4.8.23

Portugal oferece a médicos brasileiros um salário bruto de 2800 euros e “casa de função”

in Público

Dirigentes sindicais reclamam oferta de casas de função também aos médicos de família portugueses que trabalham em locais carenciados.

O recrutamento de médicos estrangeiros para o Serviço Nacional de Saúde (SNS) já está em curso. A Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) quer cativar médicos brasileiros para trabalharem em centros de saúde nas regiões com maior carência de médicos de família oferecendo-lhes um salário ilíquido de 2863 euros por mês, mais seis euros diários de subsídio de refeição, acrescidos de “casa de função” atribuída pela autarquia do local para onde forem contratados.

No “aviso” que está a ser divulgado no Brasil e a que o PÚBLICO teve acesso, a ACSS especifica que “o Ministério da Saúde está interessado em recrutar médicos para os cuidados de saúde primários”, oferecendo-lhes contratos com a duração de três anos em centros de saúde das regiões de Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve. A carga horária será de 40 horas semanais (“com possibilidade de concentrar a semana de trabalho em quatro dias”) e terão direito a 22 dias úteis de férias.

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Sindicatos contestam

Por estes valores, dificilmente haverá interessados em vir para cá, antevê um médico brasileiro, lembrando que, com os descontos, a remuneração mensal oferecida baixa substancialmente – para pouco mais de 1800 euros líquidos - e que a média salarial praticada no Brasil, apesar de variar muito de região para região, é mais elevada.

Por que é que o Governo não dá casa também aos profissionais formados em Portugal? - perguntam os dirigentes das duas estruturas sindicais que representam os médicos e que têm convocado várias greves como forma de protesto pela não resposta às suas reivindicações de melhores condições de trabalho e aumentos salariais. “Vamos reivindicar casas de função para os jovens especialistas na próxima reunião com os representantes do Ministério da Saúde”, avisa Jorge Roque da Cunha, secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), lembrando que, em Lisboa, isso representa "mais mil euros por mês".

“Infelizmente o Governo, em vez de fazer a sua obrigação, que é a de cativar médicos portugueses para o SNS, pretende contratar no estrangeiro profissionais que, naturalmente, irão ser médicos assistentes dos governantes e dos seus familiares e assessores”, ironiza.

Frisando que a remuneração mensal agora oferecida aos brasileiros é semelhante à auferida pelos médicos especialistas no primeiro escalão em Portugal, quando os primeiros virão para cá como generalistas, Roque da Cunha lembra que há ainda outra diferença - "os especialistas portugueses não têm direito a casa de função".

Na mesma linha, a presidente da Federação Nacional dos Médicos (Fnam), Joana Bordalo e Sá, quer saber "por que motivo não dão também casa aos médicos cá”, defendendo que estas medidas são "discricionárias" e constituem "uma falta de respeito pelos médicos formados em Portugal".

“É com estranheza que vemos este tipo de anúncio. Não há falta de médicos em Portugal, há é falta de médicos no SNS. Temos cerca de 60 mil médicos inscritos na Ordem, mas só 31 mil estão no SNS. Isto só revela o desespero do Ministério da Saúde que não consegue contratar para o SNS. Mas há soluções: o Governo tem que investir nas condições de trabalho e na melhoria dos salários dos médicos que se formam em Portugal", reclama.

Esta tentativa de recrutamento de médicos no Brasil avançou ainda antes de ter sido publicado o decreto-lei - aprovado no início de Julho em Conselho de Ministros - que prevê um regime excepcional para o reconhecimento automático dos graus académicos que visa agilizar o recrutamento de médicos estrangeiros para reforço do SNS.

Previsto para vigorar até ao final de 2026, este regime vai simplificar e acelerar o demorado e complicado processo de reconhecimento das habilitações académicas pelo qual os médicos de países não comunitários são obrigados a passar antes de se poderem inscrever na Ordem dos Médicos e começarem a exercer a profissão. Para revalidarem o diploma numa das oito faculdades de medicina portuguesas, estes têm que submeter-se a várias provas.


Apesar de sublinhar que ainda "não há nenhuma decisão sobre os contingentes de médicos estrangeiros" que o Governo tem intenção de contratar para centros de saúde mais carenciados, o ministro da Saúde, Manuel Pizarro, esclareceu na comissão parlamentar de saúde que o número rondará entre "duas a três centenas" e que os profissionais serão recrutados em "vários países da América Latina".

O ministro tem repetido que o objectivo do decreto-lei que prevê este regime excepcional é trazer para os cuidados de saúde primários, de regiões como o Alentejo, o Algarve e Lisboa e Vale do Tejo, profissionais que possam ajudar a suprir temporariamente a falta de médicos de família, assegurando "consultas abertas nos centros de saúde".

Quanto às nacionalidades, Manuel Pizarro explicou que o Estado português "não pode ir" buscar médicos a países onde há falta destes profissionais, prevendo que apenas deverá ser possível recrutar em "Cuba, Colômbia e mais alguns países da América Latina". O ministro - que foi buscar médicos ao Uruguai e a Cuba em 2008 e 2009 quando era secretário de Estado da Saúde - tem insistido que o que está em causa não é nada de novo, recordando que sucessivos Governos recrutaram clínicos não só nestes dois países mas também na Colômbia e na Costa Rica.

O problema da falta de médicos de família tem-se agravado nos últimos anos porque está a ocorrer um elevado número de aposentações de especialistas em medicina geral e familiar e porque uma parte dos novos especialistas prefere não ocupar as vagas abertas nas regiões mais carenciadas. Além disso, com a chegada de imigrantes a Portugal, tem crescido o número de inscritos no SNS. A conjugação de todos estes factores faz com que o total de cidadãos sem médico de família continue a aumentar e que se tenha tornado de novo comum a acumulação de filas de pessoas, de madrugada, à porta de vários centros de saúde.


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