1.9.22

Governo ainda não decidiu se trava aumento de 5% nas rendas

Pedro Crisóstomo, in Público online

Inquilino com contrato de 800 euros mensais em risco de pagar mais 521 euros por ano. Deco antevê agravamento do endividamento das famílias. Espanha colocou tecto à subida das rendas nos 2%.

A poucos dias de aprovar um pacote de medidas de apoio ao rendimento das famílias para responder ao agravamento geral dos preços, o Governo ainda não decidiu se tomará medidas específicas para travar o aumento de 5,43% que os senhorios poderão aplicar em 2023 com base nas regras gerais de actualização.

Como a legislação portuguesa permite aos proprietários actualizarem anualmente as rendas habitacionais e comerciais, no arrendamento urbano e rural, em função da variação média do índice de preços no consumidor registado, sem a componente da habitação, nos 12 meses terminados em Agosto do ano anterior, a maior parte dos contratos poderá ser alvo de um incremento de 5,43% a partir de Janeiro, porque foi essa a taxa de variação registada em Agosto naquele indicador específico.

Questionado por email se irá implementar medidas para conter este salto, o Ministério das Infra-estruturas e da Habitação respondeu ao PÚBLICO que, neste momento, o assunto “ainda está em análise”, embora frise que o Governo “está a acompanhar as preocupações que têm sido manifestadas sobre este tema, nomeadamente pelas várias associações do sector”.

O ministério liderado por Pedro Nunos Santos não esclareceu se as eventuais medidas farão, ou não, parte do pacote a aprovar no Conselho de Ministros extraordinário marcado para a próxima segunda-feira, nem clarificou se, decidindo agir, protegerá todos os contratos passíveis de actualização ou se a resposta poderá passar por definir medidas diferenciadas em função, por exemplo, do nível de rendimento dos inquilinos.



Até ao final do ano, o Governo ainda terá de apresentar a proposta do Orçamento do Estado para 2023 e, colocando-se esta questão apenas a partir de Janeiro, o executivo poderá aproveitar esse momento para tomar a iniciativa, se o decidir fazer, sabendo de antemão que os partidos da oposição poderão fazê-lo (o BE defende que o aumento seja igual ao que existiu este ano, de 0,43%).

O Governo espanhol já decidiu impor um tecto à actualização do valor das rendas, limitando os aumentos a 2%, independentemente do nível de inflação, que, na quarta maior economia do euro, se mantém num valor superior a 10% (para comparações europeias, o índice de preços em Portugal ficou, em Agosto, 9,4% acima do valor registado em Agosto do ano passado). O valor nacional da inflação é de 8,97%, mas o diferencial chega aos 9,24% se se excluir a habitação (e fica nos tais 5,43% se se olhar para a média dos 12 meses terminados em Agosto, o indicador relevante para as contas das rendas).
Salto anual

De acordo com o Censos 2021, havia em Portugal 922,9 mil alojamentos familiares arrendados. Nem todas os contratos são abrangidas pela regra da actualização anual. Para os arrendamentos habitacionais anteriores a 1990 e para os contratos da vertente comercial anteriores a 1995, mantém-se o regime transitório de congelamento.

Mas para o universo dos contratos abrangidos, que são a maioria, a questão vai colocar-se e representará uma grande subida face ao que tem acontecido nos últimos anos. Em 2021, as rendas não sofreram actualização, porque a inflação anual relevante para o cálculo foi negativa; e em 2022, foi de 43 cêntimos por cada cem euros de renda, quando agora o aumento legal é de 5,43 euros por cada cem.

Há contratos que podem prever outro regime de actualização que não este. Por outro lado, um proprietário pode decidir não seguir avançar com este salto. Porém, se o fizer, o senhorio tem de o comunicar ao inquilino e este pode não aceitar o acréscimo, mas tem de fazer uma contraproposta ou, numa situação limite, terminar o contrato.

A jurista da Deco Proteste Magda Canas afirma que haverá “uma enorme fatia de consumidores que serão afectados”, tendo em conta que, em 2021, só cerca de 200 mil rendas eram das antigas. A nível nacional, “a maioria dos valores encontra-se abaixo dos 500 euros e só uma pequena fatia tem um valor acima de mil euros” mensais, mas, entretanto, os valores estão a crescer nos novos contratos de arrendamento, “com valores completamente absurdos para a maioria dos portugueses”, frisa.

