Sandra Afonso, in RR
A pandemia afastou dos cuidados de saúde os mais desfavorecidos e os profissionais de saúde estão exaustos e cada vez recebem pior.
Os médicos e os enfermeiros perderam 10% do salário real em dez anos, de acordo com os estudos “Recursos Humanos em Saúde” e o “Acesso a Cuidados de Saúde, 2022”, dos investigadores Pedro Pita Barros e Eduardo Costa.
De acordo com os dois documentos, apresentados esta terça-feira em Lisboa, a pandemia afastou dos cuidados de saúde os mais desfavorecidos e os profissionais de saúde estão exaustos e cada vez recebem pior. Assim, conclui-se que não basta abrir novas vagas e concursos, é preciso usar a transformação digital e reorganizar o trabalho nas unidades de saúde.
Entre 2011 e 2021, médicos e enfermeiros passaram por “três choques negativos sucessivos, lembra o economista Pita Barros: o ajustamento financeiro da troika, a reversão das medidas e a pandemia. Os profissionais mais novos, “têm trabalhado sempre em emergência, não sabem o que é trabalhar de outra de forma”, alerta, que acumulam com a perda salarial.
Sem ter em conta 2022, que é considerado um ano atípico devido à inflação acelerada, entre 2011 e 2021 o ganho médio nacional aumentou entre 5 e 10%. Já na saúde, “para os enfermeiros, acabou por baixar quase 10%, e no caso dos médicos do SNS, acabou por baixar mais de 10%”, diz Pita Barros.
Isto “não significa que estejam a ganhar menos do que ganha em média a população nacional”, quer dizer que enquanto “o resto da economia conseguiu fazer com que as pessoas tivessem um melhor salário real ao fim de dez anos, no caso dos médicos, não foi isso que sucedeu”.
Há ainda outra conclusão a tirar destas estatísticas (Nova SBE_KC Health_Recursos Humanos_2022.pdf (unl.pt): “aumentou o desfasamento (do SNS) para os profissionais do sector privado”, acrescenta Pita Barros.
É preciso atrair pessoas para o Serviço Nacional de Saúde, mas já não basta melhorar a remuneração. À Renascença, Pita Barros apresenta o problema como um cubo com três dimensões: o salário, o horário e a progressão.
São necessárias “condições remuneratórias, condições de trabalho”, mas também “flexibilidade suficiente para aceitar escolhas diferentes do envolvimento dos profissionais de saúde, no sentido em que alguns poderão querer mais ou menos tempo parcial, algum tempo dedicado à investigação, algum tempo só para eles ou, eventualmente, estar simultaneamente no sector público e no setor privado”. A terceira dimensão olha para o futuro, “tem que se oferecer uma perspetiva do que é a evolução ao longo da vida profissional”, avisa o investigador.
O relatório aponta para temas como a acumulação de trabalho nestas áreas, entre o público e o privado e a carga horária. Pita Barros sublinha que estes profissionais dão cada vez maior importância a aspectos como a parentalidade. Por outro lado, lembra que tem de haver “uma maior feminização das profissões de saúde, sem diferenças entre homens e mulheres.”
Este levantamento da saúde em Portugal surge de uma parceria da Fundação “la Caixa”, com o BPI e a Nova SBE, que analisou também o acesso aos cuidados de saúde (file:///C:/Users/sandraferreira/AppData/Local/Microsoft/Windows/INetCache/Content.Outlook/YC2BD206/Acesso%20a%20Cuidados%20de%20Sa%C3%BAde%202022%20v4.pdf)
População com menos rendimentos foi vítima do “efeito alicate”
No último ano registou-se uma diminuição no acesso da população aos cuidados de saúde. “Cerca de 14% da população não recorreu ao sistema de saúde”, um valor que “tem estado a subir de forma continuada desde 2019”.
Ao mesmo tempo, aumentaram os episódios de doença entre os que têm menores rendimentos. Pita Barros diz que foram vítimas do “efeito alicate”: estavam mais expostos à pandemia e sentiram mais a redução do poder de compra.
“Um dos lados do alicate é terem, provavelmente, condições laborais que não permitem o teletrabalho e acabavam por estar mais expostas, o que foi um risco para a saúde maior. Por outro lado, também as consequências económicas da redução da atividade”, explica.
