30.8.23

Da cidade para o campo. Quando vida, arte e luta pelo planeta se fundem

Ana Cristina Pereira (texto), Paulo Pimenta (fotografia) e Tiago Bernardo Lopes (fotografia e Vídeo ), in Público


Sara Rodrigues e Rodrigo B. Camacho tanto são capazes de transformar um chão de cimento num jardim agroflorestal como de fazer uma interpretação sonora das relações entre microorganismos.


Chamaram-lhe Landra. Landra era o nome que no Noroeste Ibérico se dava à bolota. Landra é um projecto artístico. Landra é o seu pedaço de terra, em Riodouro, a freguesia mais montanhosa de Cabeceiras de Basto, perto da fronteira do Minho com Trás-os-Montes.

Naquele lugar, os artistas interdisciplinares Sara Rodrigues (n. 1990) e Rodrigo B. Camacho (n. 1990) exploram as relações entre os seres humanos e os ecossistemas. Investigam como as várias formas de vida são moldadas pelo poder. Procuram alternativas.


Quando chegaram, em Julho de 2020, a vegetação cobria grande parte das paredes da casa feita de pedra e madeira. Bosta de vaca e de cavalo sobrepunha-se no soalho. As frechas no telhado, nas portas e nas janelas deixavam entrar chuva, vento, frio.


Era como se tivessem entrado numa máquina do tempo e recuado séculos. Não havia água canalizada, luz eléctrica, móveis, quaisquer infra-estruturas próprias de uma cozinha ou de uma casa de banho.

Montaram uma tenda de lona no exterior, debaixo de um castanheiro (o que depressa se revelou desacertado). Sempre que queriam aliviar-se, faziam um buraco perto de outra árvore. Tapavam-no logo a seguir.

“A Sara levantava-se de madrugada para cortar silvas”, ri-se Rodrigo. “Estava viciadíssima.” Queria descobrir as formas das paredes. E o estado do soalho. Tratou de raspar a bosta, de a amontoar.


Uma horta em Londres

Conheceram-se na biblioteca da Goldsmiths, na Universidade de Londres, especializada nas áreas culturais e sociais. Ela já ali estudara Música e estava a estudar Belas-Artes. Ele tinha estudado Música no Instituto Politécnico do Porto e estava a estudar Composição.


Ao fazer um mestrado com uma forte componente de ecologia crítica, Sara mergulhou no debate ecológico-ambiental. “As alterações climáticas, a degradação das condições de vida e dos ecossistemas, tudo isso era muito forte.”

Aquelas preocupações infiltraram-se no seu trabalho artístico, que é audiovisual, performativo e de instalação. “Também trabalhava com som, mas à base de informação e crítica. Não ia no sentido de construir algo positivo no mundo. Ia no de mostrar o que estava mal.”

Rodrigo acompanhava as pesquisas que Sara fazia online. Também lia, reflectia, discutia. E também ia assumindo abordagens cada vez mais ecológicas nos projectos que ia desenvolvendo, cruzando artes visuais e performativas com música experimental.


Havia uma horta comunitária na Goldsmiths. Cada um tinha um metro quadrado para fazer as suas experiências. Aquilo permitiu-lhe passar da teoria à prática, da abstracção à realidade concreta.



“Foi a primeira vez que semeei qualquer coisa. Quando vi os primeiros tomates, fiquei superentusiasmada”, conta Sara. Rodrigo, esse, já se pusera a fazer experiências em quintais de casas onde vivera.


Partilhavam um estúdio num 12.º andar. Davam aulas particulares de Piano. Co-fundaram, em 2014, o colectivo New Maker Ensemble, na fronteira entre a performance, a música contemporânea e a investigação antropológica.

