3.8.22

“A cadeira de rodas também vai?” Pessoas com mobilidade reduzida queixam-se de discriminação nos TVDE

Daniela Carmo, in Público on-line

Queixas na polícia e respostas pré-formatadas às reclamações junto das empresas. Estas são algumas das experiências de quem se desloca em cadeira de rodas e vê as viagens muitas vezes canceladas. O que podem os passageiros com mobilidade reduzida fazer quando sofrem uma situação discriminatória num carro TVDE?

O acto de abrir a aplicação de uma qualquer plataforma de TVDE e fazer a requisição de um transporte é comum nos dias que correm. E nem é algo que provoque ansiedade. Pelo menos não o é para a maioria da população. Mas há pessoas que se deslocam numa cadeira de rodas, como Lourenço, Diana ou Catarina, e que pensam duas vezes antes de requisitar uma viagem. A dúvida quanto ao motorista que vão encontrar, se vai aceitar transportar a cadeira ou se vai até cancelar a viagem depois de perceber que existe uma cadeira de rodas na equação pode demovê-los.

Esta é a realidade que Lourenço Madureira Miguel, Diana Niepce ou Catarina Oliveira relatam ao PÚBLICO, e que não é desconhecida a quem, como eles, precisa de uma cadeira de rodas para se deslocar. As situações variam, mas, em todas elas, há um factor que dizem ser comum: a discriminação negativa pela pessoa com mobilidade reduzida.

De acordo com a lei que estabelece o regime jurídico da actividade de transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma electrónica (Lei n.º 45/2018), “é obrigatório o transporte de cães guia de passageiros invisuais e de cadeiras de rodas ou outros meios de marcha de pessoas com mobilidade reduzida, bem como de carrinhos e acessórios para o transporte de crianças”.

Além disso, a lei tem mesmo um artigo dedicado em exclusivo à “não discriminação” e outro aos “passageiros com mobilidade reduzida”. Neste último determina-se que “a plataforma electrónica fornece obrigatoriamente aos utilizadores, efectivos e potenciais, a possibilidade de estes solicitarem um veículo capaz de transportar passageiros com mobilidade reduzida, bem como os seus meios de locomoção”.

“Os utilizadores, efectivos e potenciais, têm igualdade de acesso aos serviços de TVDE, não podendo os mesmos ser recusados pelo prestador em razão, nomeadamente, de ascendência, idade, sexo, orientação sexual, estado civil, situação familiar, situação económica, origem ou condição social, deficiência, doença crónica, nacionalidade, origem étnica ou raça, território de origem, língua, religião, convicções políticas ou ideológicas e filiação sindical”, lê-se no mesmo documento.

Eu não discrimino, eu sei bem ver as coisas. Você não vê que aquilo [cadeira de rodas] é um peso bruto? Você pode usar aquilo para se transportar de um lado para o outro, não é para pôr dentro do carro e tirar do carro. No seu carro está bem, agora no Uber não. Motorista de TVDE

“Cadeira de rodas não aceito”

Lourenço, estudante do curso de Medicina em Lisboa, chegou a ficar mais de uma hora à espera por um transporte depois de cancelamentos consecutivos. O caso não foi isolado. O jovem de 21 anos desloca-se diariamente, várias vezes por dia, entre a faculdade, o hospital ou um café, para uma simples saída com os amigos.

E, em 60% das viagens, garante, tem uma experiência negativa. “Uma destas três situações acontece: chamo um TVDE, estou oito minutos ou quantos forem à espera, para me identificar digo que estou de cadeira de rodas e o motorista diz ‘cadeiras de rodas não aceito’; outras vezes cancela a viagem; ou usa ainda outra estratégia que é ficar a andar no sentido contrário ao meu, enquanto o preço [da taxa de espera] aumenta, para me obrigar a ser eu a cancelar em vez de cancelar ele e ser penalizado”.

