Raquel Martins, in Público on-line
Num país onde predominam os baixos salários e onde 10% dos trabalhadores vivem em situação de pobreza, Renato do Carmo, professor do departamento de sociologia do ISCTE, alerta que o aumento do custo de vida vem trazer uma nova “camada de preocupação e de incerteza” à vida destas pessoas.
Com uma taxa de desemprego que ronda os 20%, as políticas públicas têm um papel fundamental para que os jovens percebam que têm futuro em Portugal, afirma Renato do Carmo. Já o debate em torno da semana de quatro dias, defende, deve ter em conta que nem todos os trabalhadores terão acesso a esta modalidade, que pode reforçar as desigualdades entre quem tem contratos permanentes e quem tem vínculos precários.
Neste momento, mais do que o desemprego, a grande ameaça que paira sobre os trabalhadores é o risco de pobreza?
A questão dos trabalhadores pobres não é uma realidade recente em Portugal, é um problema estrutural no mercado de trabalho e na economia. Temos uma persistência deste fenómeno desde longa data e que se cifra em torno dos 10%.
Em parte, isso está relacionado com os baixos salários e com as dinâmicas de precarização do trabalho que persistem e se vêm aprofundando.
Na análise que fizemos até à pandemia, identificámos um conjunto de pessoas que trabalham e estão numa situação social muito vulnerável porque não têm relações contratuais estáveis e isso tem implicações várias, desde logo, percursos no mercado de trabalho muito fragmentados. Além disso, uma parte considerável das pessoas que entrevistámos exerce mais do que um emprego para ter um pouco mais de rendimento, como uma espécie de salvaguarda caso uma das actividades cesse.
As pessoas estão constantemente a gerir a incerteza, porque estão em situações contratuais instáveis, e isso acaba por corroer a sua própria vida e por extravasar para outras dimensões do quotidiano, como a dificuldade de projectar o futuro e ter planos.
Até que ponto a pandemia e agora a inflação elevada e a guerra agravaram essas dificuldades e a sensação de mal-estar que identificaram em estudos que realizaram anteriormente?
Através dos estudos qualitativos temos tentado identificar esse mal-estar difuso que se vai incorporando e que não é exclusivo de Portugal e verificámos que há uma relação muito clara entre esse mal-estar e as crises. Durante a pandemia, entrevistámos pessoas que tinham relações contratuais muito débeis ou informais e que inicialmente não eram elegíveis para os apoios habituais. Depois os apoios foram surgindo, como o Apoio Extraordinário ao Rendimento dos Trabalhadores (AERT), mas, de facto, nesses primeiros meses estas pessoas viveram uma sensação terrível porque de um momento para o outro deixaram de ter rendimento. Muitas delas estavam a caminhar para o abismo e isso foi uma situação muito singular nesta crise e que deixou marcas.
Relativamente ao que estamos a viver actualmente, a situação que se põe é o aumento do custo de vida num contexto em que parte relevante da população trabalhadora tem níveis salariais relativamente baixos - e neste momento é consensual que temos um problema ao nível dos salários baixos. Essa questão do aumento do custo de vida pode ter consequências ao nível do empobrecimento e essa é mais uma camada de preocupação e de incerteza que se soma às anteriores e é expectável que gere ainda mais essa sensação de mal-estar e de não controlar a sua própria vida.
Muitos jovens não conhecem outra realidade a não ser a de um país em crise. Neste momento, o desemprego jovem rondava os 20% no primeiro trimestre, muito acima da taxa de desemprego global que foi de 5,9%. Como é que se ultrapassa este problema?
Os jovens têm um nível de qualificação superior que não é comparável com o que era há dez ou 20 anos, mas ao mesmo tempo viveram duas crises profundas muito próximas que afectaram os que estavam a acabar o curso superior e a entrar no mercado de trabalho. A experiência que têm de ingresso no mercado de trabalho é a experiência de um país em crise. Isto merece uma resposta do ponto de vista das políticas públicas. A nossa economia e a nossa sociedade precisam de pessoas jovens e de pessoas qualificadas e é fundamental os jovens perceberem que têm futuro em Portugal em termos de condições de trabalho, de progressão profissional e salarial. Este é um grande desafio para o nosso país neste momento.