Perceberam-se como parte de um problema global. Se antes os agricultores usavam enxadas, arados, adubos orgânicos e o seu labor já tinha impacto no planeta, que dizer dos dias de hoje, em que muitos recorrem a maquinaria pesada e a produtos agro-químicos? O que estavam eles a fazer, a trabalhar para pagar contas num dos maiores centros financeiros do mundo, dependentes de uma infindável cadeia de intermediários para se alimentarem?


Começaram a imaginar formas mais positivas de estar no mundo, de o pensar e de agir sobre ele. Aproximando-se dos 30 anos, tomaram a decisão. Iam mudar de vida. E para isso iam mudar de sítio. “Queríamos ir morar para o campo, ter acesso directo a terra, cultivar os nossos alimentos”, torna ela. E praticar uma arte implicada num dos maiores desafios do seu tempo.


Fizeram um curso de Permacultura para “aprender a trabalhar com e não contra a natureza”. E outro sobre plantas espontâneas comestíveis. E procuraram um sítio à venda, no interior de Portugal, que sabiam estar despovoado e envelhecido.


Tinham um terreno em Trás-os-Montes, que Sara herdara do pai, um médico que se tornara antiquário, mas faltava-lhe água e sobrava-lhe vizinhança utilizadora de produtos agro-químicos. Com a ajuda da mãe, antiquária, compraram aquele carvalhal no Alto Minho.

As suas vidas fundiram-se com a sua arte. “O que queremos é que tudo na nossa vida seja arte”, resume Sara. Esta vida-arte tem uma componente de intervenção pública e é uma forma de luta. Sem estardalhaço. “A arte é um tipo particular de activismo lento: um mundo hipotético”, como disse a curadora Joana P. R. Neves, a propósito da exposição colectiva Our Ancestors Bloom Overground, de que o duo Landra faz parte, patente até 23 de Setembro na Patrick Heide Contemporary Art, em Londres.


Subverter a linha do tempo

Nunca tinham vivido no mundo rural. Sara crescera no Porto, numa família fascinada com antiguidades. E Rodrigo no Funchal, numa família empenhada na recolha e preservação da música tradicional.


Saindo do primeiro confinamento decretado para prevenir a propagação de covid-19, ali estavam, debaixo de um castanheiro, numa pequena tenda – sem electricidade, sem água corrente, sem gás.


Ao fim de um ano, ouvindo Sara, sobressaía a subversão da linha do tempo. “No princípio, nem tínhamos fogo. Temos estado a melhorar as nossas condições de vida. É mesmo engraçado.”

Quando passaram a usar a casa, não dispensaram logo a tenda. A lona ajudava a manter a temperatura. Depois, trouxeram uma cama e compraram uma salamandra. Já podiam ficar mais tempo seguido. Podiam aquecer-se, cozinhar, lavar-se com paninhos quentes.


Rodrigo recomenda o banho de paninhos quentes. “É um prazer muito grande. Principalmente quando se faz destilação de eucaliptos ou de casca de laranja. Fica-se entre o mais fino e a pobreza mais extrema. Viver as duas coisas num é o que a gente faz aqui ao tomar banho de paninhos à frente do fogo para não ficar com frio, mas com óleos essenciais que ajudam a dormir bem.”

Investidos num estilo de vida sustentável, não desistiram de alguns dos grandes atributos do mundo contemporâneo. Não dispensam telemóveis, computadores, câmaras. A sua arte, aliás, passa por aí.

Tinham um minipainel solar que servia para carregar o telefone. Para carregar os computadores, tinham de subir o caminho de terra e de seguir pela estrada de alcatrão até ao café mais próximo. Compraram dois painéis solares e baterias de 12 volts, de níquel-ferro, não-poluente (sem chumbo). “Duram uma vida inteira”, enfatiza Rodrigo. “O líquido que sai pode ir para as batatas.”

Rodrigo até andou a estudar Electricidade para montar os painéis solares. Vão fazendo tudo o que podem com as próprias mãos. Só não dispensaram um carpinteiro para consertar o telhado, substituir janelas e portas.