Num dos percursos, Lourenço Madureira filmou a interacção com o motorista e partilhou o vídeo nas redes sociais para denunciar o caso. Seguiu-se uma avalanche de testemunhos semelhantes e de mensagens de solidariedade perante as palavras do motorista. “Eu não discrimino, eu sei bem ver as coisas. Você não vê que aquilo [cadeira de rodas] é um peso bruto? Você pode usar aquilo para se transportar de um lado para o outro, não é para pôr dentro do carro e tirar do carro. No seu carro está bem, agora no Uber não. O Uber não está aqui para ser o seu criado”, ouve-se o motorista dizer.
TVDE não revelam quantas queixas

Questionadas por escrito pelo PÚBLICO, nenhuma das principais empresas que operam em Portugal (Uber, Bolt e Free Now) adianta quantas queixas de discriminação de pessoas com mobilidade reduzida foram recebidas este ano ou em 2021.

No caso da Free Now, a empresa diz que “ainda não tem acesso a estes dados”. Já a Bolt refere que não consegue precisar o número de queixas “relacionadas directamente com este assunto” e que fazê-lo vai contra a política de privacidade da empresa. A Uber não responde a essa questão.

Pedimos à coordenadora do Observatório da Deficiência e dos Direitos Humanos (ODDH), Paula Campos Pinto, para enquadrar o termo: “a discriminação é qualquer comportamento que causa uma desvantagem para a pessoa que tem uma necessidade específica em termos de transporte, neste caso. É um tratamento diferente do que é dado a outras pessoas e que, nesta situação de discriminação negativa, prejudica a pessoa.”

O problema destas situações é que geram traumas e nós demoramos muito tempo a ultrapassá-los. E temos de sair à rua, temos de fazer a nossa vida. Só que estas situações geram muito desconforto, há sempre aquele lugar, aquela memória da experiência traumática e infelizmente a maioria delas, as pessoas que estão de fora não as vêem Diana Niepce

Uma vez que a legislação tem explícitos os dois artigos relativos à não discriminação e aos passageiros com mobilidade reduzida, há “uma clara moldura legal” para que o visado possa apresentar queixa por discriminação. “Existe um quadro jurídico muito explícito e que não deixa margem para dúvidas daquilo que são as obrigações destes motoristas”, desenvolve a mesma responsável.

Nessas situações, os clientes devem, então, apresentar queixa à Provedora da Justiça ou ao Instituto Nacional de Reabilitação (INR) e não apenas à plataforma responsável pelo transporte. “Ao fazê-lo [a pessoa que sofreu um episódio de discriminação] deve incluir relatos concretos, data, hora, quem foi o condutor, qual era o veículo, etc. E, além disso, nestas plataformas electrónicas as viagens até ficam registadas pelo que é fácil provar que aquilo aconteceu”, acrescenta Paula Campos Pinto.

A coordenadora do ODDH adianta também que “a lei que proíbe a discriminação das pessoas com deficiência prevê determinadas multas para aplicar a quem não a cumpre”. Contudo, este é um “processo moroso” e não há muitos casos a terminar em sanções porque são desenvolvidas acções pedagógicas e os comportamentos são corrigidos.

Em cada dia de 2021, houve em média três queixas por discriminação em razão da deficiência e do risco de saúde agravado, segundo os dados que constam do Relatório anual 2021 sobre as práticas de actos discriminatórios em razão da deficiência e do risco de saúde agravado, divulgado no início da semana. Do total de 1196 queixas remetidas às entidades competentes, 66 foram enviadas à Autoridade da Mobilidade e dos Transportes.

As três plataformas que foram questionadas pelo PÚBLICO dizem, no entanto, que não toleram qualquer tipo de discriminação e descrevem os comportamentos como intoleráveis. “Discriminar passageiros ou recusar uma viagem devido a condições físicas, nacionalidade, etnia, orientação sexual ou crença religiosa não se enquadra nos nossos valores, sendo que acreditamos na igualdade e, sobretudo, dignidade de todos os passageiros”, escreve a Free Now, ao mesmo tempo que garante ter iniciado “processos de averiguação”.

Também a Uber assegura que sempre que as regras de utilização não são cumpridas por determinado motorista poderá acontecer a inibição de trabalho depois da investigação.

