25.5.23

Quando os países decidem ‘desligar’ a internet, quem perde são os direitos humanos

Salomé Fernandes, in Expresso



Índia, Irão e Myanmar têm pelo menos um elemento em comum: em todos estes países as autoridades já cortaram o acesso à Internet ou a plataformas online específicas. A lista de casos alargou-se a 35 estados em 2022, em situações que vão desde exames escolares a protestos sociais. O analista Steven Feldstein pensa que em muitos casos as interrupções da Internet são “acompanhadas da repressão ilegal de protestos ou do uso de força para subjugar os cidadãos”


Imagine que a Internet deixava de funcionar durante um dia, sem aviso prévio. Não estaria a ler este artigo nem conseguiria contactar amigos ou familiares através de redes sociais, as aulas online ficavam sem efeito, as compras e pagamentos de bens e serviços eram limitados. Nalgumas partes do mundo, os serviços de saúde também seriam afetados. As Nações Unidas indicam que quebras na Internet podem ter impacto na mobilização de cuidados de emergência, entrega de medicamentos e troca de informação entre médicos.

O corte de acesso da população à Internet pode dever-se a desastres naturais ou falhas na rede. Apesar das consequências — e de ser prática desencorajada pela ONU —, também pode ser escolha política. Há governos que interrompem os serviços de Internet nos seus países. As paralisações podem ser completas ou passar por disrupções de serviços, com o bloqueio de plataformas específicas ou abrandamento das ligações.

Só este mês houve dois casos. A 17 de maio, a NetBlocks, organização que vigia a liberdade da internet, denunciou a restrição de acesso a uma série de redes sociais na Guiné-Conacri, uma medida tomada quando as autoridades convocaram o exército para apoiar a polícia contra protestos. Os serviços de internet móvel foram suspensos no Paquistão no seguimento da detenção do ex-primeiro-ministro Imran Khan, situação que se manteve no dia da sua libertação.

Não se trata de incidentes isolados a nível mundial. Em março, as autoridades indianas bloquearam o acesso de 27 milhões de pessoas à Internet, na região de Punjab. Em abril, foi relatada uma interrupção quase total de Internet no Sudão, num dia em que o combate entre as Forças Armadas do país africano e grupos paramilitares levou à retirada de cidadãos de vários países estrangeiros.


Em fevereiro, a NetBlocks divulgou que o acesso a redes sociais foi vedado durante uma noite, no Suriname, depois de protestos contra a austeridade se terem tornado violentos. A organização ressalvou que o país não tinha “histórico significativo de censura de Internet” e que a medida foi considerada uma exceção.

Qual a influência do corte de acesso à internet junto de protestos sociais? Steven Feldstein, membro da organização Carnegie Endowment for International Peace, aponta efeitos mistos. “Os governos impedem o funcionamento da Internet por reflexo para parar a escalada dos protestos. Acontece constantemente, de Cuba ao Irão, ao Myanmar, mas nem sempre funciona. Às vezes, impedir o funcionamento da Internet chama mais a atenção para os protestos e leva mais pessoas a saírem à rua. Os cortes têm sido associados a um aumento de violência, tanto do lado dos manifestantes como dos governos”, respondeu por escrito ao Expresso.

A Internet permite partilhar vídeos e informação, ter conversas encriptadas e divulgar acontecimentos junto da comunidade internacional. Os protestos no Irão são exemplo de como pode ser usada em movimentos sociais. As redes sociais difundiram apelos de participação em greves. Foi no espaço virtual que uma canção cuja letra é feita de mensagens escritas no Twitter por manifestantes teve mais de 40 milhões de visualizações, que se espalharam vídeos de mulheres a queimar os seus véus, e se repetiram as palavras “mulher, vida, liberdade”.

Como escreveu o diário britânico “The Guardian”, em setembro, o Irão tentou travar o crescimento dos protestos com o corte de acesso à internet em partes de Teerão e do Curdistão. O regime teocrático bloqueou plataformas como o Instagram e o WhatsApp.

INTERRUPÇÕES EM 35 PAÍSES NO ANO PASSADO

Um relatório divulgado este ano pela organização não governamental Access Now revela que ao longo de 2022 ocorreram 187 interrupções de internet em 35 países, das quais 84 na Índia. Foi o único país com mais paralisações do que na Ucrânia, onde os 22 episódios resultaram de ações das forças russas durante a guerra.