Sete hectares

Numa instalação audiovisual que apresentaram no Sismógrafo, no Porto, em Novembro de 2020, explicavam que, pelos cálculos do Banco Mundial, “um hectare seria a área que cada habitante de Portugal teria em 2100, caso o território fosse dividido igualmente pela população”. Quiseram “viver esse hectare com o corpo”.

Na Landra, dispõem de sete hectares de agro-floresta, um sistema de plantio sustentável que faz a recuperação vegetal e do solo. E fazem uso dos seus conhecimentos sobre permacultura e plantas espontâneas comestíveis.

Fizeram sementeiras: abóboras, pepinelas, beringelas, pimentas… Plantaram pezinhos de araçá, nespereira, pereira, limoeiro... Volvidos três anos de estada intermitente, a experiência mostra-lhes que nem precisam de fazer agricultura. “Nem no pico do Inverno escasseiam plantas para nos alimentarmos”, resume Rodrigo. “Conseguimos ter mais espécies comestíveis do que qualquer exploração agrícola intensiva.”

Na Primavera, apanharam laranja, azeda, alface-brava, serralha, cereja-brava, trevo-dos-prados, orégão-selvagem e outras plantas comestíveis. Agora, que é Verão, têm, amora-silvestre, erva-moira, pimenta-de-água, figos… Quando vier o Outono, beldroega, bolota, nozes, castanhas. No Inverno, urtiga, alfavaca, canabrás, dente-de-leão.


Sem frigorífico, estudaram formas de conservar alimentos para o Inverno. Começaram a trazer frascos para a Landra e a fazer fermentações. Entretanto, soltaram uma leitoa grávida na propriedade. E ponderam trazer algumas galinhas para crescer ao ar livre.


Soberania alimentar

Passam muito tempo a estudar e a experimentar. A questão de partida continua a ser importante na sua vida-arte-activismo: “Como é que o que comemos hoje se impõe sobre a paisagem que virá?”


Aprenderam, por exemplo, a fermentar bolota e a fazer farinha, a curar azeitona-galega, a preparar xarope de rosa-canina, um imunoestimulante com propriedades antioxidantes e anti-inflamatórias.


Atreveram-se a fazer café de bolota, cerveja de bolota, infusão de bolota, pão de bolota. “Isso é a nossa aposta”, afiança Sara. Como na zona ninguém liga a tal produto, agora associado à pobreza, destinado à criação de porcos, chegando à época, é só apanhar.


Vão vendo como mesmo no mundo rural as sociedades dependem “de objectos e de processos industriais, que não controlam”. E discutindo como esse tipo de organização produz desequilíbrios nas vidas humanas e desestabiliza os ecossistemas. E mostrando como as bolotas remetem para outra forma de vida.


São frutos de plantas perenes, com vidas longas, as bolotas. Sara e Rodrigo vêem nelas uma “cultura de autonomia, soberania e auto-suficiência” que desejam reactivar. Pode substituir o arroz, a batata, o trigo.


No trabalho artístico intitulado Esquecimento Premeditado, um vídeo e performance que integrou a exposição colectiva Debaixo das Cidades, a Revolução, no Espaço Mira, no Porto, em 2022, mostram a preparação da infusão de bolota.


Extensões da Landra

As condições de vida, na Landra, continuam rudimentares. Sara e Rodrigo continuam a puxar água de uma nascente, com uma mangueira. Já têm alguns móveis, mas o carpinteiro tarda em colocar novas portas e janelas. Ainda lhes falta casa de banho, retrete. E, no entanto, sentem-se leves consigo e inquietos com o mundo.

A sua preocupação com o ambiente nota-se nos mais diversos gestos dos seus quotidianos. Lavam a roupa com cinza, fazem limpeza com vinagre diluído em água, escovam os dentes com bicarbonato de sódio. Fazem compostagem, usando o método Bokashi (uma vez feita a fermentação anaeróbia dos resíduos orgânicos dentro do compostor, misturam os resíduos fermentados com a terra).