Ainda segundo este trabalho, no último ano “a probabilidade de um episódio de doença na classe socioeconómica mais desfavorecida é de 72% para as mulheres e de 66% para os homens, comparando com 37% e 31% registados nas classes socioeconómicas mais favorecidas”.
Outro efeito da pandemia foi o aumento da utilização da linha telefónica SNS 24: “até 2020 tínhamos um uso regular mas a níveis relativamente baixos, com a covid passou a ter um novo impulso, que foi-se tornando mais permanente”, diz. Agora o SNS24 está a “estabelecer-se como uma porta de entrada do acesso dos cidadãos ao Serviço Nacional de Saúde”, defende o investigador.
É preciso avaliar se estas alterações de comportamento se vão manter ou se são temporárias. Há outras, que apenas se acentuaram, como a automedicação (43%), numa altura em que muitas pessoas acumularam medicamentos, a maioria (57%) esperou que melhorasse.
Um indicador que também aumentou, em linha com o que tem vindo a acontecer, é a opção por genéricos. Metade das famílias com menores rendimentos teve dificuldade em comprar medicamentos no último ano. A maioria optou por estes medicamentos mais baratos: o recurso a genéricos passou de 33% em 2019 para 56% em 2022.
Urgências (temporariamente) aliviadas
Será mais um efeito pontual, que resulta da pandemia, em 2022 “apesar da ligeira subida face aos níveis de 2020 e 2021, a proporção de pessoas que procura os serviços de urgência permanece abaixo do pré-pandemia”.
Os utentes começaram a regressar ao setor público em 2021, depois da queda registada em 2019 e 2020. Ainda assim, desde o início da pandemia que há uma “diminuição na procura de respostas nos cuidados de saúde primários”.
Muitos, como foi apontado antes, trocaram a deslocação aos serviços pelo atendimento telefónico. “Verifica-se um aumento expressivo na utilização da linha de atendimento SNS24, consolidando a importância deste canal: a proporção de pessoas que reportou ter recorrido ao SNS24 aumentou de 3% para 28% entre 2019 e 2022”.
Sobre a avaliação da nova gestão do Serviço Nacional de Saúde, Pedro Pita Barros admite que será uma variável a introduzir no próximo ano, mas ainda falta muita informação, como a clarificação dos estatutos da Direção Executiva.
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6.6.23
28.3.23
“Esgotado”, João deixou de ser médico: “Os que continuam no SNS, para mim, são heróis”
Inês Silva, in Público
Aos 33 anos, e depois de um burnout, o oncologista no IPO do Porto decidiu pousar o estetoscópio. Após anunciar a decisão, João Dias ficou “assustado” com as mensagens que recebeu de outros profissionais: “As pessoas estão cansadas e a pedir ajuda.” Um testemunho na primeira pessoa, construído a partir de uma entrevista.“Desde criança que achava que queria ser médico. Felizmente, as notas sempre foram acompanhando essa possibilidade.
Durante o curso, fazia voluntariado na Cruz Vermelha Portuguesa e era técnico de emergência tripulante de ambulância, portanto já tinha algum contacto com o sistema de saúde. Já sabia como é que algumas coisas funcionavam, mas mantinha a ideia muito romantizada do médico como alguém que resolve problemas e que tem um papel activo de decisão e raciocínio lógico, com a vertente humanista de ajuda ao próximo.
“Chegava às consultas e tinha uma lista de 13 doentes para ver, com doenças graves, e sabia que, acontecesse o que acontecesse, tinha de os ver a todos.”
Fiz o internato entre 2014 e 2019. Depois de fazer o estágio em medicina interna fiquei um bocadinho desencantado. Era uma especialidade muito interessante, mas também muito desgastante e queria algo mais especializado. Acabou por aparecer a oncologia.
Começar a trabalhar é um choque de realidade. O que eu sentia é que somos peças de uma engrenagem numa máquina que nem sempre tem os mesmos objectivos e os mesmos valores que nós temos. Não é uma máquina que esteja oleada para dar o melhor que pode aos doentes, às vezes. E essa frustração começa a acumular-se.
Fui médico especialista durante três anos. Quando decidi afastar-me, tinha passado por um período complicado em termos de saúde mental. Estava claramente em burnout. Andei em consultas de psicologia e de psiquiatria, fui medicado com antidepressivos. Nunca parei de trabalhar, porque, felizmente, comecei a identificar os sinais cedo — também tenho formação nisso.