“O que geralmente fazemos nestes casos começa pela identificação do condutor em questão e, depois da averiguação sobre o incidente, aplicamos a sanção adequada; consoante esta, desenvolvemos esforços no sentido de prevenir a repetição destes mesmos comportamentos”, explica, por sua vez, o responsável de ride-hailing da Bolt em Portugal, Nuno Inácio.
Empresa é a responsável, não o motorista

Mas, para Diana Niepce, uma sanção ao motorista não é a solução porque “foi a empresa que não garantiu uma formação adequada àquela pessoa”. Por isso, quando sofre alguma situação discriminatória num TVDE vai mais longe e apresenta queixa na aplicação e participa à polícia da empresa responsável. “A minha queixa não é contra o motorista, é contra a empresa porque a empresa é que tem de tomar medidas em torno disso para as coisas não acontecerem”, defende.

Diana, com 37 anos, é bailarina, coreógrafa e escritora e, tal como Lourenço, utiliza frequentemente as plataformas TVDE para se deslocar, nacional e internacionalmente. Volta e meia, pelo menos uma vez por semana, tem uma experiência negativa.

Enquanto nos conta os episódios pelos quais já passou, Diana Niepce faz, ao mesmo tempo, uma viagem de Uber. “Desta vez está a correr tudo bem, até agora sim”, responde quando lhe perguntamos sobre aquela deslocação. Mas acrescenta que optou por reservar um Assist – uma opção desenvolvida “em parceria com a Associação Salvador, que permite a pessoas com deficiências físicas, intelectuais e sensoriais, bem como idosos, grávidas ou qualquer utilizador com mobilidade reduzida, realizar viagens com apoio especial”, esclarece a Uber ao PÚBLICO.

A Bolt assegura estar também a trabalhar numa opção semelhante dedicada a pessoas com mobilidade reduzida. “Este é, acima de tudo, o único passo lógico do nosso ponto de vista para colmatar esta falha no mercado”, refere Nuno Inácio.

Para isso, a empresa vai “promover a formação de um número significativo de motoristas, que terão carros já equipados para este efeito de transporte”. “Isto porque se, por um lado, nem todos os carros estão aptos para tal — mesmo indo ao encontro dos requerimentos por lei para um veículo TVDE —, é ainda mais importante termos motoristas com formação adequada e as suas viaturas moldadas às necessidades de quem os requer.”

Já a Free Now diz que “exige uma formação específica dada aos motoristas antes de iniciarem a actividade” com a plataforma, “a qual inclui um capítulo de boas práticas e de inclusão”.

Mas a cadeira também vai? Não vou pôr isso no meu carro Motorista de TVDE

“Não vou pôr isso no meu carro”

Ao contrário dos restantes entrevistados, uma destas experiências traumáticas levou Catarina Oliveira a deixar de usar estes serviços. A nutricionista e activista pelos direitos da pessoa com deficiência tem carro próprio, “felizmente”, e é assim que faz a maioria das deslocações, mas quando é necessário outro meio chama um motorista já seu conhecido.

Há três anos um condutor perguntou-lhe “mas a cadeira também vai?” e, depois de ouvir uma resposta afirmativa, rematou com um “não vou pôr isso no meu carro”. “A minha cadeira é manual e desmontável, é leve (tem seis quilos) e há uma parte, como um ovo de um bebé [cadeira de transporte], que tinha de ir no banco de trás porque a mala era pequena. Quando o senhor disse que não a levava no carro entrámos numa discussão e, a certa altura, eu já pedia ao meu irmão para me chegar a cadeira porque eu é que já não queria ir com aquele motorista”, descreve Catarina. “Ele começou a perceber que nós não nos estávamos a calar e a dizer que aquilo era discriminação e, por isso, disse que podíamos tentar encaixar tudo.” “Agora quem não quer ir sou eu”, rematou a nutricionista de 33 anos e o motorista foi embora.

Seguiu-se uma “reclamação formal”, a empresa que a transportou disse que “não se revia nestas políticas e que iam dar seguimento à reclamação”. Até hoje, Catarina não soube mais nada sobre o caso. “Não faço ideia se houve alguma consequência.”

O mesmo acontece com Lourenço e Diana, que dizem que sempre que apresentaram uma queixa o que receberam foram mensagens ou telefonemas em nome da plataforma com “uma comunicação já pré-formatada, que é sempre a mesma: não se revêem naquelas políticas”.