Seguiram-se o Irão (com 18), o Myanmar (sete) e o Bangladesh (seis). Os incidentes foram desencadeados por protestos, conflitos ativos, períodos de instabilidade política, exames escolares e eleições.

A Access Now refere indícios de violência e violações sérias de direitos humanos “encobertas” por interrupções em 14 países. E explica as consequências: “As organizações humanitárias ou de direitos humanos estimam que, nas áreas que sofrem com as interrupções, isso atrasa ou impede a contagem de vítimas, afeta a capacidade das comunidades em identificarem vítimas e interfere com a capacidade dos meios de comunicação em relatar com precisão a escala dos ataques. Tudo isso impede apoio humanitário”.

“Há a forte ligação entre impedimentos de funcionamento da Internet e violações dos direitos humanos. Para começar, diria que impedir o funcionamento da Internet é uma violação de direitos humanos. As investigações mostram que as interrupções são frequentemente acompanhadas de repressão ilegal de protestos ou uso de força para subjugar os cidadãos”, analisa Feldstein. Aponta como exceção os casos de interrupção em caso de exames escolares para prevenir que os alunos copiem.

Segundo um relatório de 2022 do gabinete do alto-comissário para os direitos humanos das Nações Unidas (ONU), os cortes de internet “muito raramente cumprem os requisitos fundamentais de necessidade e proporcionalidade”. A análise da ONU antevia um cenário pouco otimista. “À medida que a digitalização avança, o impacto das interrupções só vão aumentar: quanto mais tempo um canal é usado e popularizado, mais significativo é o impacto de uma disrupção.”

Há formas de contrariar as interrupções. Quando Cuba desativou a Internet, em 2021, figuras políticas dos Estados Unidos pediram ao Presidente Joe Biden para enviar balões transmissores de internet ou aumentar o sinal a partir da embaixada de Havana ou de Guantánamo, em apoio aos ativistas locais. Há outros mecanismos a que as populações podem recorrer para se manterem ligadas. Feldstein escreveu que os cidadãos podem usar redes privadas virtuais (VPN), servidores privados ou redes de malha.

MILHARES DE MILHÕES EM PERDAS ECONÓMICAS

Um relatório do Instituto Brookings estimava, em 2016, que o custo de paralisações da internet custara 2400 milhões de dólares (cerca de 2200 milhões de euros) a nível mundial, no ano anterior. As perdas chegavam a 968 milhões na Índia, 465 milhões na Arábia Saudita e 320 milhões em Marrocos. E eram estimativas conservadoras.

Os danos sociais e económicos resultantes da opção de interromper os serviços de internet “são altos”, analisa Simon Angus, diretor e cofundador do Observatório Monash IP , em resposta escrita ao Expresso. O professor associado da Monash Business School, em Melbourne, explica que por isso é frequente governos “tentarem atingir os seus objetivos políticos sem causar danos indevidos à economia”. Isso pode passar por manter o acesso a banda larga fixa enquanto se corta o acesso móvel, ou fechar o acesso a plataformas de comunicação específicas.

“Em países mobile-first [onde o tráfego de internet se dá maioritariamente por telemóvel], são exatamente estas as plataformas usadas para transações comerciais, sobretudo por pequenas empresas ou proprietários de negócios de rua. Portanto, o dano acontece nas extremidades mais pobres do espectro económico, enquanto os negócios maiores e mais estabelecidos podem continuar a funcionar através de banda larga fixa ou por estarem ligados através de um fornecedor de serviços de internet (ISP) específico a que (por razões políticas) pode não ser solicitado que desative o acesso”, explica Angus.

É na Índia que ocorrem mais paralisações da internet. As expectativas de crescimento podem ser afetadas por esta atuação? Angus remete para a necessidade de análise económica detalhada, mas indica que “não ficaria surpreendido” se paralisações da internet por ordem estatal abrandassem o crescimento económico. Não só porque “perder acesso à internet impede diretamente negócios modernos”, mas também pelo efeito indireto da perceção de risco em fazer negócios num determinado país.

“O investimento forte segue sempre condições de estabilidade. Se as interrupções de internet se tornam comuns, a capacidade de um país ganhar grandes contratos ou de as suas empresas demonstrarem vantagens competitivas será gravemente prejudicada”, conclui.