Daniela Carmo, in Público on-line
“Não foram tomadas medidas nos últimos anos, e não me refiro aos anos em que esta ministra esteve no cargo, para que isto pudesse não atingir estas dificuldades, que já eram previsíveis”, diz antiga ministra da Saúde Ana Jorge. Francisco George ironiza e desafia ministro das Finanças a acumular com a pasta da Saúde.
Uma saída “inesperada nesta fase”, mas “compreensível depois de uma grande pressão”. É assim que Ana Jorge – médica, antiga ministra da Saúde de 2008 a 2011 (durante os mandatos de José Sócrates) e actual presidente da Cruz Vermelha Portuguesa – descreve a demissão da ministra da saúde, Marta Temido. “Espero que esta saída não ponha em causa o princípio de defesa de um Serviço Nacional de Saúde (SNS) de qualidade”, defende em declarações ao PÚBLICO esta terça-feira. Já o antigo director-geral da Saúde, Francisco George, classifica, também em declarações ao PÚBLICO, a demissão como “injusta”. “Há um clima que foi criado que facilitou esta saída, mas é uma saída que não beneficia o sistema nem os portugueses”, refere.
A antiga ministra Ana Jorge admite as “dificuldades existentes nos últimos tempos” com que Marta Temido esteve a braços, mas recorda que esses desafios “têm um histórico grande”. “Não foram tomadas medidas nos últimos anos, e não me refiro aos anos em que esta ministra esteve no cargo, para que isto pudesse não atingir estas dificuldades, que já eram previsíveis”, sublinha. Nos últimos meses o país viu serviços de urgência fechados, profissionais a pedirem escusa de responsabilidades ou médicos internos a recusarem-se a cumprir horas extraordinárias excessivas.
“Não sei quais foram as razões que levaram a senhora ministra a dizer chega e que já não tinha mais condições para continuar no cargo, podem ser de vária natureza. Mas os últimos tempos têm sido de uma grande pressão contra o próprio ministério”, explica Ana Jorge. Na óptica da antiga governante, as notícias relativas a fechos consecutivos de serviços de urgências de vários hospitais por todo o país “foram exploradas de uma forma muito negativa”. “Não beneficiaram o próprio sistema de saúde e isso cria um desgaste muito grande.”
E como agravante aponta ainda a falta de diálogo entre o Governo e os representantes dos profissionais de saúde para a tomada de medidas. “Obviamente que tem de haver maior capacidade de diálogo e da forma como as coisas ultimamente estavam a decorrer isto tornava-se difícil”, explica.
Entre as mudanças que defende como necessárias, Ana Jorge fala em “reformas na área da saúde”, que diz não serem “um problema exclusivo do Ministério da Saúde, mas sim do Governo e de todo o país”. “O Governo e os portugueses têm de perceber que não basta querer um Serviço Nacional de Saúde, é preciso perceber quais as condições necessárias para que esse serviço possa dar resposta àquilo a que os portugueses estão habituados e isso tem custos.”
O que a antiga ministra defende é, então, uma “valorização profissional”: “O mais urgente é regular o sistema, definir bem as carreiras, permitir que os profissionais possam ter vencimentos adequados às suas funções”, desenvolve.
“Quando a pessoa se diferencia e avança obviamente que tem de ter alguma remuneração adequada”, refere. Por outro lado, Ana Jorge diz não ter conhecimento do envolvimento do Governo nessa vertente “tão importante”, mas “obviamente que isto tem de ter por trás um grande apoio do Governo e político porque implica grandes alterações do sistema.”
“Podemos dizer ao ministro das Finanças que acumule com a Saúde"
Também Francisco George concorda com a visão de que são precisos aumentos salariais urgentes para os profissionais de saúde e, nesse campo, Marta Temido “não tinha poder para melhorar as condições salariais dos 150 mil trabalhadores que estão no ministério da Saúde”. Para o antigo director-geral da saúde, estes aumentos salariais são “essenciais” e “é o ministro das Finanças que tem de se interessar pela solução dos problemas”.