Para os inquilinos terem ideia de quanto poderão ficar a pagar mais, basta multiplicarem o valor mensal da renda pelo coeficiente 1,0543. Vejam-se três exemplos: uma renda de 500 euros mensais pode subir para 527,15 euros (são mais 326 euros ao fim de um ano); uma renda de 800 euros arrisca-se a passar para 843,44 euros (num ano, são mais 521 euros); uma de mil euros pode saltar para 1054,3 euros (um agravamento anual de 652 euros).
Para lá da habitação

Para Ana Cordeiro Santos, investigadora no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra na área da igualdade, habitação e endividamento, a dimensão da actualização terá um impacto “particularmente agravado” na população com maiores dificuldades económicas.

“Este aumento coloca as famílias de menores rendimentos numa situação de ainda maior dificuldade”, afirma, lembrando que, de acordo com um inquérito recente do INE, relativo à realidade de 2020, a maior parte das famílias que vivem numa casa arrendada dizem que preferiam comprar habitação, mas que não o fazem por não terem condições financeiras para isso (64% das famílias arrendatárias).

Embora o agravamento seja inferior ao aumento geral da inflação que se verifica neste momento (de 9%), a subida irá somar-se aos factores que já contribuem para a quebra do poder de compra das famílias, numa altura em que os índices dos bens alimentares e dos produtos energéticos estão a crescer acima do valor médio do índice geral dos preços no consumidor (no segundo trimestre, a remuneração bruta total média em termos reais caiu 4,6% em termos homólogos).

“Neste momento inflacionário, em que os rendimentos do trabalho não acompanham a evolução dos outros preços, estamos a assistir a uma degradação da situação dos trabalhadores e a uma transferência de rendimentos do trabalho para o capital”, nota Cordeiro Santos, coordenadora da obra A nova questão da habitação em Portugal.

A investigadora salienta que o custo da habitação, seja no mercado de arrendamento, seja no de habitação própria, tem vindo a agravar-se — e, no primeiro caso, diz, assiste-se a uma subida no valor dos novos contratos.

Ao longo dos últimos 20 anos, nota a investigadora do CES, a “inflação tem sido baixa e o modelo de actualização das rendas”, tal como está previsto na legislação, “não colocava grandes questões”, mas, agora, verifica-se não só o incremento no custo da habitação, mas também o agravamento dos bens alimentares e dos produtos energéticos, que absorverão “uma parte significativa do rendimento”. Numa frase: “Há degradação das condições de vida que vai para além da habitação”.
Organizar o orçamento

A investigadora pensa que serão necessárias “medidas de mitigação”, lembrando, ao mesmo tempo, que há questões estruturais por resolver (por exemplo, na regulação dos preços da energia e da habitação). E refere que a própria existência de problemas de partida dificulta actuar nestas circunstâncias excepcionais.

“Nunca se pode olhar para este problema intervindo apenas pontualmente para mitigar os efeitos do aumento dos preços”, afirma Ana Cordeiro Santos. Do ponto de vista estrutural, refere a necessidade de se eliminarem incentivos à “especulação imobiliária” (quando a compra de casa tem como objectivo um investimento financeiro e de obtenção de mais-valias) e de se aplicarem políticas de regulação do mercado de habitação e arrendamento, “porque sendo um bem essencial, não se pode deixar este sector ao funcionamento desregulado dos mercados e sujeito à especulação”.

Ana Cordeiro Santos, doutorada em Economia e Filosofia, refere que as famílias que compraram casa própria com recurso ao financiamento bancário também serão confrontadas a partir de agora com um aumento das taxas de juro. Embora seja uma franja da população com maior poder económico “uma parte terá dificuldade em acompanhar o aumento”.

A jurista da Deco Magda Canas acredita que o número de famílias endividadas poderá aumentar fruto do agravamento das rendas. “Alguém que tem um contrato de arrendamento pode perfeitamente ter simultaneamente um crédito pessoal, para a realização de obras, para a aquisição de automóvel, pode ter cartões de crédito. Temos de olhar para a renda como um todo e [o agravamento] vai pesar muito no orçamento dos portugueses”, alerta.

A especialista da equipa de estudos legais da Deco Proteste aconselha os cidadãos a fazerem o orçamento familiar, para verificarem se “se mantêm numa zona de equilíbrio entre as receitas e as despesas, ou se já estão a derrapar para valores negativos”.