“Eu quero acreditar que, do ponto de vista técnico, me concentrei sempre para tomar as melhores decisões, mas não tenho dúvidas que, do ponto de vista de comunicação, muitas vezes podia ter sido melhor . E só não fui porque estava esgotado.”
‘Estava esgotado’
No IPO do Porto, estivemos relativamente salvaguardados durante a pandemia de covid-19, mas depois começámos a levar com as consequências. Percebemos que tínhamos doentes a chegar numa fase mais avançada, não sei se por atrasos nos diagnósticos, mas muito por causa de terem receio de procurar ajuda.
Foi por volta de Maio/Junho de 2021 que comecei a ter a percepção de um grande peso de responsabilidade e a acusar alguns sintomas de burnout. Chegava às consultas e tinha uma lista de 13 doentes para ver, com doenças graves, e sabia que, acontecesse o que acontecesse, tinha de os ver a todos.
Ao fim de algum tempo, os sintomas acabam por transparecer para os doentes também, porque estamos um bocadinho mais irritáveis, temos menos paciência para explicar as coisas, respondemos mais impulsivamente.
Foi por volta de Maio/Junho de 2021 que comecei a ter a percepção de um grande peso de responsabilidade e a acusar alguns sintomas de burnout. Chegava às consultas e tinha uma lista de 13 doentes para ver, com doenças graves, e sabia que, acontecesse o que acontecesse, tinha de os ver a todos.
Ao fim de algum tempo, os sintomas acabam por transparecer para os doentes também, porque estamos um bocadinho mais irritáveis, temos menos paciência para explicar as coisas, respondemos mais impulsivamente.
“Quando um profissional percebe que está tudo nas mãos dele e não se sente tão amparado como poderia estar, o desgaste é três vezes maior.”
Acabou por prevalecer a ideia de me afastar da prática clínica durante uns anos e também apareceu uma proposta diferente, numa empresa de biotecnologia em saúde. Um trabalho de consultoria na área médica, que me permite terminar o doutoramento do qual tive de desistir — porque não estava a conseguir conciliar com o internato da especialidade — e trabalhar remotamente, para voltar a reorganizar os eixos.
Como se mede a qualidade na saúde?
Posso dar um exemplo do excesso de trabalho: a Ordem dos Médicos prevê que uma primeira consulta em oncologia demore uma hora e que a consulta subsequente demore, em média, 30 minutos. O tempo que me davam era 30 minutos para uma primeira consulta, portanto metade, e o tempo de uma subsequente é 20 minutos.
Acho que há um problema na regulação da prática médica que não serve a sociedade enquanto estiver baseado neste sistema de Ordens, que, de facto, não têm capacidade de o fazer, nem interesse em fazê-lo. Também não têm poder suficiente para se impor perante o Estado, ou perante os privados, para exigir que as coisas fossem feitas com outra qualidade e preocupação.
É uma discussão muito grande, até do ponto de vista internacional, saber como é que se mede a qualidade na saúde. É pelo número de consultas? É pelo número de cirurgias? Não é, nós sabemos que não. É mais ou menos irrelevante quantas consultas fazemos. É sempre muito mais valorizada a componente de gestão do que a componente de ser médico, porque esta é mais difícil de avaliar.
Os ‘heróis’ que continuam no SNS
O doente acaba por estar sempre muito perdido no meio do sistema e agarra-se ao que pode, que é o profissional que tem à frente, que muitas vezes não é o responsável pela maneira como as coisas estão. Quando um profissional percebe que está tudo nas mãos dele e não se sente tão amparado como poderia estar, o desgaste é três vezes maior. Já não falo das coisas do dia-a-dia: da impressora que não tem papel ou do computador que encrava uma vez por consulta. Isto são coisas que nós já damos de barato.
Nota-se que há muitos colegas que trabalham no SNS com muita dedicação e nem imaginam mudar de vida, por exemplo, porque têm família e uma vida estável. Não estou a dizer que estão presos, mas há um bocadinho essa acomodação, que eu compreendo perfeitamente, mas que traz um problema: acabamos por ser pouco participativos na organização dos serviços e na organização do trabalho, porque estamos em modo de defesa, a fazer a nossa rotina e a não nos chatearmos muito. Há esse desalento entre os profissionais, de que aquilo que está mal nunca vai mudar.
