Alexandra Campos, in Público online
O presidente do Conselho Nacional do Médico Interno convida a ministra da Saúde a fazer visitas de surpresa a alguns serviços e hospitais para ver as condições em que os médicos que estão a fazer a formação na especialidade trabalham.
Um mês após a publicação do decreto-lei que veio permitir aos hospitais pagarem valores mais elevados aos médicos que aceitem fazer mais horas extraordinárias nos serviços de urgência, cinco centenas de médicos internos (que estão a fazer a formação na especialidade) anunciaram que não estão disponíveis para trabalhar mais do que 150 horas suplementares por ano. Segundo os sindicatos, já se recusaram a ultrapassar este limite mais de 400 internos da especialidade de medicina interna, que se juntaram aos 110 internos de ginecologia e obstetrícia que manifestaram a mesma intenção numa carta enviada à ministra da Saúde no início deste mês. Os médicos internos, que são “o pilar dos serviços de urgência”, estão cansados e acenar-lhes com mais dinheiro pelas horas extraordinárias “não basta”, diz Carlos Mendonça, presidente do Conselho Nacional do Médico Interno, um órgão consultivo da Ordem dos Médicos. A nova geração quer ter mais tempo para outras actividades, “quer conseguir gerir a vida com equilíbrio”, frisa. Esta segunda-feira, há uma reunião dos internos de medicina interna com o bastonário Miguel Guimarães para discutirem soluções para a “crise” dos serviços de urgência.
Há cada vez mais internos a recusar-se a fazer mais do que 150 horas extraordinárias por ano nos serviços de urgência. Por que é que isto está a acontecer agora que podem ganhar mais dinheiro se fizerem mais trabalho suplementar? Os internos decidiram revoltar-se?
Não diria que é uma revolta, mas sim que é uma forma de mostrar o nosso cansaço. Os médicos internos são a base e o pilar das urgências, porque neste momento, e exceptuando os hospitais mais periféricos, todos os outros dependem muito dos internos para aquilo que é o trabalho de rotina. Nas urgências, temos ainda um papel mais preponderante e mais visível. Se todos os internos deixassem de fazer urgência durante uma semana, dificilmente seria possível manter os serviços de urgência nos moldes actuais. Segundo os últimos números do Portal da Transparência do Serviço Nacional de Saúde [SNS], os internos são cerca de 10.700. Temos, no total, 32 mil médicos no SNS e, retirando os cerca de 2200 que são internos de formação geral, há à volta de 8.500 médicos internos de formação especializada. São, portanto, cerca de 30% de todos os médicos e é preciso notar que muitos dos outros médicos, os especialistas, já não fazem urgência [porque têm mais de 55 anos] e muitos estão quase na idade da reforma, sendo que o pico das aposentações está previsto para este ano e para 2023 e 2024.
O bastonário disse que há internos que já fizeram 650 horas extraordinárias desde o início deste ano. Há muitos médicos nessa situação?
Há especialidades que são mais propícias a atingir esses números, como a obstetrícia, a medicina interna, a cirurgia geral, a pediatria, porque são as especialidades que asseguram, em maior número, a actividade dos serviços de urgência. Mas a grande maioria dos médicos internos já está próximo do limite anual de horas extraordinárias ou já o ultrapassou.
A nova geração de médicos não quer ser escravizada, para usar o termo que Miguel Guimarães utilizou?
Diria que é toda a nova geração de pessoas, não são só os médicos. As pessoas têm hoje uma perspectiva um pouco diferente da geração de há 30 anos, tal como essa tinha uma perspectiva diferente da geração de há 50 anos. Os médicos já têm que cumprir um horário de 40 horas semanais, o que não acontece noutras profissões da Função Pública. A nova geração quer ter mais tempo para outras actividades, para estar em casa com a família, não quer ter que conciliar actividade pública com privada, não quer andar a correr de um sítio para outro. Quer conseguir gerir a vida com equilíbrio.
Com o decreto-lei que foi publicado há um mês os internos podem receber metade daquilo que se paga aos especialistas nos serviços de urgência, ou seja, 35 euros por hora, se já tiverem feito este ano mais de 150 horas extras. Não é um valor apelativo?
Um médico interno ganha 1860 euros por mês, acho que não chega a 1300 euros líquidos. Com um valor bruto de 1860 euros e 40 horas por semana, em quatro semanas isso dá um valor bruto de 11,60 euros por hora. Quando se fala em 35 euros por hora é bom, é o triplo. Mas o decreto-lei permite que médicos tarefeiros (em prestação de serviço) continuem a poder ser contratados por um valor que pode ascender a 90 euros por hora. Isso quer dizer que um tarefeiro continua a poder ganhar mais em 24 horas do que um interno num mês de trabalho. E se calhar ganhar o triplo não é tão apelativo quando alguns internos já fizeram quatro vezes mais horas extraordinárias do que o limite anual. Há um cansaço acumulado. É preciso ver que o médico interno não trabalha só no hospital, tem que fazer cursos, trabalhos, investigação, e tudo isto é feito fora do horário de trabalho.
Esse valor de 90 euros por hora é o máximo e está previsto apenas para situações excepcionais, em que os serviços de urgência estão em risco de encerrar.
Sim, mas continua a ser possível esta discrepância de valores.
No ano passado, pela primeira vez desde que há mais candidatos do que vagas para a especialidade, ficaram por preencher 50 lugares e, alguns destes, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, um dos maiores do país. Por que é que isto aconteceu?
Acho que é mais um sinal de alerta. Neste momento, temos mais candidatos do que vagas para a especialidade e, se mesmo assim sobram vagas, isto quer dizer alguma coisa. São médicos que preferem esperar um ano e repetir a prova [de acesso à especialidade], ou ficar a trabalhar como tarefeiros, ou emigrar para fazer uma especialidade noutro país, ou ir trabalhar para outras áreas da medicina.
Há muitos médicos que preferem ficar a trabalhar como tarefeiros, sem especialidade?
Não tenho essa contabilidade. Mas, repito, por que é que se paga mais a um tarefeiro, na maior parte das vezes sem especialidade, do que a um interno que está a fazer horas extras no seu hospital? A intenção do decreto-lei seria alterar isto mas, como se está a constatar com todos estes pedidos para não fazerem mais de 150 horas, não está a funcionar em pleno. Chegou-se a um ponto em que não é por poder receber mais um pouco que os internos estão dispostos a trabalhar mais horas. Pagar mais não basta … é preciso dar aos médicos condições suficientes para que fiquem no SNS. Convido a senhora ministra a fazer visitas de surpresa a alguns serviços e hospitais. O SNS está a deteriorar-se, parece que as coisas vão piorando de ano para ano.
O que poderia fazer com que os jovens médicos ficassem no SNS depois de concluírem a especialidade?
Há toda uma série de condições que entram na equação. Será diferente não ter que andar a lutar por um computador, ter gabinetes adequados para atender os doentes, ter urgências mais calmas, mais organizadas. E a inovação tecnológica também conta. Os hospitais privados acabam por oferecer este tipo de condições e as pessoas, podendo ganhar mais, não tendo que fazer horas extraordinárias e podendo fazer investigação e explorar novas tecnologias, optam [pelos privados] e não só por uma questão de dinheiro. E, há 40 anos, quando começou o SNS, os médicos estavam entusiasmados, tinham o objectivo de atingir o topo da carreira, havia incentivos à permanência no SNS. Neste momento isso não existe. Mas tenho alguma esperança nas negociações que estão em curso [entre os sindicatos e o Ministério da Saúde].