O objetivo desta barreira de arame farpado com 550 quilómetros de extensão ao longo da fronteira com a Bielorrússia é travar a entrada de migrantes na Lituânia. “Embora cada país tenha o direito de decidir quantos imigrantes está disposto a receber”, Paulo de Almeida Sande, especialista em assuntos europeus ouvido pelo Expresso, realça que “o asilo é um direito internacional” e uma “matéria fundamental, porque tem a ver com o direito à vida e à dignidade humana”
“Aqueda do Muro de Berlim foi um momento crucial e em que se julgou que tinham acabado as divisões. A Europa viveu então uma lua de mel, que teve muito a ver com o enfraquecimento da Rússia após a dissolução da União Soviética”, observa Paulo de Almeida Sande, especialista em assuntos europeus ouvido pelo Expresso. Isso levou mesmo a que, em 1989, Francis Fukuyama publicasse o célebre artigo intitulado “O fim da História”. “Essa foi uma das grandes ilusões do Ocidente durante os anos 1990, porque realmente parecia que sim”, mas as cicatrizes do passado perduram até hoje e “é nesse rescaldo da Guerra Fria que estamos a viver”, comenta o perito em Ciência Política e Relações Internacionais.
Na mesma semana em que morreu Mikhail Gorbatchov, responsável pelas brechas que se abriram na Cortina de Ferro e levaram à implosão dos muros erguidos pelo bloco soviético, a Lituânia anunciou ter concluído a construção de uma cerca de arame farpado, com 550 quilómetros de extensão, ao longo da fronteira com a Bielorrússia. “Em todas as secções, o trabalho está 100% concluído”, garantiu esta segunda-feira a primeira-ministra lituana, Ingrida Šimonytė. O objetivo desta barreira física, com quatro metros de altura, é o de travar o fluxo de migrantes, sobretudo daqueles que são provenientes do Médio Oriente e África.
“Há uns anos diríamos que era impossível e é profundamente lamentável que tenha acontecido uma coisa destas. Era impensável, por ser algo que já não fazia qualquer sentido. A ideia de haver muros na Europa tinha morrido com a queda do Muro de Berlim”, refere Paulo de Almeida Sande, para quem “a razão para a construção desta cerca é semelhante àquela que levou à construção do muro de aço que a Polónia ergueu”, também na fronteira com a Bielorrússia.
Ao longo deste ano, cerca de 4.200 migrantes cruzaram a fronteira e entraram na Lituânia, provenientes da Bielorrússia. No entanto, este não é um problema de agora, uma vez que o auge da crise migratória, provocada pela guerra na Síria, aconteceu em 2015, ano em que 991 mil refugiados chegaram à Europa.
“Tudo isto começou em 2014, com a anexação russa da Crimeia, que é um acontecimento coincidente com a chegada maciça à Europa de migrantes. Isso criou o caos na UE, onde nem sequer há um sentimento identitário forte”, contextualiza o antigo assessor de Marcelo Rebelo de Sousa para os assuntos europeus. “Esse enorme fluxo migratório teve uma resposta muito assíncrona e diferenciada entre os vários países europeus, mais acentuada nos países de leste”, nota Paulo de Almeida Sande. Aliás, lembra o analista, “a Hungria começou logo a construir barreiras”.
MIGRANTES SÃO ARMA DE LUKASHENKO PARA DIVIDIR A EUROPA
Na opinião do especialista em Relações Internacionais, “o que está a acontecer na Lituânia e na Polónia é que não estão a examinar o direito de asilo e remetem essas pessoas para a procedência, empurrando-as para o lado de lá das suas fronteiras”.
Só que do lado de lá está Aleksandr Lukashenko, empenhado em usar os migrantes como arma de arremesso para enfraquecer a Europa. “Lukashenko encaminha essas pessoas para a UE e encoraja-as a cruzar a fronteira com a Lituânia. Ele recebe-as e depois diz-lhes: ‘agora vão-se embora, porque aqui não ficam’. É uma tática que usa para criar divisão na Europa”, aponta Paulo de Almeida Sande.
Em novembro passado, o presidente da Bielorrússia visitou um campo de migrantes, junto à fronteira do país com a Lituânia, para se dirigir aos refugiados e dizer-lhes: “Se querem seguir para o Ocidente, estão no vosso direito. Nós não tentaremos apanhar-vos, bater-vos ou prender-vos atrás do arame farpado”.
O Tribunal de Justiça da União Europeia considerou que a lei lituana que ordena a detenção automática de pessoas que atravessam irregularmente as fronteiras do país, negando-lhes o direito ao pedido de asilo, é incompatível com a legislação da UE. “Embora cada país tenha o direito de decidir quantos imigrantes está disposto a receber”, Paulo de Almeida Sande realça que “o asilo é um direito internacional” e uma “matéria fundamental, porque tem a ver com o direito à vida e à dignidade humana”.
Dignidade essa que pode estar a ser violada pelas autoridades da Lituânia, de acordo com um recente relatório da Amnistia Internacional, onde são reportados casos de maus-tratos, detenções em massa e até de tortura contra migrantes ilegais. “As pessoas que ouvimos na Lituânia foram ilegalmente detidas durante meses a fio e em condições terríveis, sendo sujeitas a abusos físicos e psicológicos e a outros tratamentos degradantes”, denuncia Nils Muižnieks, diretor para a Europa da Amnistia Internacional, citado em comunicado.
AMNISTIA ACUSA LITUÂNIA DE “RACISMO INSTITUCIONAL”
A hostilidade parece ser exercida apenas contra alguns, os que chegam de longe, porque parece haver alguma ambiguidade na forma como a Lituânia lida com os refugiados: se por um lado acolhe os ucranianos de braços abertos, por outro fecha a porta a migrantes oriundos do Médio Oriente ou de África. “Embora a Lituânia tenha concedido uma receção calorosa a dezenas de milhares de pessoas em fuga da Ucrânia, a experiência dos detidos com quem falámos foi bem diferente. Esta situação suscita sérias preocupações relativamente ao racismo institucional presente no sistema de migração lituano”, adverte Nils Muižnieks.
“Não há dúvida nenhuma que o acolhimento de refugiados ucranianos representa uma exceção absoluta e nunca vista desde a Segunda Guerra Mundial. Não me lembro de nenhuma fuga maciça de uma população de um país que tenha tido este tipo de acolhimento por parte da generalidade dos países europeus”, diz Paulo de Almeida Sande.
“A Europa respondeu a esta crise humanitária a uma só voz, o que não aconteceu em 2015”, constata o especialista, embora entenda que, “num país como a Lituânia, com menos de três milhões de habitantes, ter, de repente, milhares de pessoas a entrar, provenientes de culturas que dificultam a integração, isso tem um enorme impacto”. E, “para as conseguirem acolher, colocam-nas em campos de refugiados, mas a certa altura esses campos podem começar a parecer campos de detenção”, acrescenta.
“As pessoas detidas nestes centros devem ser libertadas de imediato e deve ser-lhes permitido realizarem os seus pedidos de asilo”, defende Nils Muižnieks, da Amnistia Internacional.