Sem documentos para regressar ao país de origem, violência doméstica, desemprego e adições serão algumas das causas para o aumento de pessoas em situação de sem-abrigo na cidade.
Dentro de um edifício abandonado do Porto, numa divisão improvisada, feita de paredes de plástico opaco, está Rui. Sentado no chão, com os olhos fixados no vazio da escuridão, conta os minutos que faltam até voltar a uma rotina da qual há muito se quer afastar. Todos os dias cumpre uma espécie de ritual circular: para acalmar os sintomas da ressaca, sai do abrigo temporário que encontrou até arranjar dinheiro suficiente para uma dose que o vai acalmar apenas durante um período de tempo. Passado esse momento de quase tranquilidade, de volta à realidade da ausência no corpo da substância que consome, reinicia mais uma vez o mesmo processo de sobrevivência.
A realidade do vício das drogas já conhece há muito tempo. Mas há outra realidade que só há pouco conheceu. Até há cerca de três meses tinha casa, estava casado e dinheiro suficiente para sustentar a sua dependência. Mas agora já não é assim. Desde que perdeu o emprego durante a pandemia, entrou numa espiral descendente que o arrastou até à circunstância em que se encontra – pela primeira vez está numa situação de sem-abrigo. Quase a completar 40 anos, juntou-se ao número crescente de pessoas a viver nas ruas ou em abrigos temporários do Porto. Entre 2020 e 2021 o número de pessoas em situação de sem-abrigo na cidade aumentou de 590 para 730.
Numa das rondas semanais da Associação Saber Compreender, que o PÚBLICO acompanhou, mais casos recentes de homens e mulheres que voltaram às ruas ou estão pela primeira vez sem tecto foram detectados. As causas são variadas e difíceis de enquadrar em apenas uma tendência.
Porém, Rui – nome fictício, assim como de todas as outras pessoas referidas no texto - consegue identificar os motivos para a situação em que se encontra: “Tudo mudou depois de ficar sem emprego”. Por sua vez, ficar desempregado foi o catalisador para o divórcio. A sua adição também contribuiu para que a situação escalasse.
A origem do problema está no vício. Mas num contexto de estabilidade laboral e financeira, o problema pode parecer menos evidente. Se não tivesse perdido a rede de segurança que tinha, talvez agora a sua situação fosse diferente. Nunca vai poder confirmar se assim seria porque, entretanto, a vida trocou-lhe as voltas: “Tinha trabalho. Era empregado de balcão. Mas por causa da covid começaram a despedir pessoal e como eu era o funcionário mais recente despediram-me.”
Para voltar a reerguer-se espera poder contar com o apoio do Centro de Acolhimento Temporário Joaquim Urbano (CATJU), por quem já é acompanhado. Falta-lhe que surja uma vaga para poder lá pernoitar. “Estou à espera”, diz.
Rui divide o espaço onde passa as noites com mais pessoas na mesma situação – algumas já há muito mais tempo. Foi uma das pessoas que já lá está há vários anos que lhe “estendeu a mão”, de forma a não ter de pernoitar na rua.
Naquela noite estariam no interior da construção abandonada, pelo menos, uma mão cheia de homens e mulheres. Noutros dias são “dezenas”. Mas é difícil de saber ao certo o número exacto. “Muitos estão escondidos atrás dos plásticos”, dizem.
Pedro, é um dos que aparece detrás de uma dessas divisões para se deslocar até à nova carrinha da associação, emprestada pela junta do Bonfim. Na mão leva um saco vazio para o encher de comida, que vai dividir com os que estão no interior do edifício.
Ao longo dos seus 32 anos de vida, passou, no total, em alturas diferentes, cerca de quatro anos na rua. Há oito meses tinha um tecto em um dos apartamentos solidários do Porto Sentido - Habitação, Capacitação, Reinserção, projecto que abrange 60 pessoas, coordenado pelo município e pelos SAOM - Serviços de Assistência Organizações de Maria, uma IPSS da cidade. Também já tinha passado pelo CATJU.
Voltou a ficar sem tecto, como Rui, porque perdeu o emprego e deixou de poder suportar algumas despesas associadas ao programa, que tem em vista voltar a incutir nos utentes algumas responsabilidades para facilitar o processo de reinserção. Contudo, admite: “Também infringi algumas regras”. Voltou a consumir. O processo de reabilitação ficou a meio e voltou a ficar sem casa. Mas, mais uma vez, a situação de desemprego, também em pandemia, contribuiu para o regresso à rua.
