A escalada da intensidade da violência resultante do confinamento “pode ajudar a explicar o aumento de pessoas ajudadas pela rede”, diz investigadora do Observatório Nacional de Violência e Género. Entre as vítimas, o número de mulheres é desproporcionalmente superior ao dos homens: até Junho de 2022, a rede acolheu 770 mulheres e 14 homens.
“As mulheres e as crianças vítimas de violência doméstica continuam a sair tanto de casa como saíam há 15 anos“
De 383 crianças acolhidas em casas de abrigo para vítimas de violência doméstica nos 12 meses de 2021, o número passou para 667 só no período entre Janeiro e Junho de 2022. Assim, o universo de crianças e jovens que estiveram nessas estruturas (de longa duração e de emergência) nos primeiros seis meses deste ano representa praticamente o dobro do registado em todo o ano passado. Os dados correspondem à soma de todas as pessoas que estiveram acolhidas no período de tempo referido.
Estes são números recentes da CIG – Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, sob tutela da ministra adjunta e dos Assuntos Parlamentares e com a responsabilidade de desenvolver no terreno e supervisionar a Rede Nacional de Apoio a Vítimas de Violência Doméstica. Mostram ainda que entre Janeiro e Junho deste ano, 1451 pessoas estavam (podendo ainda estar) a viver nas casas de abrigo ou de emergência, quando em todo o ano passado estiveram 1948. A este ritmo, chegar-se-á a mais de 2900 até Dezembro, voltando a atingir-se o pico de 2020 por decisões relativas a casos de violência anteriores à pandemia: de um total de 1968 pessoas acolhidas em 2019 passou-se para 3098 em 2020 (das quais 1317 eram filhos). Entre as pessoas ajudadas pela rede também há homens mas o número de mulheres é desproporcionalmente superior: até Junho de 2022, a rede tinha acolhido 770 mulheres e 14 homens.
A actual evolução indicia uma de duas coisas (ou ambas), segundo a investigadora Dalila Cerejo, professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e investigadora do Observatório Nacional de Violência e Género (CICS.NOVA). Pode ser um sinal de que a Rede Nacional de Apoio a Vítimas de Violência Doméstica chega a mais pessoas e “isso é positivo”, diz.
Por outro lado, “a escalada da intensidade da violência detectada no período do primeiro confinamento em 2020 (um mês e meio) pode também ajudar a explicar este número, este aumento de pessoas ajudadas pela rede”.
Maior intensidade e frequência
O observatório realizou um estudo sobre violência doméstica, relativo a esse mês e meio do primeiro confinamento, que veio confirmar o alerta das autoridades, dos técnicos e das instituições de apoio à vítima, continua Dalila Cerejo. “O confinamento criou ou acumulou tensões que, ponto de vista do contexto familiar e da intimidade, tinham um potencial para se manifestar em violência. Nós não sabemos quanta desta violência continuou, porque já vinha de trás. Também nalguns casos – o primeiro confinamento trouxe violência nova no contexto da intimidade. Aí, e olhando para estes dados, podemos estar perante uma violência doméstica que foi potenciada pelo período do primeiro confinamento.”
O panorama actual de aumento das queixas às polícias, dos acolhimentos em casas de abrigo, das medidas de coacção, e dos homicídios na intimidade, como mostram os dados da CIG, pode ser, pelo menos em parte explicado por “essa escalada de intensidade do acto violento, ou da própria violência do acto”, diz Dalila Cerejo.
“O nosso estudo percebeu que durante o primeiro confinamento, a violência sofrida pelas mulheres não só aumentou em frequência como aumentou também em intensidade. As vítimas reportaram que houve uma escalada do número de episódios mas também da intensidade com que a violência era perpetrada”.
Não se pode concluir que há mais violência. Há um crescimento dos indicadores que medem a parte visível dessa violência, como o número queixas. “Não podemos dizer se a violência aumentou ou não, mas uma coisa podemos dizer de forma taxativa: enquanto sociedade não estamos a conseguir baixar este tipo de crime.” E isso explica-se porque “as oscilações de ano para ano mostram que os números por vezes sobem, outras vezes descem, mas não há consistentemente uma descida”.
O confinamento criou ou acumulou tensões que, ponto de vista do contexto familiar e da intimidade, tinham um potencial para se manifestar em violênciaDalila Cerejo - investigadora do Observatório Nacional de Violência e Género do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da NOVA
Expansão da rede nacional
Da Rede Nacional de Apoio a Vítimas de Violência Doméstica, criada e supervisionada pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG), fazem parte organizações como a União Mulheres Alternativa e Resposta, organização não governamental apoiada financeiramente para dar resposta às vítimas. A rede tem vindo a expandir-se desde os anos 1990 quando foram criadas as primeiras casas de abrigo.
Com a abertura, no início deste mês, de um centro de acolhimento de emergência em Braga e de uma casa de abrigo em Bragança, Portugal, no continente e ilhas, passou a ter 19 centros de acolhimento de emergência e 38 casas abrigo, embora Madeira e Açores ainda não disponham da opção de emergência, diz explica Marta Silva, responsável do Núcleo de Violência Doméstica e Violência de Género da CIG, “Os tempos médios estão dentro do que é estipulado legalmente”, acrescenta.
A grande maioria tem crianças com elas e 63% das mulheres em casas abrigo vieram do acolhimento de emergência. As restantes (27%) voltaram para a relação ou autonomizaram-se junto da família alargada. Da casa abrigo, há um fundo para a entrada das mulheres no mercado de arrendamento muitas vezes na região onde estavam acolhidas e, nesses casos, já não regressam para a região de origem, explica ainda a responsável.
Mais de 200 dias em casas
Desde 2009, com os instrumentos criados e a legislação aprovada, “o tempo previsto está legalmente balizado desde 2009 para as casas de abrigo (seis meses que podem ser renovados por igual período) e desde 2018 para as respostas de acolhimento de emergência (15 dias renováveis por igual período)”, acrescenta. O que se verificou em 2021 foi “um tempo médio de permanência nestas estruturas de 33 dias e resposta de acolhimento de emergência e em casa de abrigo de 210 dias”. Durante esse tempo, as vítimas tentam, com ajuda técnica, procurar uma casa, um novo emprego e colocar os filhos na escola.
“Na emergência, só há prolongamento do acolhimento com parecer técnico”, refere Marta Silva que exemplifica com uma situação recente quando “foi autorizado o prolongamento em emergência até a mulher acabar os ciclos de quimioterapia”. Já na casa de abrigo a decisão técnica é do director, absolutamente autónoma. “Nós não interferimos no prolongamento.”