Já teriam mais conforto se não passassem tanto tempo fora, a desenvolver projectos artísticos. Mesmo sem eles, a vida na Landra vai tomando o seu próprio curso. “Temos muitas coisas plantadas que vão crescendos sozinhas”, sublinha Sara. “E é importante haver esta continuação noutros sítios, dar visibilidade a potencialidades. É nisto que acreditamos. É abrir a porta a públicos, a pessoas que podem estar interessadas nas mesmas questões.”


Ao que lhe é dado ver, há hoje “muitas pessoas que sentem um chamamento”. São acometidas por uma “falta de entusiasmo com o que estão a fazer, com o modo de vida contemporâneo”, mas muitas vezes “não sabem bem por onde começar ou sentem falta de segurança ou mesmo medo do desconhecido”. “Queremos dar estes exemplos, mostrar que é possível e entusiasmante. A possibilidade de criar mais vida é bonita, dá alegria.”


Exemplar dessa extensão é o projecto Cultura Emergente, na Bienal de Arte Contemporânea da Maia, em 2021/2022. Pegaram num jardim compactado e negligenciado, junto ao Fórum da Maia. Analisaram aquele solo e o de um jardim de uma casa abandonada ali perto. Semeando e transplantando, regeneraram o espaço. Para que se mantenha vivo, colocaram painéis que nomeiam as espécies presentes e criaram um grupo de cuidadores informais.

Em Agosto de 2022, iniciaram outro projecto com uma filosofia idêntica: A Fundo na Paisagem — Como transformar um pátio de cimento num jardim agro-florestal. No pátio do Centro Católico Operário do Porto, levantaram laje, picaram cimento e alcatrão. Foram buscar material orgânico aos jardins do Palácio de Cristal. Semearam, transplantaram. Num espaço de dois metros por 28, criaram um pedaço de agro-floresta. Entretanto, peneiraram toneladas de cascalho. E transformaram-no em bancos corridos.

Ouvir a natureza

Já este ano, servindo-se de um banco de imagens microscópicas oriundas de análises que fizeram a diversos solos, procuraram “traduzir em som as relações invisíveis e inaudíveis entre os microorganismos da terra e todas as camadas tróficas que deles dependem”. Não é que ouçam o que mais ninguém ouve. O processo passa por interpretar o mundo. Atribuem “timbres, registos, qualidades frásicas e outras características estéticas” a microorganismos.


“Temos interesse em descrever o processo de sucessão ecológica, segundo o qual, cada interveniente – de simples bactérias, aos seus predadores, a fungos e até artrópodes – acabe por produzir resultados imensamente complexos ao nível do todo”, escreveram a propósito d' A Grande Sucessão, projecto que iniciaram numa residência, no Picote, em Miranda do Douro, e aprofundaram noutra, no Celeiro AIR, na serra da Arrábida, em Setúbal.


Usaram essa abordagem numa exposição que apresentaram este ano na Capela da Boa Viagem, no Funchal, intitulada A Desconsagração do Império. Desta vez, criaram uma pilha de compostagem de produtos associados à história económica da Madeira. Na exposição, antigas imagens fotográficas de trabalho alternavam com novas imagens microscópicas feitas ao solo florestal e de cultivo de cana-de-açúcar, vinha e trigo. A peça de som cruzava tradicionais cantigas de trabalho com “uma tradução sónica da evolução bioquímica do processo de compostagem.”


Continuam a ler, a experimentar, a partilhar. “Ainda estamos a ver como vamos moldar a Landra; se vamos abrir para mais pessoas viverem cá, para um modo mais comunitário”, diz ela. “E nós não somos solitários”, achega ele. “Amigos que estão a tentar fazer essa transição [do mundo urbano para o rural] podem ser nossos vizinhos. Faz sentido criar ocupação consciente de um território, por exemplo, à volta de uma linha de água.”