É o grande das políticas públicas?
É um dos grandes desafios. No fundo, é quebrar com um modelo que persiste, um modelo de uma economia que ainda assenta muito nos baixos salários, no trabalho precário e por aí adiante. Temos um enorme potencial de pessoas qualificadas com formação superior e verifica-se que o mercado de trabalho está a ter dificuldade em absorver estas pessoas, sobretudo que elas consigam integrar-se em situações contratuais estáveis, com carreira, com progressão e com futuro.
Estamos numa encruzilhada e a conjuntura de várias crises não está a ajudar. A grande recessão não foi completamente resolvida, a pandemia também não e agora temos estas crises relacionadas com a inflação e com a guerra e, nesse sentido, isso pode ser o maior obstáculo para fazermos de uma vez por todas a transição para uma economia mais sustentável, mais coesa e com mais futuro.
No livro “A Miséria do Tempo” falava-se na importância de travar a desfiliação social dos desempregados de longa duração – corre-se o risco de se assistir a esse fenómeno entre os mais jovens?
Nos mais jovens há sempre alternativas, nem que seja emigrar.
Se o índice de pobreza está a descer em alguns grupos, no caso dos desempregados isso não está a acontecer, metade da população desempregada está em situação de risco de pobreza – o que significa que o desemprego é uma antecâmara para o empobrecimento, nomeadamente nas pessoas que têm grande dificuldade em regressar ao mercado de trabalho porque têm idade mais avançada e níveis de qualificação mais baixos e isso está associado a processos de desfiliação muito fortes.
Nesse livro, identificámos questões muito preocupantes de pessoas que estavam num processo de atomização e de isolamento e quando isso acontece é muito difícil regressar ao mercado de trabalho. E é também um problema de cidadania, porque são pessoas que não exercem plenamente a sua cidadania porque estão muito limitadas em várias dimensões.
O facto de termos uma taxa de desemprego historicamente baixa pode levar a que a invisibilidade dos desempregados de longa duração se agrave?
Continua a haver um grupo de pessoas que estão nessa situação, que estão a cair na pobreza e que persistem na pobreza. É fundamental olhar para essa realidade e não se desistir dessas pessoas. É importante enquadrá-las do ponto de vista das políticas públicas. Esse é um problema que não é específico de Portugal. Estava-me a lembrar do filme de Ken Loach, ‘I, Daniel Blake’ em que percebemos que há pessoas que sentem que estão a caminhar para trás e que os seus saberes são muito pouco valorizados. O filme evidencia que as respostas não são adequadas a determinadas pessoas...
O que é preciso para adequar as respostas a essas situações?
Fala-se muito na transição digital mas há saberes, experiências e competências que, mesmo numa economia que se está a digitalizar, continuam a ser bastante importantes e muitas vezes temos a noção de que um conjunto de ofícios e de competências que descurámos e que voltam a fazer muita falta – como marceneiro, carpinteiro, costureiro. Essas competências devem ser valorizadas.
Problemas como a precariedade ou o emprego com baixa qualidade já existiam, mas tornaram-se mais visíveis com a pandemia. O que é que é preciso fazer para que no futuro essas situações não voltem a colocar-se?
Medidas como o layoff simplificado, por exemplo, foram muito eficazes porque funcionaram como uma espécie de dique que evitou que o desemprego aumentasse exponencialmente. Isso foi o resultado de uma política pública e houve uma resposta mais eficaz e mais consistente do que, por exemplo, as respostas dadas na crise de austeridade (entre 2009 e 2014).
Ainda assim, percebeu-se que as pessoas mais vulneráveis e os outsiders eram uma realidade com múltiplas configurações. É importante que esta realidade seja precavida com contratos de trabalho estáveis, protegidos, emprego seguro com garantias de continuidade e de progressão.