É, por isso, com ironia, que convida o actual ministro das Finanças, Fernando Medina, a acumular funções e assumir também a pasta da Saúde: “Podemos dizer ao ministro das Finanças que acumule com a Saúde porque grande parte da gestão do SNS tem a ver com esse ministério, sem o conjunto do Governo e sem o ministro das Finanças não é possível melhorar as condições de trabalho dos profissionais de saúde.”
E atira ainda a falta de apoio político do primeiro-ministro, António Costa, para com Marta Temido. “Sem dúvida que houve falta de apoio não só do primeiro-ministro como de outros ministros, porque naturalmente o salário dos médicos, dos enfermeiros, dos especialistas não são competência única da ministra Marta Temido. Estou a falar do ministério das Finanças e da grande responsabilidade que o ministro das Finanças tem na gestão do SNS.”
Além disso, Francisco George sublinha que Marta Temido “não tem qualquer responsabilidade directa” no caso da mulher grávida que morreu no sábado passado na sequência de uma transferência entre hospitais em Lisboa. “É preciso reconhecer que foi criado um clima que levou a esta situação que foi citada pelo primeiro-ministro de haver uma linha vermelha que tem a ver com os acontecimentos relatados sobre a morte de uma grávida que foi atendida no Hospital de Santa Maria e transferida para outro hospital e nessa transferência morreu e sobre a qual a ministra da saúde não tem qualquer responsabilidade”, defende ainda.
Ministra “foi vítima de um ataque organizado"
Já Francisco Ramos, antigo secretário de Estado Adjunto e da Saúde, é da opinião de que Marta Temido “foi vítima de um ataque organizado por parte de alguns sectores no sistema que há três anos reclamavam o aumento do orçamento para a saúde e que agora, naturalmente concretizado esse aumento, reclamam um lugar à mesa desse orçamento”. “Diria que a senhora ministra sai, no essencial, para proteger o sistema de saúde do ataque que estava a ser feito, agendado e programado.”
Além disso, Francisco Ramos refere que “as questões não se ficavam pela escassez de recursos ou pelos problemas no SNS”. “Diria que há muita gente interessada em sentar-se à mesa de um novo Orçamento do Estado, que vem aí em 2023, e quiseram afastar quem ao longo dos últimos quatro anos entendeu que o serviço público e o espírito de missão pública deveria estar acima.”
“Quando vemos grupos de profissionais de saúde a terem reuniões, a programarem reuniões com outras entidades para forçar a que isso seja notícia, isso evidencia que não estamos a falar apenas de episódios da vida do quotidiano, mas de um sistema programado e planeado com determinados objectivos que não me compete identificar”, sublinha.
O antigo secretário de Estado diz também que “a encruzilhada está entre escolher pessoas que optem por consolidar uma política de saúde que privilegie a solidariedade característica do SNS ou uma política de saúde que privilegie outros elementos”. “Preocupa-me a baixa prioridade que a saúde continua a ter e que é revelada por esta decisão de, apesar da demissão de Marta Temido, não ser considerado prioritário encontrar um novo titular da pasta que possa desenvolver uma política de saúde que o Governo anuncia que é a mesma.”
Também Fernando Leal da Costa, ex ministro da saúde durante o segundo mandato de Pedro Passos Coelho, comentou a demissão de Temido à Antena 1. Para o antigo governante, a ministra “não deveria ter continuado no cargo para um segundo mandato” tendo em conta que “as condições de governabilidade que ela iria encontrar no pós covid seriam insustentáveis, como a realidade o demonstrou”.
“A questão não se põe apenas na mudança da pessoa, põe-se no facto de as condições políticas, estruturais e até funcionais do ministério da Saúde e do SNS não permitirem uma governação eficaz, fosse quem fosse que lá estivesse.”