A despesa directa das famílias com saúde ascendeu a quase 6,8 mil milhões de euros no ano passado. Portugal é um dos países da OCDE em que a percentagem dos gastos directos das famílias com a saúde é mais elevada.
As famílias portuguesas nunca gastaram tanto dinheiro do seu bolso para suportar despesas de saúde como em 2021. Foram quase 6,8 mil milhões de euros, 906 milhões de euros mais do que em 2020, ano em que os pagamentos directos das famílias diminuíram, invertendo a tendência para o crescimento contínuo que se verificava desde 2014, de acordo com os dados preliminares adiantados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE). Apesar de o Serviço Nacional de Saúde (SNS) ser público e tendencialmente gratuito, Portugal continua, assim, a ser um dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) em que a percentagem da despesa que as famílias pagam do seu bolso (out of pocket) é mais elevada.
Os pagamentos directos correspondem aos gastos das famílias sobretudo com consultas na medicina privada, por não haver resposta em tempo útil no SNS, com a realização de análises e exames não cobertos pelo apoio estatal, com a compra de medicamentos (apesar de uma parte importante ser comparticipada pelo Estado), com cuidados de saúde oral, entre outros.
Depois de atingir um valor e uma percentagem recorde em 2019 (ano em que representou 30,6% da despesa total com saúde), a factura das famílias diminuiu em 2020 (para 27,8% do total), devido ao aumento dos gastos associados à pandemia de covid-19 que foram suportados pelas entidades públicas (do Ministério da Saúde e os municípios, entre outras), nomeadamente em compras de máscaras, desinfectantes, testes, etc, explica o INE. Nesse ano, a despesa das famílias diminuiu 6%, em resultado do decréscimo na procura de consultas e cirurgias no sector privado e, em muito menor escala, devido à abolição do pagamento de algumas taxas moderadoras no SNS.
Aumentar
Em 2021, os gastos das famílias dispararam de novo. No ano passado, aliás, a despesa total corrente em saúde aumentou substancialmente - ultrapassou os 23,6 mil milhões de euros, reflectindo “o aumento dos gastos associados ao combate à pandemia” e “a retoma da assistência nas áreas não covid-19”, assinala o INE. Mas enquanto a despesa pública aumentou 11%, a privada cresceu ainda mais - 14,7% -, segundo os dados preliminares da conta satélite da saúde.
Os portugueses continuam, assim, a ser dos que têm mais encargos directos com a saúde comparativamente com os habitantes de outros países da OCDE. Basta ver que em 2020 a média da factura out of pocket nos países da OCDE era de 18%.
Há “vários aspectos que historicamente levam a essa situação”, explica o economista e especialista na área da saúde Pedro Pita Barros. “O Serviço Nacional de Saúde não cobre adequadamente algumas áreas, e o seguro privado também não”, sublinha o professor na Nova SBE, dando o exemplo dos cuidados de saúde oral que “são tradicionalmente um ponto fraco de cobertura de seguro público (SNS) ou privado”.
Além disso, o SNS “obriga a despesa das famílias, sendo aqui sobretudo relevante a despesa com medicamentos (mesmo tendo ocorrido desde 2012 descidas importantes nos preços finais de muitos medicamentos)” e este “é um efeito quantitativamente mais importante para as famílias do que a obsessão política com as taxas moderadoras”. “Se houver mais consultas, que levem a mais prescrição, haverá maior despesa das famílias nas farmácias e, logo, maior despesa directa das famílias em cuidados de saúde”, sintetiza.
Além disso, acrescenta, “apesar da existência do SNS, há uma tradição de grupos da população recorrerem a prestadores de cuidados de saúde privados, pagando directamente esses serviços - seja consultórios privados de médicos, seja meios de diagnóstico e terapêutica”.
“Portugal é, cronicamente, um dos países em que o out-of-pocket é mais elevado. Os cidadãos tendem, cada vez mais, a utilizar serviços privados porque o serviço público não responde com rapidez”, corrobora o economista e ex-secretário de Estado da Saúde Manuel Delgado. “A despesa com a saúde oral é também elevada e aqui há uma grande iniquidade no acesso, só quem tem dinheiro é que pode pagar uma consulta”, exemplifica.
Manuel Delgado sublinha ainda o peso nesta factura de “outra componente” – a dos medicamentos. “Há uma política de comparticipação elevada quando os medicamentos são sofisticados e caros, mas, quando o Estado aumenta a comparticipação destes medicamentos, retira-a noutros, os de uso mais comum, por exemplo, quando deixa de ser necessário ter receita médica [para os comprar]”.
No mais recente “Perfil de saúde” de Portugal (2021), elaborado pelo Observatório Europeu dos Sistemas e Políticas de Saúde em colaboração com a OCDE, frisa-se que, em termos globais, Portugal tinha em 2019 uma das percentagens mais altas de pagamentos directos, representando 30% das despesas totais de saúde, o dobro da média da União Europeia.
O crescimento da despesa directa das famílias com a saúde em Portugal também mereceu destaque no relatório Health at a Glance 2021 da OCDE - que compila indicadores de saúde dos vários países que integram a organização. Analisando a evolução dos pagamentos out-of-pocket, a OCDE recordou que foi nos anos a seguir à crise financeira e económica que a parte da despesa com a saúde suportada directamente pelas famílias mais aumentou em vários países europeus – e esse acréscimo foi de seis pontos percentuais na Grécia, de cinco em Portugal e de três em Espanha.
Em Portugal, diz o relatório, o peso das despesas em saúde no bolo total dos gastos das famílias chega aos 4,7%. Era o quinto país com o valor mais alto neste indicador, ficando apenas atrás da China e do Chile (ambos com 4,8%), Coreia do Sul (5,3%) e Suíça (5,8%). A média dos países da OCDE era de 3,1%.