Há, por outro lado, um grupo de profissionais que está num espírito de luta constante para tentar melhorar as condições. O que é triste para mim ver é que, neste momento, tentar promover melhorias no SNS é totalmente remar contra a maré. Vamos sempre ‘bater’ nas burocracias, no ‘sempre foi assim, porque é que vais mudar agora?’. Nesse sentido, os que continuam a trabalhar no SNS, para mim, são heróis, porque a esmagadora maioria dos profissionais está a tentar fazer o seu dia-a-dia, a sobreviver ou nesta luta contínua de tentar resolver as coisas — que não devia ser uma luta, mas é.
Portugal é um dos países da OCDE com mais médicos per capita, portanto não há falta de médicos. Há é falta de vontade dos médicos para trabalharem no SNS, porque são mal pagos. As pessoas preferem despedir-se porque se é para ganhar mais como tarefeiro e não têm vantagens em ser médicos no quadro, então mais vale ser tarefeiro.
É quase motivo de chacota quando um médico português diz a um médico estrangeiro quanto ganha. Já me perguntaram se o meu salário era por semana quando eu lhes disse o número. Toda a gente ficava muito chocada quando percebia que aquele era o salário mensal de um especialista. Salários mais dignos, processos mais transparentes, equipas mais fortes provavelmente voltariam a trazer muitos médicos para o SNS.
Eu sei que muitos dos problemas não são problemas do SNS, são problemas de Portugal, nomeadamente a questão da falta de transparência. Eu já passei pelo privado, muito pouco tempo, e via exactamente as mesmas coisas: a mesma burocracia, as mesmas papeladas (ou ainda pior, porque depois há a questão financeira dos seguros) e via os mesmos nomes em cargos de liderança.
“Se calhar, se eu soubesse o que sei hoje não entraria em Medicina. Mas se eu não tivesse entrado em Medicina também não saberia o que sei hoje.”
Um sentimento partilhado por outros médicos
Se calhar, se eu soubesse o que sei hoje, não entraria em Medicina. Mas se eu não tivesse entrado em Medicina também não saberia o que sei hoje. Não sou daquelas pessoas que acham que a Medicina é uma vocação, mas acho que é possível que, um dia, volte a querer ser médico e a querer fazer medicina clínica. Provavelmente, já voltarei noutra perspectiva.
Eu acho que o SNS está num momento de crise importante e, de facto, se não houver vontade e capacidade de ultrapassar este momento, o resultado pode ser uma destruição do SNS. Não duvido disso.
Eu diria que é um sistema que herdou uma ambição de prestar cuidados de saúde de qualidade e humanistas, mas que está a deitar fora essa herança por más decisões de gestão consecutivas. E, neste momento, está assegurado por aqueles trabalhadores heróicos que, apesar do sistema, continuam, todos os dias, a tentar resolver os problemas, mas não conseguem pegar no sistema e torná-lo novamente sustentável quando estão só focados a resolver a rotina diária.
Uma palavra final para os últimos dias. Após a minha publicação no Facebook e Twitter, tive muitos médicos a contactar-me. Fiquei assustado. Além das mensagens de encorajamento e apoio, muita gente partilhou frustrações, dizendo identificar-se com o que escrevi e confessando desejar ter coragem de tomar uma atitude igual. De saírem.
Alguns pediram conselhos concretos para o fazer, outros partilharam motivos pelos quais não podem (ou não o pensam) fazer agora, mas que talvez o façam um dia. As pessoas estão cansadas e a pedir ajuda. Querem manter-se no SNS, mas com a perspectiva de que os problemas parecem não ter solução, porque falta vontade em resolvê-los, sonham com a saída. Enquanto não voltarmos a colocar o foco do SNS nos trabalhadores e nos utentes, vamos ver a mesma degradação do sistema.”
Texto editado por Renata Monteiro
29.8.22
“Um tarefeiro continua a poder ganhar mais em 24 horas do que um médico interno num mês de trabalho”
Alexandra Campos, in Público online
O presidente do Conselho Nacional do Médico Interno convida a ministra da Saúde a fazer visitas de surpresa a alguns serviços e hospitais para ver as condições em que os médicos que estão a fazer a formação na especialidade trabalham.
