Cristiana Faria Moreira, in Público on-line
Demolição das casas que se situam junto de uma vala em risco neste bairro precário de Alamada vai arrancar no sábado e durar até dia 6. Em causa estão 60 famílias que terão de ser realojadas em apartamentos e unidades hoteleiras ou então procurar apoio junto da Segurança Social. Amnistia Internacional está a acompanhar o processo.
É um dos maiores bairros precários de Almada, a apenas uma ponte de distância de Lisboa. O Segundo Torrão costuma ser notícia nos Invernos rigorosos de frio e tempestades, quando fica dias a fio sem luz e os electrodomésticos estouram com a sobrecarga de energia. Ao longo do último meio século, este bairro à beira-mar cresceu muito além das pequenas casas dos pescadores, alargando-se para terrenos da Administração do Porto de Lisboa e de privados.
Ergueram-se casas desordenadas, coladas umas às outras ou separadas por becos estreitos, por onde as crianças correm e brincam. Hoje, serão casa para mais de 300 famílias, muitas chegadas das ex-colónias à procura de melhor vida. Nos próximos dias, poderemos assistir ao início do seu fim: uma “situação de urgência e de emergência” precipitou o arranque do há muito anunciado realojamento do bairro do Segundo Torrão. Esta sexta-feira é o último dia para alguns moradores deixarem as suas casas. As demolições arrancam no sábado.
“Tivemos de acelerar o realojamento. O princípio da prevenção e precaução sobrepõem-se a outros”, disse a presidente da Câmara de Almada, Inês de Medeiros, aos jornalistas que convocou para uma sessão de esclarecimentos sobre este processo.
O aviso aos moradores chegou no início de Junho quando o município convocou cerca de 40 famílias para uma reunião sobre uma intervenção urgente na vala de drenagem de águas pluviais do bairro.
De acordo com o município, os Serviços Municipalizados de Água e Saneamento (SMAS) de Almada identificaram, ainda em 2019, “problemas com as descargas de esgotos para o rio”, nomeadamente “problemas de salubridade e de escoamento”.
O que era então “um problema de saúde pública” tornou-se uma “emergência”, quando em Maio passado os SMAS voltaram ao local e alertaram para a “deterioração acelerada da vala”, e o “possível colapso do colector” no caso de uma tempestade e de cheias, que poderia pôr em risco as casas que foram construídas por cima e arrastá-las para o mar.
De acordo com o município, o betão da vala foi sendo furado para a drenagem de águas residuais das habitações ao longo dos anos, colocando-o ainda mais em risco. “Há zonas onde o betão já desapareceu. A questão do peso começa a ser preocupante”, diz a autarca. Para a câmara, a emergência é tal que decidiu declarar a situação de alerta municipal e activar o plano municipal de emergência de Protecção Civil no passado dia 23 de Setembro.
Realojamento temporário
Há cerca de quatro meses, algumas famílias começaram a ser alertadas para a necessidade de deixarem as suas casas até 30 de Setembro, antes do início do novo ano hidrológico, a 1 de Outubro. Seriam realojadas temporariamente noutras habitações pelo concelho – ou fora dele — até a câmara ter pronta a construção de 95 casas municipais, destinadas ao realojamento definitivo, que serão pagas pelo Plano de Recuperação e Resiliência, num investimento estimado em cerca de dez milhões de euros.
Até agora, diz o vereador da Habitação, Filipe Pacheco, foram identificadas para demolição 83 construções (casas, anexos e outros estabelecimentos). E há 60 famílias que terão de ser realojadas. Destas, há nove agregados que já se encontram realojados em casas novas em Almada e noutros concelhos e 27 com uma “solução habitacional já aceite”, esperando a assinatura dos contratos de arrendamento e a instalação de água e luz.
Segundo o autarca, o processo de realojamento tem sido negociado “caso a caso” e o número de famílias incluídas neste processo foi aumentando ao longo dos últimos meses. Há ainda 16 famílias para as quais não foi encontrada resposta. “O mercado da habitação está saturado. É uma verdadeira dificuldade”, nota Inês de Medeiros.
