30.8.22

“As mulheres e as crianças vítimas de violência doméstica continuam a sair tanto de casa como saíam há 15 anos“

Ana Dias Cordeiro, in Público on-line

As respostas criadas para atender e acolher as vítimas foram muito importantes e necessárias porque antes as mulheres não pediam ajuda, sublinha Ilda Afonso, coordenadora do centro de atendimento da UMAR no Porto. Diz, porém, que a única solução para a vítima de violência doméstica e para os seus filhos “não pode ser a casa de abrigo”.

Perante as tendências observadas nos últimos 15 anos, quando começou a dirigir o Centro de Atendimento e Acompanhamento a Mulheres Vítimas de Violência Doméstica, da UMAR no Porto, Ilda Afonso considera que as políticas públicas devem passar a centrar-se na prevenção, agora que estão cumpridas as respostas às vítimas com o atendimento, acompanhamento e acolhimento em situações de violência doméstica.

As estatísticas de Janeiro a Junho deste ano mostram um aumento das ocorrências, bem como de outros indicadores. Também é notório o aumento do número de vítimas acolhidas em casas de abrigo ou de emergência, pelo menos na primeira metade do ano. O que se passa?

As vítimas denunciaram menos enquanto durou a pandemia. Passada essa crise, voltaram a fazê-lo. Neste momento, estamos a estabilizar no patamar nacional anterior à pandemia. Desde que começaram as primeiras respostas no início dos anos 2000, ou no final do século passado, a tendência das denúncias foi num crescendo. A partir daí, passados entre 15 e 20 anos, começaram a estabilizar no mesmo patamar, em que estão agora, com oscilações ligeiras. O que podemos concluir é que houve um ressurgimento das denúncias e por isso dos acolhimentos em casas de abrigo. Significa que as mulheres e as crianças continuam a sair tanto de casa como saíam há 15 anos, porque voltámos aos números anteriores à pandemia.

Significa que o fenómeno da violência doméstica se mantém em níveis idênticos aos do passado recente?
Tem de ser feita alguma coisa para que estes números comecem a diminuir. Existem as respostas para as vítimas e, como tal, as mulheres já recorrem às estruturas de atendimento, o que antes não faziam. O que falta agora é uma aposta na prevenção.Ilda Afonso

Mantém-se. E isso diz-nos que tem de ser feita alguma coisa para que estes números comecem a diminuir. Existem as respostas para as vítimas e, como tal, as mulheres já recorrem às estruturas de atendimento, o que antes não faziam, e isso é muito importante porque antes não pediam ajuda. Em meu entender, o que falta agora é uma aposta na prevenção.

As políticas públicas têm-se focado sobretudo nas respostas e não nas causas?

Sim, o que é muito importante, porque é muito necessário haver uma resposta às vítimas. Mas também é muito importante e necessário haver um grande investimento na prevenção. Sem prevenção continuaremos a ter os jovens a repetirem os mesmos erros dos mais velhos.

O que está a ser feito e o que é preciso fazer em matéria de prevenção?

É preciso que a prevenção não passe apenas por se fazer uma acção de sensibilização numa escola. Tem de ser uma acção continuada, e sobretudo com as crianças uma prevenção continuada no tempo. É a prevenção primária nas escolas, nas associações de moradores, na comunidade em geral, com os profissionais, para prevenirmos que a violência ocorra. As respostas que existem dirigem-se para a prevenção secundária [de vigilância dos agressores] e terciária [acompanhamento e protecção das vítimas] dos casos. Mas até essas podem não ser suficientes se não forem travadas com uma prevenção primária.

Porque diz isso?

Aqui no centro de atendimento temos essa percepção de que as respostas podem não ser suficientes. Não acontece muito, mas recentemente, durante mais de uma semana, não houve vagas em casas de abrigo nem de acolhimento de emergência. Às vezes temos dificuldade durante alguns dias para arranjar acolhimento de emergência ou casa de abrigo. Mas recentemente, já em Julho e Agosto deste ano, estivemos duas semanas seguidas sem conseguir encontrar resposta. Acontece com alguma frequência estarmos dois ou três dias sem vaga mas, desta vez, não havia nem no acolhimento de emergência, nem no de longa duração. Arranjar vaga demorou mais tempo do que o habitual. As mulheres procuram ajuda quando sentem que aumenta a gravidade ou a frequência da violência. Quando começam, as agressões podem tornar-se mais frequentes ou mais intensas. Ora, durante a pandemia, com as pessoas fechadas em casa, tornaram-se mais frequentes. E isso desencadeou a coragem para pedir ajuda e sair de casa.

Diria que é preciso abrir mais vagas?
Suspeitamos que muitas destas mulheres encaminhadas para uma casa abrigo não estão numa situação de risco elevado em relação ao agressor, mas sim numa situação social precária. Precisam de sair de casa, mas não conseguem alugar uma casa.Ilda Afonso

Não sabemos. Mas suspeitamos que muitas destas mulheres não estão numa situação de risco elevado de perigo em relação ao agressor, mas sim numa situação social precária. Precisam de sair de casa, mas não conseguem alugar uma casa. A resposta não pode ser a casa de abrigo. A resposta do acolhimento de emergência tem de ser para situações de emergência, em que aquela pessoa tem mesmo de fugir e precisa de um sítio para se alojar porque existe o risco de o agressor a perseguir, correr perigo do ponto de vista da sua integridade física. A vítima não pode permanecer na casa onde está o agressor.

Isso é algo de que se fala há muitos anos.

Fala-se, mas temos de continuar a falar porque isso tem de acontecer. Há outros países onde isso já acontece, em Espanha e na Áustria, se o Governo actual não alterou a lei. Se olharmos para os números mais recentes em Portugal, temos cerca de 780 agressores com vigilância electrónica entre Março e Junho, para mais de 7000 queixas à PSP e à GNR no mesmo período. No entanto, temos mais de 1500 pessoas em casa de abrigo.

Porém, as medidas de coacção têm vindo a agravar-se: os números de acusados em prisão preventiva e dos que estão com pulseira electrónica subiram nos últimos dois anos.

Não têm aumentado o suficiente. Nós temos de encontrar condições para que as mulheres e as suas crianças permaneçam nas suas casas, e que seja o agressor a sair, porque é muito penalizador e muito injusto que tenha de sair a família toda e ficar o agressor em casa. O que pergunto é: existem ou não medidas mais severas ou adequadas para proteger as vítimas e evitar que sejam encaminhadas, em tão grandes números, para casas de abrigo? Deviam existir medidas para proteger estas vítimas para elas não terem de deixar a sua habitação.

Claro que há sempre situações que são de facto muito perigosas — nós sabemos. Situações em que, da avaliação de risco, a não ser que o agressor esteja preso, sabemos que aquele homem vai perseguir aquela vítima e se a encontrar vai matá-la. Eu refiro-me a homens [agressores] porque no centro que coordeno apenas trabalhamos com mulheres. Nesse caso, é necessário que se esconda e vá para uma casa de abrigo, que ninguém saiba onde está, nem os familiares nem ninguém. Mas se, com uma medida adequada, aquela vítima pode permanecer na sua casa, e não precisa de sair, devia ser esse o caminho.