Um mês após a publicação do decreto-lei que veio permitir aos hospitais pagarem valores mais elevados aos médicos que aceitem fazer mais horas extraordinárias nos serviços de urgência, cinco centenas de médicos internos (que estão a fazer a formação na especialidade) anunciaram que não estão disponíveis para trabalhar mais do que 150 horas suplementares por ano. Segundo os sindicatos, já se recusaram a ultrapassar este limite mais de 400 internos da especialidade de medicina interna, que se juntaram aos 110 internos de ginecologia e obstetrícia que manifestaram a mesma intenção numa carta enviada à ministra da Saúde no início deste mês. Os médicos internos, que são “o pilar dos serviços de urgência”, estão cansados e acenar-lhes com mais dinheiro pelas horas extraordinárias “não basta”, diz Carlos Mendonça, presidente do Conselho Nacional do Médico Interno, um órgão consultivo da Ordem dos Médicos. A nova geração quer ter mais tempo para outras actividades, “quer conseguir gerir a vida com equilíbrio”, frisa. Esta segunda-feira, há uma reunião dos internos de medicina interna com o bastonário Miguel Guimarães para discutirem soluções para a “crise” dos serviços de urgência.
Há cada vez mais internos a recusar-se a fazer mais do que 150 horas extraordinárias por ano nos serviços de urgência. Por que é que isto está a acontecer agora que podem ganhar mais dinheiro se fizerem mais trabalho suplementar? Os internos decidiram revoltar-se?
Não diria que é uma revolta, mas sim que é uma forma de mostrar o nosso cansaço. Os médicos internos são a base e o pilar das urgências, porque neste momento, e exceptuando os hospitais mais periféricos, todos os outros dependem muito dos internos para aquilo que é o trabalho de rotina. Nas urgências, temos ainda um papel mais preponderante e mais visível. Se todos os internos deixassem de fazer urgência durante uma semana, dificilmente seria possível manter os serviços de urgência nos moldes actuais. Segundo os últimos números do Portal da Transparência do Serviço Nacional de Saúde [SNS], os internos são cerca de 10.700. Temos, no total, 32 mil médicos no SNS e, retirando os cerca de 2200 que são internos de formação geral, há à volta de 8.500 médicos internos de formação especializada. São, portanto, cerca de 30% de todos os médicos e é preciso notar que muitos dos outros médicos, os especialistas, já não fazem urgência [porque têm mais de 55 anos] e muitos estão quase na idade da reforma, sendo que o pico das aposentações está previsto para este ano e para 2023 e 2024.
O bastonário disse que há internos que já fizeram 650 horas extraordinárias desde o início deste ano. Há muitos médicos nessa situação?
Há especialidades que são mais propícias a atingir esses números, como a obstetrícia, a medicina interna, a cirurgia geral, a pediatria, porque são as especialidades que asseguram, em maior número, a actividade dos serviços de urgência. Mas a grande maioria dos médicos internos já está próximo do limite anual de horas extraordinárias ou já o ultrapassou.
A nova geração de médicos não quer ser escravizada, para usar o termo que Miguel Guimarães utilizou?
Diria que é toda a nova geração de pessoas, não são só os médicos. As pessoas têm hoje uma perspectiva um pouco diferente da geração de há 30 anos, tal como essa tinha uma perspectiva diferente da geração de há 50 anos. Os médicos já têm que cumprir um horário de 40 horas semanais, o que não acontece noutras profissões da Função Pública. A nova geração quer ter mais tempo para outras actividades, para estar em casa com a família, não quer ter que conciliar actividade pública com privada, não quer andar a correr de um sítio para outro. Quer conseguir gerir a vida com equilíbrio.
Com o decreto-lei que foi publicado há um mês os internos podem receber metade daquilo que se paga aos especialistas nos serviços de urgência, ou seja, 35 euros por hora, se já tiverem feito este ano mais de 150 horas extras. Não é um valor apelativo?
Um médico interno ganha 1860 euros por mês, acho que não chega a 1300 euros líquidos. Com um valor bruto de 1860 euros e 40 horas por semana, em quatro semanas isso dá um valor bruto de 11,60 euros por hora. Quando se fala em 35 euros por hora é bom, é o triplo. Mas o decreto-lei permite que médicos tarefeiros (em prestação de serviço) continuem a poder ser contratados por um valor que pode ascender a 90 euros por hora. Isso quer dizer que um tarefeiro continua a poder ganhar mais em 24 horas do que um interno num mês de trabalho. E se calhar ganhar o triplo não é tão apelativo quando alguns internos já fizeram quatro vezes mais horas extraordinárias do que o limite anual. Há um cansaço acumulado. É preciso ver que o médico interno não trabalha só no hospital, tem que fazer cursos, trabalhos, investigação, e tudo isto é feito fora do horário de trabalho.