Perante a emergência decretada, o município accionou o Programa Porta de Entrada do Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU), que se aplica “às situações de necessidade de alojamento urgente de pessoas que se vejam privadas, de forma temporária ou definitiva, da habitação ou do local onde mantinham a sua residência permanente ou que estejam em risco iminente de ficar nessa situação, em resultado de acontecimento imprevisível ou excepcional”.
Inicialmente, foi dito aos moradores que teriam de ser eles a encontrar uma casa que se enquadrasse na tipologia definida para o seu agregado e nos critérios fixados pelo IHRU em termos de áreas e de custo. Mas, depois de várias dificuldades relatadas pelos moradores, a câmara assumiu a procura por casas no mercado de arrendamento privado para depois as disponibilizar às famílias.
Dessas 60 famílias sinalizadas, há ainda oito famílias que a câmara diz não se enquadrar nos critérios do Porta de Entrada por terem uma segunda habitação ou por estarem a trabalhar fora do país na altura em que foi feito o levantamento, em 2020. Essas famílias, diz a autarquia, têm sido remetidas para a Segurança Social. “Não há nenhuma família que não esteja a ser acompanha”, acrescenta a vereadora da Protecção Civil, Francisca Parreira.
Os moradores que não têm ainda uma alternativa habitacional serão instalados em unidades hoteleiras em Almada e Lisboa. Inês de Medeiros afiança que a câmara assumirá todos os custos pelo alojamento em unidades hoteleiras, assim como as despesas com a alimentação. E diz ainda que o município tem condições para guardar os bens das famílias, assim como os seus animais de estimação.
A data de saída das casas dada aos moradores foi 30 de Setembro, esta sexta-feira. A área da vala foi dividida em cinco para o realojamento ser faseado. A demolição das casas vai iniciar-se no sábado, diz 1, e terminar a 6 de Outubro.
Este processo custará ao município entre 1 e 1,5 milhões de euros, embora parte do montante seja ressarcido pelo programa Porta de Entrada. Por agora, este programa terá a duração de 36 meses, esperando que no final desse período estejam concluídas as 95 casas que a câmara quer construir para realojar estas pessoas e mais uma parte do bairro.
Amnistia Internacional está a acompanhar o processo
Este processo tem sido criticado por alguns moradores que se queixam de não terem sido incluídos no processo de realojamento, apesar de viverem junto à vala. Mas, entre os que foram identificados, houve também queixas relativas à gestão de toda esta situação por parte do município.
No início do mês, o PÚBLICO deu conta das preocupações de alguns munícipes, que temiam ter de sair do concelho de Almada, colocar os filhos noutras escolas, desfazer laços e ter criar novas raízes num local novo que, supostamente, ocuparão apenas por três anos. Queixavam-se ainda de pouco apoio por parte do município e de informações confusas.
A câmara, contudo, refuta essas críticas. “Não é verdade que a câmara não tem estado no bairro. Este processo foi comunicado e negociado com os moradores”, disse Filipe Pacheco.
A Amnistia Internacional - Portugal tem também estado a acompanhar o processo de realojamento destas famílias. Num comunicado enviado ao PÚBLICO, esta organização salienta que, para as famílias visadas, é “fundamental estar garantida uma casa provisória, que cumpra os padrões internacionais de adequação, antes da data de demolição da casa actual, de forma que não se verifiquem desalojamentos forçados”.
“Só assim estará protegido o direito à habitação adequada, consagrado em vários tratados de direitos humanos regionais e internacionais, por forma a que as famílias possam viver em segurança, paz e dignidade”, continua a organização, que garante continuar a acompanhar as famílias para garantir que o município garante o “respeito pelos direitos humanos destas pessoas” no realojamento.
O director executivo da Amnistia Internacional – Portugal, Pedro A. Neto, nota ainda que, apesar a situação precária e de incumprimento, “muitas destas famílias trabalham a tempo inteiro servindo a sociedade de que todos fazemos parte, mas mesmo assim não conseguem sair da situação de pobreza em que vivem”.