano. “Neste momento, se houver um novo surto no verão ou na Jornada Mundial da Juventude, não temos autoridade de saúde no Norte e no Alentejo para atuar”, diz um especialista, que pede anonimato. “Os delegados regionais de saúde nas duas regiões terminaram há muito as comissões de serviço e não foram reconduzidos ou substituídos formalmente, portanto não têm poder”, explica.
Em situação semelhante está a própria diretora-geral da Saúde, já aposentada, mas no cargo até ser substituída. Graça Freitas vai de férias em breve e não deverá regressar. “É inconcebível que, desde novembro, Graça Freitas não tenha sido substituída. Aliás, nem o concurso foi ainda aberto pelo ministério. Demonstra bem a falta de interesse e mostra claramente que quer o fim da saúde pública”, afirma Gustavo Tato Borges. O gabinete ministerial diz que não: “O processo de abertura do concurso para a substituição da diretora-geral da Saúde, que se encontra em plenitude de funções, está em curso de modo que não haja nenhuma descontinuidade”.
Gustavo Tato Borges reforça as críticas: “O ministro da Saúde [Manuel Pizarro] ainda não era ministro e já criticava a DGS, dizendo que deveria existir, sim, uma Direção-Geral para a Promoção da Saúde. A Agência de Promoção da Saúde que vai criar estará na secretaria de Estado e não na DGS, como deveria ser.” Diz até que o Governo está a ir contra a estratégia internacional de reforço das várias autoridades nacionais de saúde pedida após a pandemia e do serviço europeu de saúde pública que deverá ser criado. “O ministério está a ir em sentido contrário. A saúde pública vai ser espartilhada, sem qualquer capacidade de intervir.”
Os problemas agravam-se também a nível regional e local. “A saúde pública está integrada nas administrações regionais de saúde (ARS) e nos agrupamentos de centros de saúde e não sabemos o que vai acontecer, porque as próprias ARS vão ser extintas”, recorda Tato Borges. “A DGS precisa de ser reforçada de profissionais, grande parte tem 60 anos, e financeiramente, para que as pessoas tenham mais qualidade de vida.” As carências são muitas: “Vamos para os locais com papéis, porque não nos dão tablets, e temos de esperar por uma brecha para conseguirmos uma viatura. Durante a pandemia, a DGS teve de arranjar verbas, o orçamento não chegava para pagar o sistema trace-covid aos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, entidade igualmente pública, não faz sentido.” O sindicalista Roque da Cunha revela que “já foram feitas várias reuniões com a secretária de Estado da Promoção da Saúde, mas é preciso falar ao ministro”. Os especialistas realizaram um fórum médico esta semana e a própria Ordem dos Médicos vai intervir.
Ao Expresso, o Governo garante que não há razões para alarme. “O Ministério da Saúde acolhe todos os contributos para este importante debate, não se justificando nenhum alarmismo em relação ao futuro de uma instituição imprescindível e necessária ao país. Não existe qualquer esvaziamento da DGS. Pelo contrário, está em curso um amplo trabalho para a reforçar. Ainda esta semana decorreram diversas reuniões com esse mesmo objetivo, sendo disso exemplo as reuniões realizadas no contexto da internalização do processo de vacinação.”
O ministério adianta ainda que, “ao mesmo tempo, está em atividade a Comissão para a Reforma da Saúde Pública, com a missão de proceder à elaboração de uma proposta de lei da saúde pública”. A estratégia irá no sentido de cumprir “os compromissos internacionais na área da saúde pública assumidos, nomeadamente, junto da Organização das Nações Unidas, da Organização Mundial da Saúde, do Conselho da Europa e da União Europeia nas áreas da proteção e promoção da saúde, bem como da prevenção da doença”.