Esse valor de 90 euros por hora é o máximo e está previsto apenas para situações excepcionais, em que os serviços de urgência estão em risco de encerrar.
Sim, mas continua a ser possível esta discrepância de valores.
No ano passado, pela primeira vez desde que há mais candidatos do que vagas para a especialidade, ficaram por preencher 50 lugares e, alguns destes, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, um dos maiores do país. Por que é que isto aconteceu?
Acho que é mais um sinal de alerta. Neste momento, temos mais candidatos do que vagas para a especialidade e, se mesmo assim sobram vagas, isto quer dizer alguma coisa. São médicos que preferem esperar um ano e repetir a prova [de acesso à especialidade], ou ficar a trabalhar como tarefeiros, ou emigrar para fazer uma especialidade noutro país, ou ir trabalhar para outras áreas da medicina.
Há muitos médicos que preferem ficar a trabalhar como tarefeiros, sem especialidade?
Não tenho essa contabilidade. Mas, repito, por que é que se paga mais a um tarefeiro, na maior parte das vezes sem especialidade, do que a um interno que está a fazer horas extras no seu hospital? A intenção do decreto-lei seria alterar isto mas, como se está a constatar com todos estes pedidos para não fazerem mais de 150 horas, não está a funcionar em pleno. Chegou-se a um ponto em que não é por poder receber mais um pouco que os internos estão dispostos a trabalhar mais horas. Pagar mais não basta … é preciso dar aos médicos condições suficientes para que fiquem no SNS. Convido a senhora ministra a fazer visitas de surpresa a alguns serviços e hospitais. O SNS está a deteriorar-se, parece que as coisas vão piorando de ano para ano.
O que poderia fazer com que os jovens médicos ficassem no SNS depois de concluírem a especialidade?
Há toda uma série de condições que entram na equação. Será diferente não ter que andar a lutar por um computador, ter gabinetes adequados para atender os doentes, ter urgências mais calmas, mais organizadas. E a inovação tecnológica também conta. Os hospitais privados acabam por oferecer este tipo de condições e as pessoas, podendo ganhar mais, não tendo que fazer horas extraordinárias e podendo fazer investigação e explorar novas tecnologias, optam [pelos privados] e não só por uma questão de dinheiro. E, há 40 anos, quando começou o SNS, os médicos estavam entusiasmados, tinham o objectivo de atingir o topo da carreira, havia incentivos à permanência no SNS. Neste momento isso não existe. Mas tenho alguma esperança nas negociações que estão em curso [entre os sindicatos e o Ministério da Saúde].
O presidente do Conselho Nacional do Médico Interno convida a ministra da Saúde a fazer visitas de surpresa a alguns serviços e hospitais para ver as condições em que os médicos que estão a fazer a formação na especialidade trabalham.
Um mês após a publicação do decreto-lei que veio permitir aos hospitais pagarem valores mais elevados aos médicos que aceitem fazer mais horas extraordinárias nos serviços de urgência, cinco centenas de médicos internos (que estão a fazer a formação na especialidade) anunciaram que não estão disponíveis para trabalhar mais do que 150 horas suplementares por ano. Segundo os sindicatos, já se recusaram a ultrapassar este limite mais de 400 internos da especialidade de medicina interna, que se juntaram aos 110 internos de ginecologia e obstetrícia que manifestaram a mesma intenção numa carta enviada à ministra da Saúde no início deste mês. Os médicos internos, que são “o pilar dos serviços de urgência”, estão cansados e acenar-lhes com mais dinheiro pelas horas extraordinárias “não basta”, diz Carlos Mendonça, presidente do Conselho Nacional do Médico Interno, um órgão consultivo da Ordem dos Médicos. A nova geração quer ter mais tempo para outras actividades, “quer conseguir gerir a vida com equilíbrio”, frisa. Esta segunda-feira, há uma reunião dos internos de medicina interna com o bastonário Miguel Guimarães para discutirem soluções para a “crise” dos serviços de urgência.
Há cada vez mais internos a recusar-se a fazer mais do que 150 horas extraordinárias por ano nos serviços de urgência. Por que é que isto está a acontecer agora que podem ganhar mais dinheiro se fizerem mais trabalho suplementar? Os internos decidiram revoltar-se?