Até que ponto as alterações ao Código do Trabalho que estão em cima da mesa vêm responder a essas necessidades?
É importante pôr a questão do trabalho digno na agenda. Há ali um conjunto de medidas de combate à precariedade que são bem-vindas, assim como as medidas relativamente ao fenómeno do trabalho “plataformizado” e ao reconhecimento da laboralidade no sentido de enquadrar essa pessoas em situações mais formais e isso é importante.
É importante avançar-se, vamos ver até onde, no reforço da negociação colectiva. Um dos grandes impactos da grande recessão foi a redução da negociação colectiva. É importante reforçar esses mecanismos porque se trata de consolidar as formas de representação dos direitos dos trabalhadores que são a parte mais frágil e incrementar políticas que reforcem a solidariedade social. As políticas laborais são políticas de reforço da solidariedade social e isso parece-me ser algo que deve ser aprofundado.
Está em curso um debate em torno de novas formas de organização do trabalho como a semana de quatro dias e o teletrabalho. É um debate que faz sentido ou é extemporâneo?
É importante existirem utopias realistas até do ponto de vista civilizacional. Não há dúvida, e isso é um debate que se faz há muito tempo, que temos um avanço tecnológico tremendo e faz todo o sentido que a tecnologia seja um recurso para trabalharmos menos e termos mais qualidade de vida. Era isso que seria expectável mas que não está a acontecer e nesse sentido esse debate é importante.
A questão é saber como enquadrar e como operacionalizar. No caso de Portugal somos dos países onde se trabalha mais horas, as pessoas trabalham para além dos horários definidos e não é um modelo de sociedade que devemos continuar a ter. Isso compromete muito a vida das pessoas e a redução do horário de trabalho é uma via a pensar.
A semana de quatro dias pode ser um contributo importante?
Relativamente à semana de quatro dias, a ideia é interessante, mas chamo a atenção para alguns pressupostos. Essa política faz sentido se não existir perda salarial, sobretudo em contextos como a nossa economia em que temos uma parte considerável das pessoas que aufere baixos salários e que dificilmente aderiria a esse modelo.
Essa é uma primeira questão, a outra é que era importante que as pessoas trabalhassem efectivamente menos horas, porque o que pode acontecer é que para se ter um dia sem trabalho nos outros quatros dias as jornadas também se prolongarem por dez ou 12 horas.
Por outro lado, para que uma medida dessas seja aplicada de forma eficaz e universal temos de ter mecanismos de regulação laboral muito aprimorados e que cheguem a todos. Em mercados de trabalho pautados por dualidades entre outsiders e insiders será menos difícil regulamentar a semana de quatro dias para as pessoas enquadradas em contratos de trabalho, os tais insiders, mas para quem não está nessa situação é muito difícil.
A semana de quatro dias reforça ainda mais a importância de as pessoas terem um contrato de trabalho com direitos, porque de outro modo podemos estar a reforçar as dualidades e até as desigualdades. Os insiders terão essa possibilidade de trabalhar quatro dias, enquanto os outsiders, porque estão fora e não estão enquadrados do ponto de vista contratual e de protecção social, dificilmente serão abarcados por este tipo de medidas.
Para a medida ser universal, é importante que a população empregada no seu todo tenha contratos de trabalho permanentes ou situações relativamente estáveis e enquadradas. Se assim não for pode gerar disparidades difíceis de prever.
A resposta do Governo ao aumento da inflação tem sido dada através de medidas pontais como o autovoucher ou o apoio de 60 euros para compensar o aumento do preço do cabaz alimentar. É preciso ir mais longe e ter medidas mais organizadas e com outro alcance?
Sim. Desde logo, o aumento dos salários intermédios. Neste momento, penso que se tornou consensual a importância de continuar a aumentar o salário mínimo nacional e de uma política de aumento geral dos salários que tenha impacto ao nível do salário médio. Já era uma necessidade, mas agora é fundamental. Não podemos continuar neste modelo de uma economia assente em parte em baixos salários. E o próprio salário mínimo continua a ser muito baixo quando comparado com outros países europeus.