Novas zonas
A carrinha da Saber Compreender arranca para outra zona da cidade. Pelo caminho vai fazendo algumas paragens. Uma delas é feita num ponto onde habitualmente não param. Numa entrada lateral de uma igreja está um pedaço de cartão a servir de resguardo para alguém que ali se abrigará. Mais de perto percebe-se que, naquele momento, não está ali ninguém. Mas talvez seja por pouco tempo. Entre o cartão e a porta da entrada estão os pertences de alguém, que os organizou meticulosamente. Na ronda da semana anterior não havia sinais de aquele sítio estar ocupado.
A cerca de cinco minutos dali está Maria, que se aproxima da viatura da associação, já estacionada, para tomar um café. Também recentemente, no último ano, regressou às ruas, por onde já tinha passado noutras fases da sua vida. Desta vez, o motivo tem origem numa situação de violência doméstica. Naquela noite, tinha passado o tempo a “fugir” do namorado, que aponta como uma das causas por ter sido despejada do quarto onde vivia. A associação aconselha-a a procurar ajuda. Mas hesita em identificar a situação como matéria que configura violência doméstica: “Ele não me bate. Só me chama nomes”.
Documentos roubados a estrangeiros
Debaixo de uma pala de uma entrada de outro prédio abandonado está um grupo de homens, que formam uma espécie de Nações Unidas sem tecto. Encostados a uma parede há vários colchões empilhados. Ali, estão cinco pessoas originárias de diferentes países. Os ucranianos estão em maioria, mas há um moldavo que recentemente passou a pernoitar ali. Quer regressar a casa, mas não sabe como. Não fala português, mas Cristian Georgescu, presidente da associação, consegue comunicar com o homem em romeno. Para o ajudar no regresso, dá-lhe a morada do Serviço Local de Atendimento de Acção Social do Porto, da Segurança Social, na Rua da Alegria. Como tem documentos, poderá ser mais fácil resolver a situação.
Todas as semanas, a Associação Saber Compreender sai à rua para apoiar as pessoas em situação de sem-abrigo do Porto Paulo PimentaTodas as semanas, a Associação Saber Compreender sai à rua para apoiar as pessoas em situação de sem-abrigo do Porto
Sergej, nascido na Ucrânia, também por causa da guerra, não quer regressar ao país de origem que deixou em 2001. Mas precisa dos seus documentos para voltar a trabalhar. Está numa situação de sem-abrigo no Porto há pouco tempo. Antes disso esteve num abrigo noutra cidade portuguesa depois de ter saído da casa onde morava. Diz ser engenheiro de formação, mas, nas últimas décadas, trabalhou como soldador em Portugal e noutros países europeus.
“Há uns tempos”, encontrou emprego noutro país. Mas a experiência não correu bem. “Estava nas primeiras horas de trabalho e tive um acidente e isso foi antes de assinar o contrato”, conta. A empresa, diz, acabou por nunca oficializar o vínculo. Para agravar a situação, diz ter ficado sem os documentos nesse país.
Tem apenas as cópias, que mostra. O processo de recuperação dos documentos está a ser demorado, mas está a decorrer com ajuda de uma equipa que o acompanha. Até lá, não pode voltar a trabalhar. “Agora estou aqui”, afirma. Dorme numa cama improvisada que naquela noite vai partilhar pelo menos com mais quatro pessoas. “Às vezes somos mais. Todos estrangeiros”.
Sem documentos, porque “foram roubados”, também está Vanessa, nascida no Brasil. Até há uns meses também vivia numa casa. Agora, dorme na entrada de um edifício, onde está deitada. Não tem “vícios”, afirma, e diz ser a primeira vez que passa por uma situação de sem-abrigo. O motivo? “Estava numa relação que terminou. E não trabalhava”. Por “vergonha” saiu da cidade onde estava e veio para o Porto. Agora quer regressar ao Brasil, mas sem documentação não pode.
O PÚBLICO contactou a Câmara do Porto, que recentemente divulgou números que revelam um aumento de 140 pessoas em situação de sem-abrigo na cidade, para saber quantos estrangeiros estão na mesma situação. Mas a autarquia não conhece esses dados e remeteu para o Centro Nacional de Apoio à Integração de Migrantes do Norte, que não atendeu o número de telefone geral.