Não diria que é uma revolta, mas sim que é uma forma de mostrar o nosso cansaço. Os médicos internos são a base e o pilar das urgências, porque neste momento, e exceptuando os hospitais mais periféricos, todos os outros dependem muito dos internos para aquilo que é o trabalho de rotina. Nas urgências, temos ainda um papel mais preponderante e mais visível. Se todos os internos deixassem de fazer urgência durante uma semana, dificilmente seria possível manter os serviços de urgência nos moldes actuais. Segundo os últimos números do Portal da Transparência do Serviço Nacional de Saúde [SNS], os internos são cerca de 10.700. Temos, no total, 32 mil médicos no SNS e, retirando os cerca de 2200 que são internos de formação geral, há à volta de 8.500 médicos internos de formação especializada. São, portanto, cerca de 30% de todos os médicos e é preciso notar que muitos dos outros médicos, os especialistas, já não fazem urgência [porque têm mais de 55 anos] e muitos estão quase na idade da reforma, sendo que o pico das aposentações está previsto para este ano e para 2023 e 2024.
O bastonário disse que há internos que já fizeram 650 horas extraordinárias desde o início deste ano. Há muitos médicos nessa situação?
Há especialidades que são mais propícias a atingir esses números, como a obstetrícia, a medicina interna, a cirurgia geral, a pediatria, porque são as especialidades que asseguram, em maior número, a actividade dos serviços de urgência. Mas a grande maioria dos médicos internos já está próximo do limite anual de horas extraordinárias ou já o ultrapassou.
A nova geração de médicos não quer ser escravizada, para usar o termo que Miguel Guimarães utilizou?
Diria que é toda a nova geração de pessoas, não são só os médicos. As pessoas têm hoje uma perspectiva um pouco diferente da geração de há 30 anos, tal como essa tinha uma perspectiva diferente da geração de há 50 anos. Os médicos já têm que cumprir um horário de 40 horas semanais, o que não acontece noutras profissões da Função Pública. A nova geração quer ter mais tempo para outras actividades, para estar em casa com a família, não quer ter que conciliar actividade pública com privada, não quer andar a correr de um sítio para outro. Quer conseguir gerir a vida com equilíbrio.
Com o decreto-lei que foi publicado há um mês os internos podem receber metade daquilo que se paga aos especialistas nos serviços de urgência, ou seja, 35 euros por hora, se já tiverem feito este ano mais de 150 horas extras. Não é um valor apelativo?
Um médico interno ganha 1860 euros por mês, acho que não chega a 1300 euros líquidos. Com um valor bruto de 1860 euros e 40 horas por semana, em quatro semanas isso dá um valor bruto de 11,60 euros por hora. Quando se fala em 35 euros por hora é bom, é o triplo. Mas o decreto-lei permite que médicos tarefeiros (em prestação de serviço) continuem a poder ser contratados por um valor que pode ascender a 90 euros por hora. Isso quer dizer que um tarefeiro continua a poder ganhar mais em 24 horas do que um interno num mês de trabalho. E se calhar ganhar o triplo não é tão apelativo quando alguns internos já fizeram quatro vezes mais horas extraordinárias do que o limite anual. Há um cansaço acumulado. É preciso ver que o médico interno não trabalha só no hospital, tem que fazer cursos, trabalhos, investigação, e tudo isto é feito fora do horário de trabalho.
Esse valor de 90 euros por hora é o máximo e está previsto apenas para situações excepcionais, em que os serviços de urgência estão em risco de encerrar.
Sim, mas continua a ser possível esta discrepância de valores.
No ano passado, pela primeira vez desde que há mais candidatos do que vagas para a especialidade, ficaram por preencher 50 lugares e, alguns destes, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, um dos maiores do país. Por que é que isto aconteceu?
Acho que é mais um sinal de alerta. Neste momento, temos mais candidatos do que vagas para a especialidade e, se mesmo assim sobram vagas, isto quer dizer alguma coisa. São médicos que preferem esperar um ano e repetir a prova [de acesso à especialidade], ou ficar a trabalhar como tarefeiros, ou emigrar para fazer uma especialidade noutro país, ou ir trabalhar para outras áreas da medicina.
Há muitos médicos que preferem ficar a trabalhar como tarefeiros, sem especialidade?
Não tenho essa contabilidade. Mas, repito, por que é que se paga mais a um tarefeiro, na maior parte das vezes sem especialidade, do que a um interno que está a fazer horas extras no seu hospital? A intenção do decreto-lei seria alterar isto mas, como se está a constatar com todos estes pedidos para não fazerem mais de 150 horas, não está a funcionar em pleno. Chegou-se a um ponto em que não é por poder receber mais um pouco que os internos estão dispostos a trabalhar mais horas. Pagar mais não basta … é preciso dar aos médicos condições suficientes para que fiquem no SNS. Convido a senhora ministra a fazer visitas de surpresa a alguns serviços e hospitais. O SNS está a deteriorar-se, parece que as coisas vão piorando de ano para ano.
O que poderia fazer com que os jovens médicos ficassem no SNS depois de concluírem a especialidade?
Há toda uma série de condições que entram na equação. Será diferente não ter que andar a lutar por um computador, ter gabinetes adequados para atender os doentes, ter urgências mais calmas, mais organizadas. E a inovação tecnológica também conta. Os hospitais privados acabam por oferecer este tipo de condições e as pessoas, podendo ganhar mais, não tendo que fazer horas extraordinárias e podendo fazer investigação e explorar novas tecnologias, optam [pelos privados] e não só por uma questão de dinheiro. E, há 40 anos, quando começou o SNS, os médicos estavam entusiasmados, tinham o objectivo de atingir o topo da carreira, havia incentivos à permanência no SNS. Neste momento isso não existe. Mas tenho alguma esperança nas negociações que estão em curso [entre os sindicatos e o Ministério da Saúde].
12.10.20
Subsídio covid-19 até 219 euros para profissionais de saúde
São José Almeida, in Público on-line
A medida está inscrita no Orçamento para 2021 e é uma reivindicação do BE e do PCP.
Com o limite de 219 euros por mês, está já inscrito no Orçamento do Estado para 2021, um subsídio extraordinário de risco para profissionais de saúde que estão na linha da frente do combate à pandemia de covid-19 e que lidam com os doentes infectados pelo vírus SARS-CoV-2, soube o PÚBLICO.
O subsídio extraordinário de risco representará 20% da remuneração base mensal dos profissionais de saúde, mas não pode ultrapassar os 219 euros mensais. A referência para este valor é a de que o limite deste subsídio extraordinário de risco é equivalente a metade do Indexante de Apoios Sociais.
Esta medida vigorará enquanto existir pandemia de covid-19 em Portugal e destina-se a subsidiar todos os profissionais médicos do Serviço Nacional de Saúde e do Instituto Nacional de Emergência Médica que estão ligados aos serviços de despistagem, tratamento e apoio aos doentes infectados pelo vírus SARS-CoV-2.
A criação deste subsídio extraordinário de risco para profissionais de saúde que estão na linha da frente do combate à pandemia de covid-19 tem sido uma exigência de vários partidos, nomeadamente do Bloco de Esquerda e do PCP e a sua inscrição no Orçamento do Estado para 2021 insere-se no processo negocial em curso entre o Governo e os partidos da esquerda.
A medida está inscrita no Orçamento para 2021 e é uma reivindicação do BE e do PCP.
Com o limite de 219 euros por mês, está já inscrito no Orçamento do Estado para 2021, um subsídio extraordinário de risco para profissionais de saúde que estão na linha da frente do combate à pandemia de covid-19 e que lidam com os doentes infectados pelo vírus SARS-CoV-2, soube o PÚBLICO.
O subsídio extraordinário de risco representará 20% da remuneração base mensal dos profissionais de saúde, mas não pode ultrapassar os 219 euros mensais. A referência para este valor é a de que o limite deste subsídio extraordinário de risco é equivalente a metade do Indexante de Apoios Sociais.
Esta medida vigorará enquanto existir pandemia de covid-19 em Portugal e destina-se a subsidiar todos os profissionais médicos do Serviço Nacional de Saúde e do Instituto Nacional de Emergência Médica que estão ligados aos serviços de despistagem, tratamento e apoio aos doentes infectados pelo vírus SARS-CoV-2.
A criação deste subsídio extraordinário de risco para profissionais de saúde que estão na linha da frente do combate à pandemia de covid-19 tem sido uma exigência de vários partidos, nomeadamente do Bloco de Esquerda e do PCP e a sua inscrição no Orçamento do Estado para 2021 insere-se no processo negocial em curso entre o Governo e os partidos da esquerda.
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